Música erudita e popular nas margens do São Francisco

Agência Brasil – Foram 3,7 mil quilômetros rodados e um público de 50 mil pessoas. Essa foi a turnê do pianista Arthur Moreira Lima, “São Francisco, um Rio de Música”, que levou o melhor da música erudita e popular a 12 cidades e municípios que margeiam o rio. Arthur está em Brasília, onde faz, hoje à noite, show que marcará o encerramento do projeto.

A experiência lembra os antigos circos do interior nordestino, que levantavam a lona, faziam o espetáculo e depois desarmavam tudo e seguiam viagem para outra cidadezinha, onde começavam tudo novamente. A diferença é que a aventura do pianista levava na bagagem um piano de cauda, instrumento não conhecido por muitos brasileiros desse imenso país. “O mais interessante era o contraste entre a cultura musical. Numa cidade como Cabrobó, que tem 20 mil habitantes, 8 mil pessoas foram assistir ao show”, diz Murillo Corrêa, técnico de som e iluminação.

O repertório foi inédito para a maioria do público. Músicas de Bach, Beethoven, Lizst, Chopin e Astor Piazzola misturadas a compositores brasileiros como Pixinguinha, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e Luiz Gonzaga. “Nos emocionou, todo o tempo, ver o povo abandonado, sem oportunidade de conhecer outras coisas. Velhos e crianças acostumados a ouvir ‘axé-music’ e que têm sede de cultura. As pessoas só não bebem cultura porque não se mostra cultura a eles”, denuncia Murillo.

É um engano pensar que as pessoas que nunca foram a um concerto ou a uma ópera não sabem aplaudir ou se comportar diante de uma obra erudita. “O público mais humilde bate palma quando se sensibiliza e as crianças ficam fascinadas. Eles não aplaudem só para fingir que conhecem a peça”, conta Carlos Gustavo Kersten, afinador do piano.

Depois de quase um mês viajando juntos, de 13 de setembro a 4 de outubro, a equipe de técnicos e músicos virou uma grande família pois, para chegar ao show e aos aplausos finais, foi preciso muito trabalho. Imagine 23 pessoas viajando juntas, acordando juntas, almoçando juntas e trabalhando juntas todo o tempo. Para sobreviver ao cansaço, muita diversão garantiu a turnê, que passou por momentos difíceis. O maior problema encontrado foram as estradas esburacadas. Com dois caminhões, um ônibus e três carros, os resultados foram doze pneus furados, motor superaquecido, problema nas mangueiras e o vidro de um dos veículos quebrado por uma pedra. Horas de paciência nas estradas vazias esperando a ajuda do borracheiro mais próximo, da cidade vizinha. Isso sem contar as duas viagens de balsas e o medo do peso dos caminhões durante a travessia.

Problemas à parte, o saldo da turnê foi de muita diversão, aplausos e histórias para contar. Na primeira cidade, São Roque de Minas (MG), a rádio local telefona pedindo uma entrevista. O nome do veículo, “Rádio Chapadão”, soou diferente engraçado aos músicos. A viagem continua e um homem, que não conhecia Arthur, o pára, vendendo flautas feitas de latas de margarina. O pianista convida o rapaz para tocar com ele no show “Ah! O senhor é músico?”, pergunta. No espetáculo, o flautista entoa “Tico-tico no Fubá” e se empolga, “Vai uma Aquarela também?”, conta Arthur sem conseguir controlar o riso.

Mas nem sempre era diversão. Na maior parte da turnê, o trabalho era sério. O caminhão-palco levava quatro horas para ser montado e o piano foi quem mais sofreu. Vindo de Santa Catarina, demorou a se acostumar com a temperatura alta – em Petrolina, por exemplo, o calor era de 47º – e afiná-lo também era uma tarefa demorada. Gustavo Kersten ficava de duas a cinco horas para cumprir a missão. Os shows eram realizados à noite e na manhã seguinte, Arthur Moreira Lima visitava as escolas. Com um pequeno piano dava aula às crianças sobre o instrumento e a música erudita. “Em algumas cidades, as pessoas nunca tinham visto um piano”, conta Arthur. Era atração na certa.

Além da música, um projeto paralelo esteve na bagagem. Enquanto Arthur tocava e ensinava, sua esposa, a odontóloga Margareth Garrett, distribuía pastas e escovas de dente. “Tinha criança que entrava na fila três vezes”, emociona-se o pianista. Junto à distribuição, Margareth dava noções de higiene bucal, fazendo do “São Francisco, um Rio de Sorriso”.

A idéia de andar por esse “Brasilzão” afora foi do próprio Arthur que, com um financiamento para compras de caminhão, obteve o seu. Aos pouquinhos, foi transformando a carroça em um palco com piso e decoração. Hoje, há até um espaço para o camarim, com direito a uma cama. “Eu sempre quis fazer algo assim, palco sai caro para a prefeitura e demora a ser montado e desmontado. O bom do caminhão é poder rapidamente transformar qualquer lugar num centro cultural”, revela o pianista aventureiro.

A viagem seguiu pelo leito do Rio São Francisco, escolhido por Moreira Lima, que o considera o marco mais representativo da geografia nacional. “O Rio São Francisco é agredido há séculos”, reclama Arthur. “Mas fiquei contente de saber que as pessoas já têm uma consciência ambiental, é como o cinto de segurança”, conta o músico comparando as campanhas de preservação do meio ambiente às do Detran que, com o tempo, levaram as pessoas a usar naturalmente o cinto, por saber que pode preservar sua vida.

A viagem teve apoio do governo federal e foi patrocinada pela Caixa e pelos Correios. Começou em Minas Gerais e foi seguindo por Bahia, Pernambuco e Sergipe até chegar a Alagoas. São Roque de Minas (MG), Pirapora (MG), Montes Claros (MG), Januária (MG), Bom Jesus da Lapa (BA), Ibotirama (BA), Paulo Afonso (BA), Juazeiro (BA), Petrolina (PE), Cabrobó (PE), Propriá (SE) e Penedo (AL).

“Foi uma experiência única, extremamente cansativa, mas gratificante. Você se sente mais cidadão que artista e é uma honra trabalhar pelo meu país. A pessoa que mais se realizou com isso fui eu”, diz, emocionado, Moreira Lima.

Alessandra Bastos

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