Demarcação de TIs

ISA – O Conselho Indigenista (CI) – órgão consultivo da Fundação Nacional do Índio (Funai)- encaminhou à Presidência da República, no dia 24/04, documento alertando para os descaminhos na tramitação de processos de homologação de Terras Indígenas (leia abaixo).

A manifestação do Conselho da Funai engrossa o coro de insatisfeitos com o rumo que o novo governo federal tem imprimido às homologações. Se até o momento as reações tinham partido de organizações da sociedade civil e de associações indígenas com apoio do Ministério Público, o envolvimento do órgão indigenista oficial tem um significado particular, já que sinaliza divergências dentro do governo federal.

Em 03/04, o presidente da Funai, Eduardo Almeida, que também encabeça o CI, já tinha encaminhado ofício ao ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, solicitando esclarecimentos quanto a um parecer emitido pelo Senado Federal, que sugeriu a suspensão da homologação de cinco TIs no estado de Roraima.

Íntegra da Carta do Conselho Indigenista

Carta n.º 089/2003/CI-Funai

Brasília, 24 de abril de 2003.

Ao Excelentíssimo Senhor
LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República Federativa do Brasil
Brasília – DF.

Senhor Presidente,

1. O Conselho Indigenista, em reunião realizada na sede da FUNAI, no dia 08/04/2003, debateu extensamente a forma como vêm sendo conduzidos os processos administrativos de homologação de terras indígenas já demarcadas, com a introdução de fases novas e complicadores diversos que não possuem qualquer respaldo na sistemática legal existente. Nesse sentido, o Conselho Indigenista vem à publico reiterar a legalidade e correção da atual sistemática jurídico-administrativo de demarcação das terras indígenas, esclarecendo que não existem razões que possam justificar a interrupção dos procedimentos ou sua substituição por soluções casuísticas, sem apoio técnico ou jurídico.

2. É lamentável que as áreas indígenas Jacamim, Wai-Wai, Moskow, Muriru, Boqueirão (RR), Badjukorê (PA), Cuiu-Cuiu (AM), Padre (AM), Fortaleza do Castanho (AM), Patauá (AM), Apipica (AM), Itaitinga(AM), Córrego João Pereira (CE), M’biguaçu (SC), Xakriabá Rancharia(MG), apesar de já haverem sido identificadas, delimitadas e demarcadas em consonância com todos os dispositivos legais vigentes (Decreto 1775/1996; Portaria 14/MJ/1996), seguindo todas as normas e instruções administrativas pertinentes, tenham sido enviados à avaliação do Conselho de Defesa Nacional e posteriormente sido objeto de análise do Senado Federal.

3. O processo administrativo de reconhecimento e regularização das terras indígenas é de natureza fundamentalmente técnica, baseado em estudos antropológicos e fundiários circunstanciados, que permitam qualificar com precisão os limites do território, sua localização e os recursos naturais necessários à continuidade da vida e dos valores culturais de uma coletividade indígena.

4. Uma das etapas desse processo, chamada de “fase do contraditório”, é precípuamente destinada à contestação do relatório de delimitação e do mapa anexo elaborados por equipe técnica da FUNAI. Para assegurar a ampla publicidade e conhecimento dessa intenção do governo, esse material vem a ser publicado no Diário Oficial da União, cumprindo-se a seguir um prazo de 90 dias para que qualquer pessoa (particular, empresa, órgão público, inclusive o estado e o município) que se considere prejudicada por esta ação venha a manifestar-se diretamente no processo juntando todas as provas e argumentos que julgue pertinente. Tais elementos deverão ser adequadamente respondidos pela FUNAI, cabendo a decisão final à autoridade superior de um Ministro de Estado, no caso o Ministro da Justiça, que declara, mediante portaria, os limites da área como terra indígena, com publicação no Diário Oficial da União.

5. Só aí então, com uma decisão de governo oficialmente tomada, é que se iniciam os procedimentos seguintes de regularização fundiária, com a demarcação física de limites, a retirada de ocupantes não indígenas e o pagamento de benfeitorias de boa fé. O decreto de homologação, a ser assinado pelo Presidente da República, máxima autoridade da nação, é apenas um ato final e conclusivo, resultante, portanto, de todo um conjunto de procedimentos técnicos, decisões de autoridades e ações governamentais (que implicam inclusive no uso de recursos públicos). Tudo isso já cristalizado no terreno e no cotidiano dos segmentos indígenas e não indígena da população regional.

