Pouco mais de um ano depois de ser enviado ao Congresso Nacional, o projeto de lei nº 4.776/05, que vai regulamentar a gestão de florestas públicas no Brasil, foi sancionado na tarde da última quinta-feira, dia 2 de março, em Brasília, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A nova Lei (nº 11.284/06) foi publicada no Diário Oficial desta sexta-feira. Alguns dispositivos já estão valendo e outros ainda precisam ser regulamentados. A norma prevê a concessão de florestas públicas para exploração sustentável, a criação do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF) e de um Cadastro Nacional de Florestas Públicas, entre outros pontos.
Lula vetou quatro itens do texto aprovado definitivamente pela Câmara, no dia 6 de fevereiro, depois de ter passado uma primeira vez pela própria Câmara (leia mais) e pelo Senado, dias antes. O primeiro parágrafo vetado determinava que as concessões de florestas com mais de 2.500 hectares precisariam ser aprovadas pelo Congresso Nacional. O segundo ponto rejeitado previa a instituição de um conselho gestor para o SFB e o FNDF com participação de representantes de oito ministérios. O terceiro veto retirou da lei uma restrição que impedia modificações na dotação orçamentária dos recursos gerados pelas concessões que serão destinados ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O último tópico cortado da redação original definia que a indicação dos diretores do SFB deveria ser referendada pelo Senado.
Com exceção do item relacionado à questão orçamentária, os outros pontos vetados foram inseridos no texto do PL no Senado pelo relator da matéria, senador Agripino Maia (PFL-RN). O Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirma que as alterações quebraram o acordo firmado entre o governo e a oposição, ainda na Câmara, para que a proposta fosse aprovada no Senado rapidamente e sem modificações. Segundo os técnicos do governo, os novos dispositivos acrescentados por Maia são todos inconstitucionais.
A aprovação do projeto no Senado chegou a ficar ameaçada por obstáculos colocados por parlamentares de oposição. Alguns deles tentaram usar as negociações em torno da proposta para conseguir do governo o atendimento de reivindicações que nada tinham a ver com a matéria, como a liberação de verbas e concessões nas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que estão em andamento no Congresso. Um novo acordo com a oposição definiu que as alterações propostas pelo PFL deveriam ser aprovadas imediatamente pela Câmara, o que acabou ocorrendo no dia 6/2.
"Reforma florestal"
Em seu discurso durante a solenidade de assinatura da nova lei, no Palácio do Planalto, o presidente Lula qualificou-a como uma “revolução na ocupação das florestas” e uma “reforma florestal”. Lula voltou a dizer que a política ambiental de seu governo vem sendo executada por todos os setores da administração federal. “O PL de gestão é a coroação de uma série da ações integradas que apontam para uma novo tipo de desenvolvimento na Amazônia”, afirmou. O presidente citou a redução em 31% do desmatamento na região, entre os períodos 2004-2005 e 2003-2004, a criação de 15 milhões de hectares em Unidades de Conservação e o Plano BR-163 Sustentável, que prevê uma série de ações socioambientais para a rodovia que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), como conquistas da política ambiental adotada em seu mandato.
Apesar de várias ressalvas, a nova lei também está sendo saudada por grande parte do movimento socioambientalista como um marco nas políticas ambientais, especialmente para o combate à grilagem de terras e ao desmatamento. “Quem ganha com o novo sistema de gestão das florestas são os Estados, os municípios e o setor florestal brasileiro, que, até então, não tinha um marco legal definido. O principal objetivo do projeto é combater a grilagem de terras”, comentou Mauro Armelin, coordenador de Políticas Públicas do WWF-Brasil.
O comércio madeireiro no País, em grande parte, hoje, é alimentado com extrações ilegais – há estimativas apontando que mais de 70% da madeira comercializada em território nacional teria origem ilegal. De acordo com o governo, a intenção da lei seria justamente tentar proteger e estimular as empresas que operam na legalidade sustentavelmente o mais rápido possível e, assim, diminuir o espaço para o mercado negro e as madeireiras que trabalham de forma predatória. Além disso, ao obrigar a identificação e o cadastramento das terras onde estão localizadas as florestas, a norma também seria eficaz no combate à grilagem, considerada uma das principais causas dos conflitos hoje existentes na Amazônia. Mais de 60% das florestas da região estão em terras públicas.
