Uma portaria publicada no começo de outubro pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é exemplo acabado da conversa de surdo e mudo existente entre órgãos do governo federal. A portaria número 29, publicada no último dia 5 e assinada pelo superintendente regional do Incra em Rondônia, determina a demarcação de um quilombo no Vale do Guaporé, região no extremo noroeste do estado. O problema é que o quilombo, chamado Santo Antônio, tem seu território sobreposto à Reserva Biológica (Rebio) do Guaporé, uma Unidade de Conservação (UC) federal de proteção integral, administrada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A sobreposição é proibida por lei. Agora, Ibama e Incra esgrimam argumentos na tentativa de defender cada qual o seu quinhão. Enquanto isso, as 21 famílias quilombolas que habitam o local sobrevivem dos benefícios dos programas assistenciais do governo federal e a floresta em seu entorno desaparece ao ritmo constante dos tratores de madeireiros e pecuaristas.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) proíbe que os recursos naturais da Rebio do Guaporé – criada há 20 anos em uma área de mais de 605 mil hectares – sejam explorados por qualquer pessoa, mesmo que faça parte de população tradicional. Com a exceção de atividades educacionais, nada pode ser feito dentro de qualquer UC de proteção integral. Acontece que os quilombolas do vale do Guaporé são descendentes de escravos fugidos que chegaram na região há pelo menos 200 anos. É por isso que o superintendente do Incra em Rondônia, Olavo Nielow, diz que a reserva nunca deveria ter sido criada na área ocupada pela comunidade. “Não há como contestar a existência do quilombo, muito mais antigo do que a criação da reserva”, diz Nienow.
O chefe do Incra garante que o Ibama integrou o grupo de trabalho para a regularização fundiária dos quilombos – além de Santo Antonio (com área de quase 87 mil hectares), outra comunidade do Vale do Guaporé foi contemplada por portaria do Incra no dia 5: o quilombo de Pedras Negras, mais ao sul do vale – por sua vez sobreposto a uma Reserva Extrativista estadual -, foi declarado com quase 43 mil hectares. Além de Incra e Ibama, as comissões que decidiram pela demarcação dos quilombos também contaram, de acordo com as portarias, com representantes do governo estadual e da Universidade Federal de Rondônia.
Tentativas de despejo
Olavo Nienow explica que a regularização fundiária das comunidades é urgente. Relata que a comunidade de Santo Antônio, em especial, tem sofrido ao longo dos anos um histórico de ameaças, violências e tentativas de despejo. “O mais grave é que a reserva é constantemente invadida por madeireiros e não há fiscalização suficiente”, reclama. “E os quilombolas são exatamente os que mais ajudam a preservar os recursos naturais da área”. Ele afirma que, embora a relação entre Incra e Ibama realmente não seja “muito amistosa”, as divergências devem ser tratadas nas esferas federais, ou seja, em Brasília.
O gerente executivo do Ibama em Ji-Paraná (RO), Walmir de Jesus, esteve em Brasília na segunda-feira, 31 de outubro, reunido com o presidente do órgão, Marcus Barros. A sobreposição do quilombo na Rebio, entretanto, não estava na pauta da reunião. Na última sexta-feira, o gerente regional fora denunciado pela polícia por estelionato e apropriação indébita de madeira, conforme notícias veiculadas pela imprensa. Walmir de Jesus está sendo acusado de facilitar a retirada irregular de 16 mil metros cúbicos de madeira nobre, o equivalente a cerca de 8 mil árvores de uma reserva florestal de Rondônia. Sobre o caso da sobreposição, Walmir de Jesus é enfático. “Somos contrários à forma como o Incra conduziu o processo. Houve má-fé na criação dos quilombos, os limites são artificiais”.
O funcionário diz que o Ibama vai realizar um novo trabalho antropológico, segundo ele “honesto”e “sério”, para rever os limites das áreas das comunidades. “Sabemos que cerca de 80% da verdadeira área de Santo Antônio fica fora da Rebio, onde atualmente existem fazendas. Como é muito mais difícil mexer com os fazendeiros, colocaram o quilombo em cima da reserva”. Walmir de Jesus nega ainda que o Ibama tenha participado das comissões citadas nas portarias do Incra. “Do jeito que ficou, a área da Santo Antônio está superdimensionada e a da Pedras Negras, subdimensionada”. O gerente do Ibama admite que, ainda que a presença da comunidade quilombola não prejudique as condições de conservação das espécies na reserva biológica, a situação pode se agravar. “O impacto seria muito maior com a demarcação definitiva, pois muita gente que saiu de lá pode voltar e aumentar a população”.
A bióloga Mariluce Messias, presidente da Ação Ecológica Vale do Guaporé (Ecoporé), a ONG ambiental mais antiga de Rondônia, também contesta a criação de ambos os quilombos. Para ela, trata-se de “uma má notícia travestida de boa notícia”. “No caso do quilombo de Santo Antônio, a comunidade foi expulsa por fazendeiros dentro da Rebio e pressionados a demandar o reconhecimento do território ali dentro”, explica. “E, no caso do quilombo de Pedras Negras, o que aconteceu foi que a criação da área diminui drasticamente o território da comunidade, que antes podia ocupar toda a Reserva Extrativista. Agora eles têm uma área insuficiente para sobreviver e, quando buscarem recursos naturais fora dos limites do quilombo, estarão ilegais em sua própria terra”.