6. Não há razão alguma que justifique que os processos administrativos acima mencionados sejam remetidos à avaliação do Conselho de Defesa Nacional, foro de aconselhamento do Presidente da República que trata basicamente “com assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do estado democrático de direito” (art. 1o, Lei 8.113, de 11/04/1991). Este não é nem pode ser de forma alguma o caso de áreas indígenas já sobejamente estudadas!

7. Além da infundada complexificação e alongamento do processo administrativo, o mais grave de tudo é que estas áreas tenham retornado a fases já superadas pelo encaminhamento administrativo anterior, reabrindo-se as tensões e conflitos em torno de terras já demarcadas, postergando-se o reconhecimento de direitos e adiando o estabelecimento de novos termos de convivência entre os indígenas que habitam essas terras e os seus vizinhos regionais.

8. Assim é que em recente parecer da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal o relator recomenda que a homologação de cinco áreas indígenas no estado de Roraima – apesar de não padecerem de problemas técnicos e não se constituírem de modo algum em ameaça à segurança nacional – seja vinculada aos processos administrativos relativos a outras áreas indígenas Raposa/Serra do Sol e São Marcos, esta última já homologada e registrada, não cabendo pois sua citação. Ao final o relator recomenda “ao MJ e a FUNAI que, em reunião com o governo de Roraima e com vários segmentos da sociedade, se debrucem sobre todas as pendências atinentes às comunidades indígenas do estado de Roraima e, num processo de entendimento e de negociação, sejam resolvidas global e definitivamente”.

9. Nada poderia justificar tal procedimento, pois se tratam de processos distintos referentes a terras indígenas separadas geograficamente. Colocar em prática tais recomendações seria um procedimento administrativo desastroso, que criaria o contexto político para que os indígenas fossem forçados pelos poderes locais e estaduais a abrir mão de direitos líquidos e cristalinos, famílias e coletividades de um mesmo povo indígena sendo jogadas umas contra as outras.

10. Se colocadas em práticas tais recomendações à política de demarcação de terras indígenas, estaria retrocedendo a período bem anteriores da administração pública brasileira, onde os órgãos de Estado decidiam de forma unilateral e arbitrária sobre os direitos territoriais indígenas, como se estes fossem um ato de pura outorga de terras da União! A Constituição Federal de 1988, fiel aos anseios de democratização do país, veio reafirmar a especificidade dos direitos indígenas, relacionando as suas demandas territoriais com os elementos de sua cultura e história. A tarefa do governo é de promover os estudos necessários para o reconhecimento de direitos indígenas, promover a demarcação e regularização dessas terras. Ou seja, fazer valer a lei!

11. A tensão social não resulta da aplicação justa da lei, mas de sua inobservância, da naturalização das desigualdades sociais e da transformação dessas em obstáculos ao reconhecimento de direitos de grupos sociais dominados. Para que a lei seja cumprida e se restabeleça no mais breve espaço de tempo possível uma convivência respeitosa e saudável entre índios e brancos, cabe ao Estado emitir sinais claros quanto aos direitos dos respectivos grupos sociais envolvidos em uma lide.

12. É fundamental manter a dissociação conceitual entre os poderes executivo e legislativo. O que se espera do Congresso Nacional é a adequação da legislação indigenista aos parâmetros da Constituição Federal/88, com a discussão e aprovação do Estatuto as Sociedades Indígenas, em tramitação no Congresso desde 1991. Não há sentido em que os legisladores venham a debruçar-se no exame de processos técnicos específicos de demarcação de terras indígenas, pois essas decisões cabem ao executivo e roubariam ao legislador tempo e energia preciosos para o exercício do mandato parlamentar.

13. Esperando que uma rápida e lúcida posição do Conselho de Defesa Nacional seja tomada com relação àqueles processos acima referidos, bem como que não seja repetido o mesmo erro de encaminhamento para outras áreas – inclusive com a abreviação do procedimento homologatório da área Indígena Raposa/Serra do Sol, onde os indígenas têm sofrido ameaças sistemáticas, tendo inclusive ocorrido uma morte recente, viemos a firmar esse documento.

Respeitosamente,

EDUARDO AGUIAR DE ALMEIDA
Presidente do Conselho Indigenista/Funai

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO
Membro Titular

ISA MARIA PACHECO
Membro Titular

JOSÉ PORFÍRIO FONTENELE DE CARVALHO
Membro Titular

MARIA JOSEFINA CARDOSO DE OLIVEIRA
Membro Suplente

ADALBERTO SILVA
Membro Suplente

DINARTE NOBRE DE MADEIRO
Membro Suplente

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