“Esta lei não é uma panacéia, mas mais um instrumento para tentar manter as florestas de pé por meio do casamento entre a exploração econômica sustentável e a conservação”, afirmou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ela fez questão de dizer que o governo Lula nunca “satanizou” nenhum setor econômico e que a nova legislação é fruto de negociações realizadas inclusive com a indústria madeireira.
“Esta é uma das ações mais importantes já adotadas no Brasil para tentar responder ao desafio de se conservar a floresta e, ao mesmo tempo, explorá-la de forma racional. Acho que estamos tirando um atraso de mais de cem anos com esta lei”, avaliou Jorge Viana (PT), governador do Acre. Ele esteve presente ao Palácio do Planalto e foi um dos maiores entusiastas do projeto de lei desde o seu envio ao Congresso, no ano passado. “A partir deste novo marco legal, poderemos garantir uma economia sustentável para a população de toda a Amazônia”.
O PL causou polêmica durante o ano passado entre alguns ambientalistas, pesquisadores, parlamentares e servidores públicos, que consideram a concessão de florestas mediante licitação pública por até 40 anos – conforme determina a nova legislação – uma forma de privatização e até de internacionalização de grandes porções de terra na Amazônia. Em carta que circulou pela Internet, o renomado geógrafo Aziz Ab´Saber, por exemplo, citou os modelos florestais de países do Sudeste Asiático e da África como causadores de “gigantesco desastre ecológico-ambiental, com perdas irreparáveis nos domínios da flora e da fauna”. No caso da Austrália, o professor Aziz apontou a “perda de controle na gerência e fiscalização das atividades” (saiba mais).
Caráter experimental
Em seus primeiros dez anos, o novo sistema será operado em caráter experimental e, segundo estimativa do MMA, deverá dispor aproximadamente 13 milhões de hectares de florestas na Amazônia para exploração comercial, o que equivale a 3% do território amazônico. De acordo com o diretor de Florestas do MMA, Tasso Azevedo, é possível que, até o início do ano que vem, as primeiras concessões comecem a ser licitadas. Azevedo diz ainda que as primeiras áreas concedidas estarão localizadas no Sul do Pará, na área de influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), dentro do Distrito Florestal Sustentável (DFS) criado pelo governo no dia 13 de fevereiro. Também devem começar a ser exploradas nessa primeira leva de concessões as Florestas Nacionais do Jamari (RO) e do Carajás (PA), além das Florestas Estaduais de Maués (AM) e de Antimari (AC).
A nova legislação prevê a concessão de unidades de manejo pequenas, médias e grandes, para garantir o acesso de pequenos e médios produtores ao novo sistema. Além disso, também determina que, antes da destinação de uma área para concessões comerciais, deverão ser feitos estudos para criação de Unidades de Conservação de uso sustentável (Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável) e assentamentos florestais, que configuram as outras duas
formas de gestão das florestas públicas delineadas pela lei.
As concessões autorizam a exploração de serviços (turismo ecológico, por exemplo) e produtos, mas não significarão qualquer tipo de posse ou domínio sobre a área explorada. Os contratos terão prazos de até 40 anos e serão alvo de auditorias independentes de três em três anos. Além disso, ao final de cinco anos de aplicação da lei, será realizada uma avaliação geral do sistema. O Ibama vai fiscalizar os planos de manejo florestal e o SFB será responsável pelo cumprimento dos contratos de concessão, pela gestão do FNDF e pelo fomento à atividade florestal.
Até 20% da receita gerada pelas concessões servirá para custear todo o modelo, incluindo verbas para o SFB e o Ibama. Os 80% restantes serão divididos da seguinte forma: 30% para os Estados onde estiver localizada a floresta, 30% para os municípios e 40% para o FNDF. No caso das Flonas, 40% daquele total irão para o Ibama e o restante será igualmente dividido entre Estados, municípios e o FNDF.
Leia editorial do Instituto Socioambiental, publicado em junho de 2005, sobre o o projeto de lei que agora virou lei.
Confira os principais pontos da lei
Formas de gestão – Hoje existem duas formas de manejo em terras públicas: a produção florestal comunitária (populações tradicionais e locais, Projetos de Desenvolvimento Sustentável-PDS, assentamentos agroflorestais, Reservas Extrativistas) e, por gestão direta do Estado, em Unidades de Conservação específicas (Florestas Nacionais e Estaduais). O projeto acrescenta a essas duas uma terceira, que são as concessões para manejo florestal para empresas privadas mediante licitação pública com critérios ambientais e sociais.
