Funai – É final da estação das chuvas em Mato Grosso. É época dos índios do Alto Xingu homenagearem os seus mortos. É hora do Kuarup, importante ritual realizado pelos índios Aweti, Kalapalo, Kamayurá, Kuikuro, Mehinako, Trumai, Yawalapiti e Waurá, que habitam a Região Sul do Parque Indígena do Xingu, conhecida como Alto Xingu.
O ritual Kuarup é realizado uma vez por ano, entre os meses de julho e setembro, e é marcado por prantos e lamentações, numa saudação dos índios a seus mortos ilustres, encerrando o período de luto. É quando os índios choram, pela última vez, a partida de seus entes queridos.
Este ano serão três aldeias que celebrarão o Kuarup. Na primeira, nos dias 17 e 18 de julho os Yawalapiti reverenciarão quatro pessoas, que não eram Yawalapiti, e sim, Kamayurá, casados com familiares das lideranças Yawalapiti, mortas durante o ano passado. Os Kamayurá realizarão o Kuarup nos dias 14 e 15 de agosto, onde o principal homenageado será Uakakumã, primo do cacique Takumã. Por último, os Kuikuro celebrarão os seus mortos, logo em seguida, nos dias 28 e 29. Também nesse Kuarup os homenageados serão índios Kamayurá, que há muito tempo moravam com os Kuikuro e eram casados com mulheres daquela aldeia.
Os Kamayurá serão, este ano, os únicos que, além dos familiares falecidos, homenagearão, também, um não-índio ilustre, Roberto Marinho, que foi, segundo suas lideranças, um jornalista muito importante para a cultura daquele e de outros povos indígenas, pelas reportagens e documentários realizados com temática indígena em suas emissoras de televisão.
Muito embora os Yawalapaiti não façam, este ano, homenagem a um “branco”, o seu cacique Aritana acha que é importante a homenagem que os Kamayurá farão a Roberto Marinho. De acordo com Aritana, “a Rede Globo mostrou bastante os outros Kuarup e isso fez com índios de outras etnias, principalmente Karajá e Bororo, o procurassem para dizer que ver o Kuarup na TV fez com que eles também começassem a recuperar a cultura que já estavam perdendo”.
Aritana espera que José Roberto Marinho, filho do empresário, e que já confirmou presença na homenagem dos índios do Xingu aos seus mortos, também traga algo de bom para os índios em geral, principalmente na preservação das culturas indígenas, porque elas são importantes na preservação do meio ambiente.
As origens do Kuarup
O Kuarup é uma manifestação cultural dos povos indígenas do Alto Xingu – Kalapalo, Matipu, Nafukuá, Kuikuro, Waurá, Aweti, Kamayurá, Meynako e Yawalapiti – e é a maior festa indígena do País. Ele acontece anualmente no Parque do Xingu, sempre no período de estiagem, e é a mais alta homenagem que esses índios prestam aos seus mortos importantes. Embora o Kuarup esteja ligado à cultura desses índios, normalmente são convidados para essa festa os índios do Médio e Baixo Xingu – Suyá, Ypeng (txicão), Trumai, Kayabi e Yudjá (Juruna). Essa festa fez com que muitos desses índios, outrora inimigos, convivam pacificamente no Parque do Xingu.
Para os índios que promovem a Kuarup, os mortos são representados por troncos, fincados no pátio da aldeia promotora da festa. Nos dias em que o Kuarup acontece, interdições são levantadas e permissões são outorgadas: quem quiser, pode se casar, a moça reclusa pode ser liberta, o luto dos parentes vai terminar e o status definitivo será afirmado àqueles cujo falecimento se vai honrar.
O Kuarup só se tornou nacional e internacionalmente conhecido, a partir de 1988, quando o cineasta Ruy Guerra produziu o filme Kuarup, filmado no Parque Indígena do Xingu, baseado no Romance Kuarup, de Antônio Callado.
Mitos – Segundo reza o mito dos índios do Alto Xingu, no início dos tempos, o Grande Pajé Mavutsinim, que residia no monte Morena, resolveu ressuscitar seis pessoas mortas. Com esse intuito, mandou que cortassem quatro troncos escuros, para os homens, e dois troncos claros, para as mulheres. Depois começou a prepará-los e, para transformá-los em mortos ressurretos, anunciou o tabu: ninguém poderia manter relações sexuais durante aquela noite.
O Grande Pajé Mavutsinim desejava fazer com que os troncos se transformassem em gente de novo. Tudo corria bem até que um índio desatento (que havia mantido relações sexuais com a esposa naquela noite, rompendo, assim, o tabu), chegou perto dos troncos que já estavam virando gente e eles voltaram a ser apenas troncos. Então, Mavutsinim se irritou e disse que não mais tentaria o renascimento do corpo; agora, ele só faria a ressurreição da alma. Acreditam os índios que, graças ao Kuarup, as almas dos mortos, que inicialmente estão presas à floresta ou ao rio, são libertas e podem viver noutro mundo e sob outra forma.
Dos preparativos
O Kuarup é realizado sempre na aldeia do morto e a família deste é a anfitriã da festa e a encarrega de prover a alimentação para as aldeias convidadas. Por isso, quando morre algum membro de uma aldeia, os seus parentes precisam se organizar, pois a realização do ritual exige um grande incremento na produção de alimentos.
O ritual é realizado durante dois dias. Várias atividades são executadas nos dias que o precedem; a preparação dos alimentos derivados da mandioca, a busca dos troncos e o preparo dos ornamentos que vão, no ápice da festa, enfeita-los. Nos primeiros momentos da festa, tocadores de flautas uruá cantam e dançam aos pares, percorrendo todas as casas da aldeia. Os pajés fazem suas rezas aos mortos sepultados no pátio da aldeia. Os mensageiros pariat saem convidando outras aldeias. Os troncos são enfeitados numa cerimônia que é acompanhada por choros e lamentações, que se estendem por toda a noite.
Ao final do segundo dia o Kuarup termina, com uma luta de huka-huka. Os troncos são retirados e jogados no rio ou no lago. Durante a noite de lamentações todos os lutadores ficam acordados; eles temem dormir e ter maus sonhos. Acreditam que isso irá atrapalhar o bom desempenho na luta do dia seguinte, que começa com o raiar do sol.