Conflitos em Terras Indígenas

ISA – Homologação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (RR), normatização da atividade de garimpo de diamante pelos Cinta Larga na TI Roosevelt (RO), suspensão do repasse de recursos federais a municípios criados no interior de TIs, promulgação da Convenção 169 da OIT, implementação de um programa de sustentabilidade econômica indígena estão entre as recomendações do documento, lançado no dia 18/11.

Integrada pelos deputados Orlando Fantazzini (PT/SP), Pastor Reinaldo (PTB/RS) e César Medeiros (PT/MG), a Caravana de Direitos Humanos (CDH) percorreu as Terras Indígenas Buriti (MS) Sangradouro (MT), Roosevelt (RO), Raposa/Serra do Sol (RR), Caramuru-Catarina Paraguassu (BA), Xucuru (PE) e Toldo Chimbangue e Aracaí (SC) entre 7 e 17/10 deste ano.

As impressões das visitas e audiências públicas realizadas durante a caravana estão relatadas no documento divulgado dia 18/11, que contém também uma série de recomendações [relacionadas na íntegra abaixo] à Presidência da República, à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores de todos Estados da Federação, em especial ao do Mato Grosso, do Mato Grosso do Sul, de Santa Catarina e da Bahia.

Segundo a CDH, a opção pelo tema conflitos em Terras Indígenas se deu, em primeiro lugar, a um “mea culpa” da própria comissão, que reconheceu estar tratando da temática indígena com a devida atenção, desde a sua criação, em 1995. Mas também pesou na decisão o acirramento dos conflitos e o aumento expressivo de mortes de índios, 23 desde o início do governo Lula, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Todas as comunidades visitadas ressaltaram o ineditismo da visita da CDH. Segundo os índios, raramente qualquer autoridade comparece às aldeias para ouvir as comunidades e conhecer sua realidade. “O curioso foi que em diversos momentos a comissão foi desencorajada – por autoridades federais e estaduais – a empreender as visitas, sob o argumento de que os índios eram perigosos ou imprevisíveis. Na verdade, estes argumentos escondem o fato de que a autoridade não-indígena tem grandes dificuldades em saber ouvir os povos indígenas”, contesta Orlando Fantazzini.


Pressão sobre os recursos naturais em TIs

O relatório constata que as causas dos conflitos que acirram as comunidades visitadas possuem raízes no desrespeito histórico à cultura e à terra dos povos indígenas.

“Os conflitos surgem principalmente da tentativa do homem branco de utilizar as terras indígenas para a monocultura de produtos agrícolas de exportação, para as atividades de mineração e garimpo, extração de madeira, ou para a construção de barragens e hidrelétricas”, expõe o relatório.

Analisando os diversos motivos do conflito entre “brancos” e índios, a CDH deixa claro que a homologação de Terras Indígenas é a única garantia de que o desenvolvimento vai se dar com o devido respeito à identidade e à autonomia das culturas indígenas. Os projetos de “desenvolvimento” defendidos pelos não-índios não incluem o direito à terra, pelo contrário. No Mato Grosso, por exemplo, os fazendeiros oferecem a “parceria agrícola”, mas desde que os indígenas abram mão da demarcação e da homologação de terras.

Além disso, há um enorme preconceito contra as populações indígenas. Uma das reclamações dos que se colocam contrários à demarcação de terras ou às demais políticas indigenistas é a de que o índio, hoje, se tornou um “brasileiro”. A CDH ouviu frases como “eles têm caminhonetes importadas” e “possuem casas de alvenaria”. Portanto, já estariam “aculturados” e não necessitariam de políticas específicas, podendo ser tratados como quaisquer outros.


Povos Indígenas e o poder público

O relatório demonstra também que o poder público muitas vezes contribui para o acirramento do conflito ao estimular um sem-número de práticas dos não-índios com relação à terra: construção de estradas, criação de municípios, extração intensiva de recursos naturais, drenagem e desvio de rios e muitas outras.

O Judiciário, na maioria das vezes, interpreta que a Terra Indígena não homologada é um pedaço de chão como outro qualquer. Essa interpretação faz com que os não-índios promovam ações judiciais para dificultar o processo de demarcação e homologação, criando uma situação em que a criação da terra indígena seja “impossível”. “Muitas mortes seriam evitadas se o entendimento jurisprudencial considerasse as terras em demarcação como terras com título em disputa. Assim, muitas destas práticas poderiam ser evitadas através de medidas judiciais cautelares”, alerta o documento.