Exigência de licenciamento e EIA/Rima – Os procedimentos necessários às concessões deverão ser acompanhados de licenciamento ambiental. As obras de infra-estrutura associadas às atividades desenvolvidas (estradas, construções, portos etc.) e, nos casos onde for constatado risco ambiental, as próprias atividades também precisarão de Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima).
Limites e prazos das concessões – O prazo máximo da concessão será de 40 anos. Todo o sistema de concessões será reavaliado depois dos cinco anos iniciais. Em cada lote de concessões, o concessionário (individualmente ou em consórcio) poderá deter no máximo dois contratos e sua concessão ficará limitada a 10% da área total disponível para concessões num prazo de dez anos.
Concessões para empresas e organizações nacionais – Apenas empresas ou pessoas jurídicas nacionais poderão concorrer às licitações.
Regras de transição – Os órgãos ambientais e fundiários competentes vão averiguar o andamento dos planos de manejo em operação legalizados até a data em que a lei entrar em vigor e o tipo de ocupação da área onde eles estão ocorrendo. Caso não sejam identificadas irregularidades técnicas ou em relação à posse da área (grilagem), os planos poderão ser mantidos até que seja realizado processo licitatório na área.
BR-163 – Foi criada uma regra de transição especial para a área de influência da rodovia BR-163: até a primeira licitação, o Poder Público poderá realizar concessões florestais na região numa faixa de cem quilômetros ao longo da estrada (unidades de manejo em áreas públicas não ultrapassando, somadas, os 750 mil hectares) e em florestas nacionais.
Garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais e locais – O Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF) de uma área deverá prever zonas de uso restrito destinadas às comunidades locais; antes de dar a concessão, o Poder Público terá de identificar e regularizar a posse das comunidades locais e tradicionais que eventualmente vivam na área apta à concessão. O conceito de comunidade local utilizado é o definido pela Convenção de Diversidade Biológica (CDB): “populações tradicionais e outros grupos humanos, organizados por gerações sucessivas, com estilo de vida relevante à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica”.
Serviço Florestal Brasileiro (SFB) – Deverá atuar como gestor do sistema e fomentar o desenvolvimento florestal. A idéia é restringir a atuação do órgão à gestão das florestas de domínio público federal e deixar as atividades relativas às florestas plantadas (silvicultura) em áreas privadas sob responsabilidade do Ministério da Agricultura (MAPA). Também deverá gerir o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF).
Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF) – Os recursos do Fundo deverão ser investidos prioritariamente em: pesquisa e desenvolvimento tecnológico em manejo florestal; assistência técnica; recuperação de áreas degradadas com espécies nativas; aproveitamento econômico racional e sustentável dos recursos florestais; controle e monitoramento das atividades florestais e desmatamentos; capacitação em manejo florestal e formação de agentes multiplicadores; proteção e conservação. Os recursos do fundo somente poderão ser destinados a órgãos e entidades públicas – principalmente de pesquisa – ou de entidades privadas sem fins lucrativos. Não há definição específica sobre percentuais a serem aplicados em cada área.
Estímulo à criação de novas Unidades de Conservação – A proposta determina que, antes de fazer as concessões florestais, o Poder Público deverá definir as áreas prioritárias para as concessões, para o manejo comunitário e para a criação de novas UCs. O projeto, portanto, impõe a necessidade de se estudar e criar novas áreas protegidas.
Recursos e competência do Ibama – O Ibama será responsável pela autorização, fiscalização e controle das atividades florestais desenvolvidas em áreas federais. Também deverá expedir licenças e estudos de impacto ambiental para obras associadas à produção florestal. O percentual de 30% da parcela fixa anual destinada ao SFB ou 9% do preço total pago pela concessão deverá ser destinado ao órgão. A Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), que hoje, muitas vezes, não tem destinação certa, será vinculada ao orçamento da área de fiscalização do Ibama.
Transferência de competências para Estados e Municípios – Descentralização das atribuições do Ibama. Órgãos ambientais estaduais poderão autorizar e fiscalizar a exploração florestal em áreas sob sua jurisdição. As esferas de governo estadual e municipal também deverão criar órgãos gestores das concessões florestais em áreas de domínio não federal. Os órgãos ambientais municipais terão esfera de atuação sobre florestas públicas e UCs municipais ou quando forem firmados convênios com o órgão ambiental competente.