George de Cerqueira Leite Zarur,
Economista e Antropólogo, Ph. D pela Universidade da Flórida, Ex pesquisador visitante da Harvard University.
O olhar sobre a imensidão dos mapas do Brasil, do começo do século XX, contendo grandes manchas de cores diferentes, com o dizer “região desconhecida”, mantinha os brasileiros em permanente estado de ansiedade. Afinal, como demonstrou o historiador Rocha Pombo, cuja tese foi assumida por Darcy Ribeiro, a geopolítica corrente associava o Estado Nacional brasileiro com um continente, delimitado pela rede hidrográfica, que se confundiria com área de expansão dos grupos do tronco lingüístico Tupi. Se o Brasil era uma ilha ou um continente, por lógica, nossos vizinhos hispânicos só poderiam ser, mesmo os mais interioranos andinos, água salgada do mar ou uma forma especial de vida marinha. Se chegassem muito próximos, e representassem uma ameaça, eram promovidos a seres humanos, piratas ou “mouros na costa”.
A “Ilha Brasil” era delimitada ao Sul pelos rios da bacia da Prata. Portanto, não deixou de ser um problema – especialmente estético, pois prejudicava a perfeição do modelo e dos mapas – a perda da Cisplatina. A guerra do Paraguai e a resolução da questão de Palmas, com a Argentina, iriam reforçar o conceito de “Ilha Brasil”, ao associar as fronteiras políticas a limites fluviais compatíveis com a noção de uma entidade natural e cultural aparte, cuja identidade se perderia no passado, dada a presença hegemônica dos índios Tupi em seu território.
Se de um lado preocupavam-se os brasileiros com formas de vida agressivas, próximas ao seu sagrado e antigo território – aquela conhecida por “argentinos” era a pior – havia outras mais distantes, porém mais perigosas. Caso particularmente grave, cujo desfecho fez muita gente pensar que “Deus é brasileiro”, foi o da pressão norte-americana pela livre navegação na Amazônia, logo após a abertura, à força, dos portos japoneses, em meados do século XIX. Ao que tudo indica, não recebemos a visita da esquadra estrangeira devido à eclosão da guerra de secessão nos Estados Unidos. Tal coincidência manifesta, de forma inequívoca, a preferência divina a nosso favor, amplamente confirmada por nossos sucessos posteriores nos campos de futebol.
A ocupação desses “espaços vazios” (em geral, não o eram, devido aos índios que neles viviam) tornou-se o próprio centro do projeto nacional, realizando a identidade geográfica e cultural brasileira, como um continente autônomo.
Sucedendo às entradas patrocinadas pela colônia, pouco fez o império para ser lembrado na história da colonização do interior brasileiro. Sua ação principal, neste sentido, foi a atração de imigrantes europeus de São Paulo ao Rio Grande do Sul. A guerra do Paraguai, embora com importantes conseqüências para a definição das fronteiras políticas não foi resultante de uma proposta estratégica sistemática.
O nacionalismo geográfico seria retomado com a Expedição Rondon, ao mapear, de 1906 a 1910, uma área, aproximadamente, do tamanho da França. Já Getúlio Vargas resolveu reassumir o projeto, rico em imagens simbólicas de bandeirantes e desbravadores dos sertões, através da Expedição Roncador-Xingu, da qual se originaria a Fundação Brasil Central. É aqui que entram os Villas-Boas, abrindo picadas e campos de pouso, a partir da década de 40 e entrando em contacto com índios isolados. Para abrir o Brasil Central à colonização, foi absolutamente estratégica a “pacificação” dos índios xavantes, por Francisco Meirelles, também nos anos 40. Os xavantes fechavam uma grande área a Oeste do Araguaia, uma vez que defendendo seu território, atacavam os que ali se arriscavam. Diferentes expedições do antigo Serviço de Proteção aos Índios, que buscavam um contacto pacífico com os xavantes, acabaram com a morte de todos os seus membros.
Veio Brasília, vieram a estradas unindo Brasília a quase todo o País. O autor deste artigo, em suas primeiras incursões ao Xingu, como estudante de antropologia, em 1965, ainda se lembra de Goiânia, uma cidade pequena, sem nenhum prédio mais alto. De um velho DC3 da FAB, que poderia levar semanas para chegar a Goiânia, com bancos de metal para o transporte de tropas, carregando todo tipo imaginável de carga e das escalas, freqüentemente com pernoite, em Aragarças e Xavantina, antes de pousar no atual Posto Leonardo, no Parque do Xingu.
Aragarças e Xavantina, cidades criadas a partir de bases da Expedição Roncador-Xingu, eram habitadas por funcionários da Fundação Brasil Central, cujo emprego era o de ali morar e, vez por outra, comunicar-se pelo rádio com outros centros semelhantes e com a sede em Brasília. Sua função era a de ocupar o território para o estado brasileiro. Aragarças era muito maior do que Barra do Garça, do lado matogrossense do Araguaia, ao contrário do que acontece hoje. Xavantina tinha uma meia dúzia de casas ao redor de uma antena de rádio e o indefectível “hotel de trânsito”, abrigado em uma casa velha. Depois vinha o Xingu, com seus índios ainda semi-isolados, e alguns, como o Txicão, efetivamente isolados.
Em uma das primeiras vezes que estivemos no Xingu, tivemos que correr alguns quilômetros, na companhia de outros jovens estudantes, uma vez que os Txicão estavam atacando outros índios na proximidade. Uma flecha cravada em uma árvore, interpretada como um aviso, serviu-nos de poderoso estímulo, aumentando, em muito, nossa velocidade.
Hoje, o Brasil Central está ocupado pelo estado e pela sociedade brasileiros. Aos exploradores sucederam-se os fazendeiros com a tecnologia de soja e de capim braqueara da EMBRAPA. Resta a Amazônia, mas a idéia do ignoto deixou de existir, no tempo dos levantamentos por satélite e dos GPS.
Embora os tempos heróicos não estejam mais conosco, novas bases ideológicas, apoiadas na ecologia, se superpõem ao nacionalismo geográfico. Uma população densa e homogênea não parecer fazer sentido em áreas equatoriais de floresta e nem representa uma necessidade para a afirmação da identidade nacional. O uso econômico da floresta, pelas populações que nela habitam, com uma tecnologia baseada no aproveitamento das espécies naturais; no manejo cuidadoso da mata; na indústria pesqueira fluvial; e principalmente, na exploração da biodiversidade para o desenvolvimento de alimentos e remédios, originam um novíssimo paradigma, indispensável a uma ocupação bem sucedida da Amazônia.
Se conseguirmos ocupar a Amazônia, preservando a floresta como sua maior riqueza e respeitando as populações indígenas e caboclas, teremos mais um motivo para reafirmar, com orgulho, nossa identidade nacional.