Durante as audiências nas Terras Indígenas, vários povos acusaram o governo federal de permitir que negociações políticas interfiram no processo técnico de demarcação e homologação de terras. Foram apontados como exemplo a filiação do governador de Roraima, Flamarion Portela, ao Partido dos Trabalhadores, ato político que ampliou a base de sustentação do governo no Congresso Nacional. A comunidade indígena e muitos não-índios acreditam que o governador negociou com o governo a não-homologação da TI Raposa/Serra do Sol.

A CDH também ouviu suspeitas quantos aos interesses do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi. Um dos maiores plantadores de soja do país – monocultura esta que exerce grande pressão sobre áreas indígenas do Estado -, o governador teria proposto ao governo federal uma “moratória” na demarcação de Terras Indígenas.

Enquanto protela o processo de homologação das TIs, o governo federal praticamente deixa os índios à própria mercê, em termos da assistência à saúde, educação e trabalho e segurança para o índio.


Degradação no entorno e no interior de TIs

A Caravana dos Direitos Humanos pôde identificar três fontes de conflito envolvendo questões ambientais: (a) problemas relativos à degradação do entorno das Terra Indígenas, decorrente da aproximação cada vez maior da grande monocultura e da pecuária extensiva; (b) a degradação e má gestão dos recursos naturais no interior das Terra Indígenas; (c) a sobreposição de Terras indígenas e Unidades de Conservação (UCs).

A degradação no interior das TIs em áreas de grande extensão, como a Raposa/Serra do Sol (RR) e as áreas Cinta Larga, que vão do Mato Grosso a Rondônia, ocorre ora porque os índios são incapazes de fiscalizar as áreas por si mesmos, ora porque suas lideranças são convencidas – em troca de dinheiro – a permitir as atividades ilegais.

A CDH ouviu reclamações no sentido de que os índios não querem ser apenas “um exército para cuidar das matas”. Entretanto, o índio compreende muito bem a necessidade de preservação de seus recursos naturais, para o bem de suas gerações futuras. “Não faz sentido, portanto, atropelar a autonomia de decisão que eles têm sobre suas terras. Eles serão os primeiros a aceitarem planos de manejo de seus recursos que lhes garantam autonomia cultural e acesso mínimo ao conforto material. O confronto histórico entre os órgãos ambientais e indigenistas parece ter raízes outras, de natureza principalmente corporativa. De um lado, os órgãos ambientais se recusam a compartilhar a responsabilidade pela preservação com as comunidades indígenas. De outro, o órgão indigenista se acostumou ao monopólio da tutela, e não admite as relações dos índios com outros órgãos governamentais.”


Funai: 8 ou 80

Via de regra, os funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) em cada estado ou fazem o jogo dos não-índios no conflito, ou estão ameaçados de morte pelos mesmos brancos, já que defendem os direitos dos índios. Essa grande diferença de atitude entre as administrações regionais da Funai indica a falta de uma orientação nacional para a política indigenista. Para a CDH faz-se necessário algum tipo de orientação geral por parte da sede da Funai em Brasília para os vários Estados, como, por exemplo, orientações do tipo “será proibido negociar a demarcação de terras”.

O sucateamento da Funai é apontado no relatório como principal fator de ambigüidade na relação entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. “O Estado demarca terras, mas, ao falhar completamente na assistência aos povos indígenas, fragiliza-os perante a pressão exercida pelo poder econômico. Assim é que os Xavante (MT), apesar de terem grande parte de suas terras demarcadas, sentiram-se forçados a aceitar uma proposta de “parceria agrícola” com fazendeiros de soja. Da mesma maneira, os Cinta Larga em Rondônia, que também têm terras já demarcadas, permitiram durante 20 anos a extração de toda a madeira da terra indígena, e hoje enfrentam o problema da exploração do diamante.”


ONGs e igrejas

“Vivíamos em paz e harmonia com os índios, até que chegaram as ONGs”. Esta frase foi insistentemente dita pelos não-índios aos deputados. As ONGs e a igreja católica são acusadas de “insuflar” os índios ao conflito, são retratadas como atores de uma conspiração para “entregar o Brasil” aos interesses estrangeiros e são responsáveis pelo “confinamento” dos índios e por uma espécie de escravização cultural. Este discurso é praticado não apenas por aqueles não-índios diretamente envolvidos nos conflitos, mas também por políticos e pela imprensa local.

O relatório aponta a atuação de indigenistas independentes, organizados a partir da sociedade civil, como grande agente de conscientização dos povos indígenas a reivindicarem sua autonomia. Por outro lado, o enorme crescimento no número e na diversidade de ONGs e igrejas atuando nas comunidades indígenas não deixa de refletir a ausência do poder público.

