Entre os 14 povos que habitam o Parque Indígena do Xingu (PIX), muitos foram transferidos de suas terras originais para dentro dos limites da reserva, fundada no início da década de 1960. A geopolítica criada pelo governo federal fez com que grupos indígenas rivais tivessem que superar históricos de conflitos para compartilhar do mesmo território. A intermediação da política indigenista governamental foi decisiva para que o mosaico étnico no parque se consolidasse de forma pacífica.
A paz entre as aldeias, por sua vez, permitiu que o PIX se consagrasse ao longo das décadas como um oásis de preservação ambiental cravado no meio de uma das principais regiões de expansão da fronteira agrícola brasileira, o noroeste do Mato Grosso. Nos últimos meses, porém, o pacto indígena pela conservação da natureza foi quebrado. De acordo com denúncia de lideranças do Xingu, uma aldeia no extremo oeste do parque abriu suas portas para que madeireiros de cidades vizinhas derrubassem centenas de hectares de floresta. Pela primeira vez desde que a reserva indígena foi criada, seus chefes se vêem diante do desafio de reprimir um de seus parentes.
A denúncia aponta para o cacique Ararapan Trumai, chefe da aldeia Terra Nova. Afirma que o líder trumai tem permitido que madeireiros vindos das cidades próximas entrem no PIX a partir de sua aldeia para desmatar a região. Em troca, estaria recebendo dinheiro e automóveis. O negócio estaria ocorrendo desde meados de 2004. Neste período – segundo monitoramento feito pelo laboratório de geoprocessamento do ISA a partir de imagens de satélite – os invasores exploraram mais de 800 hectares de floresta, dos quais retiraram cerca de 16 mil metros cúbicos de madeira.
Parte desta destruição poderia ter sido evitada. Em agosto passado as principais lideranças xinguanas já pediam ajuda do governo federal para resolver o problema. Por meio de uma carta da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), endereçada aos titulares dos ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, ao Ministério Público Federal no Mato Grosso e aos presidentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os caciques denunciaram a extração ilegal de madeira de dentro do PIX. Contaram que haviam sido enganados pelo cacique Ararapan Trumai, que no final de 2004 havia lhes pedido permissão para abrir uma nova aldeia e uma pista de pouso na área da Terra Nova. Os chefes indígenas não sabiam então que o projeto servia apenas para encobrir a derrubada de árvores e a abertura de estradas para o escoamento da madeira.
Ao solicitar providências urgentes ao governo federal, os caciques citaram inclusive o nome de Gilberto Maia como sendo o do madeireiro ao qual o chefe Trumai estaria associado e a cidade de Vera (MT), como sua base de operação. No trecho final da carta, as lideranças escreveram que elas “sempre lutaram pela preservação do Parque, nunca deixaram estranhos entrarem na área, sempre foram contra a exploração de madeira, pesca, e hoje lutamos contra a destruição das nascentes e matas ciliares na região do entorno do Parque"…"Sabemos que a exploração madeireira em outras terras indígenas só trouxe problemas e nenhum benefício”.
No último dia 12 de novembro, os mesmos líderes do Xingu voltaram à carga e se reuniram com representes da Funai e do Ibama para buscar uma solução definitiva para o problema. Todos os 17 caciques presentes se manifestaram contrários à exploração madeireira dentro do PIX e solicitaram aos órgãos federais que intercedessem junto aos moradores da aldeia Terra Nova para que a atividade fosse interrompida imediatamente. Ararapan Trumai não compareceu à reunião, mas enviou um representante. Este pediu ao conjunto de líderes permissão para que a extração de madeira continuasse por mais 30 dias. Teve o pedido negado.
Dependência por dívida
A necessidade de reprimir os interesses de uma liderança local é uma novidade desconfortável para os povos do Parque Indígena do Xingu. André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do ISA, explica que as lideranças do parque nunca tiveram que enfrentar este tipo de situação. “Não existe instância interna de gestão para disciplinar ações predatórias que surgem na interface com o mundo dos brancos”, destaca Villas-Bôas. “Ao mesmo tempo em que o Estado diminui sua presença lá dentro, depois de anos intermediando relações, a sociedade regional se aproxima com seus interesses e provoca situações inéditas para os índios.”
André Villas-Bôas afirma também que a relação dos índios com interesses regionais predatórios costuma se basear, geralmente, em um sistema de dependência por dívida, o que poderia estar ocorrendo também com os membros da aldeia Terra Nova. “Como a extração de madeira ilegal é uma atividade de risco, paga-se muito pouco, então os índios ficam sempre devendo para os invasores, em um ciclo difícil de ser quebrado. Talvez por isso eles tenham pedido mais um mês para quitar suas dívidas”.
Este prazo não deve ser concedido. De acordo com Paiê Kaiabi, responsável na Funai pela administração do PIX, ainda esta semana uma equipe do órgão será deslocada para a aldeia Terra Nova a fim de encerrar as atividades ilegais. “Vamos passar informações e acredito que ele vai parar com isso”. Paiê, nascido no Xingu, explica que a situação é especialmente delicada para as lideranças. “Ararapan é um líder dentro do parque, filho de um cacique importante dos Trumai, tem muitos parentes, e ninguém se sente bem em agir contra ele”, afirma. “Vamos ter que dialogar, porque ele precisa saber que a retirada de madeira vai trazer problemas para todos no parque. Na aldeia dele mesmo já tem famílias disputando o dinheiro dado pelos madeireiros”.