O covarde assassinato no dia 12 de fevereiro de 2005 da Irmã Dorothy Mae Stang, 73 anos, missionária americana naturalizada brasileira, ganhou repercussão internacional, provocando uma mobilização popular para clamar por medidas mais efetivas do governo federal e do estado do Pará na cessação da violência e para a proteção da Amazônia e seus habitantes, que dependem dela para sobreviver e, principalmente, garantir a segurança das pessoas que trabalham contra a destruição que assola as matas e contra os fazendeiros da região que a provocam.
Dorothy atuava há 20 anos no trabalho com camponeses e na defesa dos direitos humanos. Naquele dia 12 de fevereiro, nas proximidades do município de Anapu, interior do Pará, após ser abordada por dois pistoleiros e questionada se portava alguma arma, irmã Dorothy leu uma passagem da Bíblia e em seguida foi executada com seis tiros que lhe tiraram a vida.
A justiça condenou os executores, Rayfran das Neves Sales, o "Fogoió", e Clodoaldo Carlos Batista, o "Eduardo", a 27 e 17 anos de prisão, respectivamente, pelo assassinato da missionária. Amair Feijoli da Cunha, o "Tato", foi condenado a 27 anos de prisão como intermediário do assassinato, mas teve a pena reduzida por colaborar com o processo.
Em maio de 2007, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, foi condenado a 30 anos de reclusão em regime fechado, pela acusação de ser o mandante do crime.
Como previa a legislação brasileira, por terem sido condenados a mais de 20 anos de reclusão, Rayfran e Vitalmiro foram submetidos a um novo julgamento. O acusado de executar a irmã foi condenado novamente, com a pena acrescida de mais um ano, porém durante seu depoimento procurou inocentar o fazendeiro Bida de ser o mandante do crime, alegando que se sentia “ameaçado” pela missionária, assumindo sozinho a autoria do crime.
O Júri, baseado apenas neste depoimento testemunhal (gif), inocentou o fazendeiro por cinco votos a dois, colocando-o imediatamente em liberdade.
A absolvição de Bida surpreendeu o país inteiro. A constatação da impunidade percorreu o país, causando manifestações de revolta em diversas esferas e principalmente da família.
O promotor Edson Souza, que atuou na acusação pelo Ministério Público, impetrou uma apelação pedindo novo julgamento, com a fundamentação de que a decisão dos jurados foi contrária às provas dos autos. A apelação deverá ser apreciada até o final do ano.
No primeiro julgamento o fazendeiro Bida foi condenado a 30 anos de reclusão em regime fechado e no segundo julgamento, absolvido. O duplo julgamento em um mesmo tribunal tornou-se incoerente com o princípio que está expresso no Código de Processo Penal, de que a decisão do júri é soberana, e com a completa inversão de veredicto, era necessário uma reforma na ordem jurídica que disciplina o procedimento do Tribunal do Júri. No dia 09 de junho de 2008, através da Lei 11.689, foi abolido o protesto por novo júri, corrigindo essa distorção. Essa lei, além de regular o procedimento, torna mais acessíveis aos jurados os quesitos formulados, permitindo uma melhor decisão. Corrigida essa falha, voltamos ao caso da irmã Dorothy.
A apelação impetrada pelo promotor Edson Souza, segundo o Código, só pode versar sobre nulidades processuais após a pronúncia, quais sejam: se o juiz sentenciar contrariamente a lei ou decisão dos jurados e se for essa decisão contrária às provas dos autos. Se a apelação da acusação for acolhida, o julgamento de Bida será anulado e ele deverá ser submetido a novo julgamento. Mas, se a apelação não for acolhida ? Se o tribunal superior entender que os jurados agiram de acordo com a prova testemunhal? A sentença transitará em julgado, confirmando a decisão e tornando-a imutável. E se daqui a algum tempo surgirem provas irrefutáveis da participação de Vitalmiro Bastos na “encomenda” da morte da irmã Dorothy? O que poderá ser feito então?
A coisa julgada material torna-se definitiva fora do processo em que foi proferida para impedir uma nova persecutio criminis sobre o mesmo fato delituoso que constituiu objeto da decisão tornada preclusa e imutável em virtude da coisa julgada formal. Ao tornar imutável os efeitos da sentença, impossibilita o reexame do mérito da questão decidida.