O documento cita o Instituto Socioambiental como, talvez, a única fonte completa de dados, inclusive cartográficos, sobre todos os povos indígenas no país. “Realiza um trabalho fundamental em vista da omissão do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que até hoje não promoveu o censo indígena.”

Recomendações do relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sobre Conflitos em Terras Indígenas


Recomendações

1. À Presidência da República:

1.1. Imediata homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, nos termos da demarcação administrativa vigente (Portaria 820 do Ministério da Justiça).

1.2. Criação, no âmbito da Presidência da República, de um grupo de elite permanente, para coordenação das ações entre a Funai, Incra, Ibama, DNPM, Abin, Polícia Federal e Funasa, bem como para apurar e combater denúncias de corrupção por funcionários destes órgãos.

1.3. Revogação do Decreto 4412, de 07/10/02, com edição de nova regulamentação sobre a atuação das forças armadas em terras indígenas, cujo princípio regulador deve ser o diálogo e o consenso com as comunidades indígenas envolvidas. Retirada do Quartel da Maloca Uiramutã, Roraima, e reconstrução em local compatível com a vida social da comunidade indígena.

1.4. Normatização da atividade de garimpo de diamante por índios Cinta Larga na Terra Indígena Roosevelt, estado de Rondônia. As normas devem conter a necessidade de presença permanente do Estado, cuja atuação deve estar embasada nos laudos de impacto elaborados por Grupos de Trabalho do órgão indigenista. Os diamantes devem ser vendidos à Caixa Econômica Federal, e a renda auferida deve ser revertida em favor da própria comunidade indígena. Cabe lembrar que esta iniciativa independe da aprovação de Projeto de Lei de regulamentação da mineração em Terras Indígenas. Isto porque garimpo e mineração são atividades distintas, sendo vedado pela Constituição Federal (art. 231, §§ 2.º, 6.º e 7.º) o garimpo em Terras Indígenas por não-índios.

1.5. Cancelamento administrativo de todos os requerimentos de mineração e exploração de recursos naturais que incidam sobre Terras Indígenas, até que seja aprovada a regulamentação do art. 231, §3º, da Constituição Federal.

1.6. Inclusão das estradas e outras obras irregulares em terras indígenas no cadastro geral de obras irregulares.

1.7. Determinação ao Ministério da Defesa e à Polícia Federal para retirada imediata de garimpeiros em atividade na Terra Indígena Yanomami, estado de Roraima.

1.8. Criação de um Conselho Indígena no âmbito do Projeto Avança Brasil, formado por lideranças das comunidades cujas terras possam ser atingidas pelas obras do projeto.

1.9. Determinação ao Ministério da Previdência Social para criação de um programa especial de aposentadoria indígena.

1.10. Determinação ao Ministério do Desenvolvimento Agrário para elaboração de um programa de assentamento diferenciado para agricultores de boa-fé que tenham sido pacificamente retirados de terras indígenas.

1.11. Criação, no âmbito do Ministério da Saúde, de um órgão específico, integrado ao SUS, para formulação da política de saúde indígena.

1.12. Determinação ao Ministério do Meio Ambiente para que:

1.12.1. torne obrigatória a inclusão de laudo antropológico nos estudos de impacto ambiental que apontem conseqüências para recursos naturais de terras indígenas;

1.12.2. elabore normas e regulamentos que garantam a gestão ambiental do entorno das terras indígenas, no sentido de garantir o uso tradicional de recursos naturais pelas comunidades indígenas;

1.12.3. revogue os atos que criam os Parques Nacionais do Monte Roraima e Monte Pascoal, em respeito à prioridade indígena sobre aquelas áreas.

1.13. Determinação ao Ministério da Educação para que:

1.13.1. elabore programas que garantam o acesso dos índios ao ensino universitário, até que a lei venha a dispor sobre eventual educação universitária indígena;

1.13.2 assegure o reconhecimento formal das escolas indígenas que ainda não tenham sido reconhecidas;

1.13.2 Crie os subsistemas de educação indígena, nos moldes dos subsistemas de saúde;

1.13.3 Inclua no currículo escolar da sociedade não-índia o estudo da história e cultura dos povos indígenas.

1.14 Imediata suspensão do repasse de recursos federais a municípios que tenham sido criados no interior das Terras Indígenas, após sua regular demarcação.

1.15 Imediato empenho dos recursos do Plano Emergencial Pró-Cinta Larga, bem como a imediata mobilização da Polícia Federal no sentido de impedir a invasão das áreas indígenas Cinta Larga.

