Jornal da Unicamp – O aldeamento de São Barnabé, no Rio de Janeiro, desapareceu do mapa e de documentos escritos nos quais está registrada a história da cidade de Itaboraí, mas um levantamento feito pela professora Nanci Vieira de Oliveira, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), recém-doutorada pela Unicamp, descobriu dois sítios arqueológicos que ainda guardavam vestígios de populações indígenas que teriam vivido no município entre os séculos XVI e XVIII. A base do projeto de doutorado, defendido no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), é o estudo de cultura material e análise de fontes documentais, algumas delas contestadas por Nanci.
A proposta do trabalho é tornar conhecidas as estratégias de guerra européias, a resistência aos aldeamentos jesuíticos, e a participação política dos índios. A falta de dados documentais nos últimos séculos, na opinião de Nanci, tem a ver com a estratégia de resistência cultural dos nativos e até mesmo com a política de esquecimento empregada pelos colonizadores. “Eles tanto podem ter passado por um processo de miscigenação, ter desaparecido da memória, ou podem ter se deslocado”, questiona.
O trabalho deve resgatar essa memória apagada nos escritos e, na opinião do seu orientador, o professor Pedro Paulo Funari, do IFCH /Unicamp, ela já conseguiu por meio da compleição dos vestígios físicos dos habitantes do local. Objetos como cerâmicas, panelas e até mesmo moedas comprovam a antiga estada de tupinambás na atual Vila de Itaboraí. Um dos sítios estudados por Nanci está relacionado ao início da implantação dos aldeamentos pelos jesuítas, e o segundo é um sítio cemitério, que surgiu após a expulsão dos jesuítas. “Este sítio é um cemitério de uma capela que foi destruída no início do século 19.” Segundo a pesquisadora, os jesuítas foram expulsos em 1759. “É a partir daí que se observa uma participação leiga nos aldeamentos”, revela.
Mas não é isso que tentam mostrar os documentos. Até meados do século 18, persiste a pesquisadora, os documentos até fazem uma distinção entre índios e não-índios, mas após o século 19, não há uma menção escrita, “como se eles tivessem sido extintos. Há um código espacial utilizado nos escritos para distinguir os nativos de não-índios. Há um certo preconceito por parte dos historiadores do século 19. Eles até são tratados como selvagens, mais animais que seres humanos”, revela.
A idéia dos historiadores da época, sob o olhar de Nanci, era a de que os índios representassem todo o atraso do Brasil. “Todo o conhecimento histórico que estava sendo construído na época é passado para os livros didáticos pelo escritor e historiador Joaquim Manuel de Macedo, nascido em Itaboraí”, acrescenta a professora. Outro fato que demonstra o interesse em estabelecer uma política de esquecimento é a implantação da Lei de Terras ter tido como um dos mentores o Visconde de Itaboraí, “o maior latifundiário da região”, segundo Nanci.
A história
O aldeamento de São Barnabé data do século 16. “Antes, o que existia era uma densidade demográfica de tupinambá ou tamoios”. Funari explica que os aldeamentos só passaram a existir após a chegada dos jesuítas que se propuseram a organizar os índios. “Quando os jesuítas pediram as terras para aldeamento, as aldeias já existiam”, explica Funari.
De acordo com informações registradas por Nanci em sua tese de doutorado, os documentos se enganam não só quanto à permanência da população indígena, mas também com relação à extensão da área onde teria se instalado o aldeamento jesuíta de São Barnabé. A pesquisadora afirma que os registros tentam comprovar a permanência dos nativos apenas no centro missionário, quando na verdade a população se espalhava em uma área bem mais extensa.
Os documentos apresentam uma Aldeia de São Barnabé, quando o nome correto seria aldeamento. Está errado, segundo a pesquisadora, na medida em que a aldeia é um espaço escolhido e organizado pelo próprio índio, e “o aldeamento é resultado de uma política feita por vontade dos europeus para concentar comunidades indígenas”.
Segundo o orientador do trabalho, a pesquisa dos vestígios arqueológicos permitiu que a professora Nanci de Oliveira chegasse a uma série de conclusões às quais os documentos escritos não davam acesso, como a invasão dos colonizadores, dos franceses e dos holandeses, estabelecendo localizações estratégicas desses aldeamentos.
Rota Cartográfica
Depois de realizar a missão a que se propôs, Nanci lança suas sugestões em posse dos resultados da pesquisa. Como direito de quem percorreu toda a região em posse de mapas e dados datados dos séculos 16 e 17, ela sugere agora um mapa de sua autoria, a partir da descoberta de materiais de origem tupinambá. “Eu tive a oportunidade de percorrer várias vezes uma estrada que existe desde a confecção de um mapa de 1767”, afirma. Ela diz ter conhecido todos os pontos indicados nos documentos.
Nanci trabalhou com mapas antigos, fazendo geo-referenciamento. “Passei quatro anos identificando caminhos para traçar a relação entre a arqueologia e os documentos.” Ao tentar identificar os caminhos do século 18, antes da expulsão dos jesuítas, Nanci descobriu que alguns caminhos permanecem.
Escavações
Referência em estudos arqueológicos no Rio de Janeiro, a professora Nanci Vieira de Oliveira escavou durante quatro anos em busca de material que comprovasse sua tese. No sítio-cemitério, ela descobriu o equivalente a 4 mil ossos: “O levantamento revela a existência de 57 pessoas.” As escavações realizadas com alunos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro mostram que o local região já sofreu impacto pelo menos três vezes. Eles escavaram três camadas e observaram que acima dos entulhos da demolição da igreja ainda existiam ossos.
Nanci também conduziu parte de sua pesquisa pelo levantamento de desgaste dentário. “A boca é nosso primeiro contato com o mundo. No caso dos índios, utilizavam os dentes na produção de cestarias. Segundo a arqueóloga, os documentos falam em cestas coloridas. “Trabalho em uma comunidade de Guarani em Angra dos Reis (RJ) e eles produzem cestas coloridas”, argumenta.
Tombamento
Os resultados obtidos pela investigação podem favorecer a tomada de consciência por parte dos órgãos competentes em relação ao tombamento da região de São Barnabé. “Não está tombada porque é de índio”, arrisca Nanci.
A falta de reconhecimento também por parte da história atual ainda não permitiu o tombamento da Igreja de São Barnabé, apesar de ter passado por restauração. A professora Nanci afirma que já entrou com vários pedidos de tombamento municipal para a Igreja de São Barnabé, localizada em Itaboraí, e para a região habitada pelos índios. Os responsáveis alegam que não podem viabilizar o tombamento por causa de novas construções.
Maria Alice Cruz