A tese de doutorado do historiador Marco Antônio Teixeira, da Universidade Federal de Rondônia, fundamentou a portaria do Incra que está sendo objeto de polêmica. “A criação da Rebio e a presença do Ibama foram dois fatores que oprimiram a comunidade de Santo Antônio do Guaporé”, acusa Teixeira. Ele conta que o Vale do Guaporé é a única região rondoniense com população quilombola, descendente dos escravos que trabalharam na mineração do ouro entre 1734 e 1835, a partir da antiga capital do Mato Grosso, Vila Bela da Santa Trindade. “Atualmente no vale existem 3 comunidades reconhecidas e outras oito com estudos em andamento. Mas pelo menos quatro foram extintas depois da criação da Rebio”, afirma o pesquisador. Ele diz que Santo Antônio chegou a ter 300 habitantes e que, agora, estes não passam de oitenta. “As pessoas foram expulsas e acabaram nas periferias das cidades, muitas no tráfico ou na prostituição”, afirma. “Com a demarcação das terras, os quilombolas terão liberdade para manejar os recursos naturais e cultivar roças”.
Atração turística
José Soares Neto, uma das lideranças das comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, nega que os moradores de Santo Antônio tenham se transplantado para a atual localização do quilombo. “Nunca houve nenhum quilombola nas fazendas. O que acontecia é que, no passado, nossos ancestrais viviam escondidos na mata, longe da beira do rio, para onde foram apenas mais recentemente”, explica. “O Ibama deveria ter mais responsabilidade”. A liderança quilombola diz ter sido um dos criadores da ONG Ecovale que, em 1999, se credenciou como colaboradora do Ibama em atividades de preservação do Vale do Guaporé.
Há alguns anos, inclusive, a presença das comunidades quilombolas na região era tratada como atração em pacotes de ecoturismo para a região. Os visitantes eram convidados a conviver com as comunidades centenárias e a acompanhar as atividades de extração e defumação da seringa, a coleta da castanha e a fabricação artesanal da farinha de mandioca. Soares Neto conta que a parceria se deu exclusivamente na reserva extrativista das Pedras Negras. “Porque na Rebio o Ibama nunca nos apoiou em nada, muito pelo contrário”. Ele ressalva o órgão tem quadros conscientes da situação quilombola na região mas que, em ger
al, a presença das comunidades negras incomoda mais os funcionários que trabalham na Rebio do que a existência de índios. “A discriminação é muito maior contra os negros”.
Além de estar agora sobreposta a uma comunidade quilombola, a Rebio do Guaporé tem parte de sua área incidindo sobre a Terra Indígena Massaco, onde vivem povos indígenas isolados. E também é limítrofe à TI Rio Branco, habitadada pelos Aruá, Kanoe, Makurap, Tupari, entre outros índios. O chefe da Reserva Biológica do Guaporé, Samuel Nienow – filho do superintendente do Incra no estado -, afirma que quer saber se os sítios arqueológicos encontrados na reserva são indígenas ou quilombolas. “Temos que respeitar o direito das comunidades, mas a Rebio precisa de proteção, pois abriga espécies ameaçadas de extinção e é seu local de reprodução”, afirma. Samuel Nienow diz que já ouviu falar da relação complicada entre o Ibama e os quilombos na região do Guaporé. “Mas acredito que podemos ter uma parceria com eles para somar o lado ambiental ao social”.
Presença negra na Amazônia
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), estima que existam cerca de mil comunidades quilombolas na Amazônia, sendo que o Pará concentra 335 delas e o Maranhão, 535. Números de uma presença que boa parte dos brasileiros ignora. O antropólogo Alfredo Wagner, da Universidade Federal do Amazonas, autor do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, lembra que a historiografia sempre omitiu ou subdimensionou a presença negra na maior floresta tropical do planeta. “Esta omissão combina com o discurso ambientalista radical, que quer apagar a presença do homem na Amazônia”, aponta o pesquisador. “Os chamados conservacionistas não entendem que a presença destes grupos é que permitiu a reprodução de muitas espécies naturais”, critica.
O antropólogo afirma que alguns autores, entretanto, registraram e documentaram a introdução de escravos na Amazônia, inclusive sua relação com os povos indígenas. “Estes trabalhos evidenciam que a força do trabalho escravo na região não foi reduzida, como o senso comum tende a imaginar.” Wagner afirma que a chegada dos negros pelos portos de São Luís e Turiassú, no Maranhão, e Belém, no Pará, vindos principalmente das atuais Guiné, Angola, Congo e Moçambique, começou por volta de 1755, com a criação da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão. “A data coincide com a da abolição indígena”, lembra Wagner.
Ao longo de todo o período colonial, aproximadamente 50 mil escravos teriam entrado na Amazônia. Trabalharam para os jesuítas, militares em áreas de fronteira – o que os levou para a parte ocidental do território – e para grandes empreendimentos da coroa portuguesa e de fazendeiros brasileiros, como plantações de cana de açúcar, arroz, mineração de ouro e pecuária. “Tudo isso era feito com mão-de-obra escrava. O Estado português inclusive concedia crédito para os fazendeiros comprarem escravos”. Com o abandono das fazendas e o fim da escravidão, os quilombos se constituíram como núcleos agrícolas e extrativistas praticamente isolados da sociedade nacional. “Muitos quilombolas se tornaram seringueiros como meio de vida, mas não deixaram de manter sua própria cultura”, diz a pesquisadora Jô Brandão, da Conaq.