1.16 Imediata promulgação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

1.17 Auditoria do Controladoria-Geral da União no sentido de fiscalizar todos os repasses de recursos já efetuados pela Funasa à rede de saúde e às entidades terceirizadas, com o objetivo de atender as populações indígenas.

1.18 Orientação à Polícia Federal no sentido de afirmar sua competência exclusiva nas investigações de crimes relacionados a conflitos em terras indígenas.

1.19 Criação de uma força-tarefa da Polícia Federal e Ibama para investigar o desaparecimento de recursos naturais – especialmente diamantes e madeira – de terras indígenas.


2.À Fundação Nacional do Índio (Funai):

2.1. Urgente demarcação das terras indígenas que ainda restam não demarcadas.

2.2. Imediata reabertura dos trabalhos de identificação das Terra Indígenas Sangradouro e Volta Grande, com designação de proteção federal aos antropólogos responsáveis. Apuração de responsabilidade da Funai local com relação às negociações para não-demarcação das terras.

2.3. Elaboração de um programa de sustentabilidade econômica indígena, com o planejamento de atividades que as comunidades possam realizar sem que coloquem em risco seus costumes e tradições.

2.4. Elaboração de programas permanentes de ações afirmativas para as mulheres indígenas.

2.5. Implementação de um plano de fiscalização e controle permanente de Terras Indígenas que contemple a participação das comunidades envolvidas.

2.6. Intensificação de programas de intercâmbio entre as diversas comunidades indígenas, a fim de que as lideranças possam conhecer as diversas experiências na relação entre índios e não-índios e na criação de programas de desenvolvimento sustentável.

2.7. Imediata criação do Conselho Superior de Política Indigenista, conforme programa de governo do Presidente da República.

2.8. Urgente realização da Conferência Nacional de Política Indigenista, com poderes de influir na elaboração das políticas públicas voltadas para as nações indígenas.

2.9. Que a Funai desautorize expressamente seus funcionários de quaisquer tentativas de negociar a demarcação de terras indígenas a troco de favores e benesses para as lideranças indígenas. Qualquer projeto de “parceria” ou “auxílio” deve estar vinculado à garantia do direito à terra consagrado na Constituição Federal.

2.10. Elaboração de Campanha Nacional de Combate ao Preconceito contra as Comunidades Indígenas.

2.11. Que sejam expressamente desautorizados eventuais planos de assentar a dissidência Xukuru (PE) em áreas que sejam contíguas à atual Terra Indígena Xucuru.


3.Ao Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais:

3.1. Imediato julgamento da ação de nulidade de títulos que envolve as Terras Indígenas Caramuru – Catarina Paraguassu, da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, município de Pau Brasil (BA).

1.Consolidação de jurisprudência no sentido de definir as terras indígenas em demarcação como terras em disputa, o que facilitaria a impetração de medidas liminares e/ou cautelares no sentido de impedir a construção de estradas, criação de municípios, etc.

2.Consolidação de jurisprudência no sentido de afirmar a competência federal em processos que envolvem terras indígenas.

3.Consolidação de jurisprudência no sentido de garantir a assistência antropológica em processos em que índios figuram como réus.

4.Ao Congresso Nacional:

4.1. Imediata aprovação do Estatuto do Índio.

4.2. Aprovação da reforma política.

4.3. Auditoria do Tribunal de Contas da União no sentido de fiscalizar todos os repasses de recursos já efetuados pela Funasa à rede de saúde e às entidades terceirizadas, com o objetivo de atender as populações indígenas.


5. Aos Estados da Federação, em especial aos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Bahia:

5.1. Aprovação de emenda constitucional nos estados no sentido de permitir a compensação financeira a ocupantes de boa-fé de áreas colonizadas ilegalmente pelo Estado, situadas em terras indígenas.

5.2. Auditoria dos respectivos Tribunais de Contas no sentido de fiscalizar o uso das verbas do ICMS-ecológico e congêneres.

5.3. Determinação às Secretarias de Educação para que assegurem o reconhecimento formal das escolas indígenas que ainda não tenham sido reconhecidas.

6.Ao Ministério Público Federal:

1.Que o MPF desautorize expressamente seus procuradores de quaisquer tentativas de negociar a demarcação de terras indígenas a troco de favores e benesses para as lideranças indígenas. Qualquer projeto de “parceria” ou “auxílio” deve estar vinculado à garantia do direito à terra consagrado na Constituição Federal.

2.Lotação de mais procuradores responsáveis pela questão indígena, especialmente nos Estados de Rondônia e Mato Grosso.

ISA, Ana Flávia Rocha, 25/11/2003.

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