Muitas vezes, a poesia fala por mil manifestos, protestos, alarmes. Morto por fuzilamento em 1936, García Lorca escreveu uma verdadeira declaração de amor à água. Uma homenagem justa ao que diferencia e empresta à Terra sua cor.
Segue trecho da poesia “Amanhã”, escrita em 7 de agosto de 1918:
“(…)As árvores que cantam
se partem e se secam.
E se tornam planícies
as montanhas serenas.
Mas a canção da água
é uma coisa eterna.
Ela é luz feita canto
de ilusões românticas.
Ela é firme e suave,
cheia de céu e mansa.
Ela é névoa e é rosa
da eterna manhã.
Mel de lua que flui
de estrelas enterradas.
Que é o santo batismo
senão Deus feito água
que nos unge as frontes
com seu sangue de graça?
Por algo Jesus Cristo
com ela se confirmou.
Por algo as estrelas
em suas ondas descansam.
Por algo a mãe Vênus
em seu seio engendrou-se
que amor de amor tomamos
quando bebemos água.
É o amor que corre
todo manso e divino,
é a vida do mundo,
a história de sua alma.
Ela encerra segredos
das bocas humanas,
pois todos a beijamos
e a sede nos mitiga.
É uma arca de beijos
de bocas já fechadas,
é eterna cativa,
do coração irmã.
Cristo deve dizer-nos:
“Confessai-vos com a água
de todas as dores,
de todas as infâmias.
A quem melhor, irmãos,
entregar nossas ânsias
do que ela que sobe ao céu
em envolturas brancas?”
Não há estado perfeito
como o de tomar água,
nos tornamos mais meninos
e melhores: e passam
nossa penas vestidas
com rosadas grinaldas.
E os olhos se perdem
em regiões douradas.
Oh! fortuna divina
por ninguém ignorada!
Água doce em que muitos
seus espíritos lavam,
não há nada comparável
a suas margens santas
se uma tristeza funda
nos deu suas asas.”
(Obra Poética Completa de Federico García Lorca, Ed. UnB, Trad. William de Melo)