É vedada a interposição de revisão criminal para desconstituir a sentença penal absolutória (revisão pro societate), sob pena de ofensa ao princípio da irretratabilidade dessas decisões, confirmadas pelo próprio art. 621 do CPP, que elenca somente “sentenças condenatórias”. É defeso também na revisão criminal impetrada pelo condenado agravar sua situação, proibindo a reformatio in pejus. Neste caso, a revisão criminal feita pelo condenado deve basear-se na existência de uma pretensão objetiva razoável. Após o processo findo (coisa julgada transitada em julgado), deve haver algum prejuízo ao condenado – erro in judicando ou erro in procedendo – que justifique o processo impugnativo. Quanto a possibilidade jurídica do pedido, por exemplo, existência de sentença condenatória e existência de alguma hipótese legal de cabimento, elencadas no art. 621 do CPP. Ampliando o conceito, deve haver sentença condenatória, transitada em julgado, insuscetível de recurso, que esteja impregnada de vícios (erro ou injustiça).
O impedimento de ação revisional pro societate e a principal razão que norteia aqueles que são contrários à possibilidade de cabimento desta revisão, é a preservação da segurança jurídica, da imutabilidade da sentença, que não pode estar, a cada momento, sob reexame, a ponto de tornar-se assunto ad eternum, afirmando que somente caberia quando em jogo a própria liberdade humana.
De toda a sorte não se pode negar que é possível a revisão, não só quando interessa ao acusado, mas também quando é favorável aos interesses da justiça, ou seja, quando, após o trânsito em julgado da sentença absolutória, descobrirem-se provas da responsabilidade criminal do condenado, ou então, que as provas produzidas em seu benefício e que fundamentaram a absolvição ou a extinção da punibilidade, revelaram-se falsas, como também quando pessoas arroladas como testemunhas prestarem falso testemunho, mesmo de livre vontade, e principalmente quando sob coação.
Nestes casos os interesses da coletividade devem prevalecer sobre os direitos individuais para preservar a paz social.
Não se pode duvidar que o objetivo do processo penal é de oferecer à sociedade a devida e esperada segurança e confiança na preservação da mesma. A supremacia do interesse público sobre o privado, que constitui um dos princípios da Administração Pública, também deve ser observada nas questões processuais penais. A justiça diz respeito a todos e, portanto, é crucial que ela esteja presente no dia a dia da coletividade. Nem sempre os conceitos contidos na Constituição, como dignidade de pessoa humana e outros, devem perpetuar situações que se tornem insustentáveis no meio social, provocando a sensação de impunidade.
A revisão pro societate, dentro deste contexto, seria necessária para que se alcançasse a verdadeira justiça e a almejada segurança de todos. É de suma importância que tenhamos em mente a verdadeira abrangência do termo "justiça", para podermos avaliar a importância da revisão de sentenças absolutórias, a fim de que haja, inclusive, um equilíbrio saudável para a vida social dos diversos direitos e garantias constitucionais, os quais, a propósito, não são absolutos.
Se a sentença condenatória pode ser revista em favor do condenado, porque não poderia ser, também, quando o interesse em jogo é da sociedade e da própria justiça? Se, por exemplo, o réu falsifica sua própria certidão de óbito visando a extinção da punibilidade, ou ainda, falsifica provas para obter sua absolvição, por que a s
entença que lhe foi favorável no processo não pode ser desconstituída através da revisão criminal? No âmbito do Tribunal do Júri, poderia o condenado coagir testemunhas, financeira ou moralmente, para inocentá-lo? Esta sentença não deveria ser atacada por revisão criminal pelos parentes da vítima que sentiram traídos pelo Estado?
Desta forma, respeitando inúmeras opiniões em contrário, e com a prudência de que dentro da revisão criminal pro societate, também sejam exigidos os requisitos de admissibilidade, exatamente como para o condenado, principalmente nos casos excepcionais, naqueles crimes que provoquem verdadeira comoção social, em homenagem a justa retribuição pelo crime cometido, e em prol do fim da impunidade.
Somente o Ministério Público pode ser dotado de legitimidade, nos mesmos casos de liberdade de ação incondicionada, ou sendo legitimo que somente os familiares da vítima ou quem se sentir prejudicado diretamente pela absolvição do condenado, poderiam representar.
A sentença no processo de revisão nestes casos, deverá ser submetida ao Supremo Tribunal de Justiça, por tratar-se de matéria excepcional, e somente por voto unânime. Fato novo ou não apreciado no julgado é indispensável para propor a revisão.
Se assim não for possível, percebe-se também afronta a dignidade humana, estimula a impunidade e aumenta ainda mais a descrença nos valores de paz, justiça e esperança. O respeito à dignidade humana não significa deixar impune os culpados. É estarrecedor constatar, como no triste episódio da missionária, a impunidade que ainda ocorre nos limites nacionais.
É imprescindível que haja nova reforma no processo penal, para regular o procedimento da revisão em prol da sociedade, para que o Poder Judiciário seja visto como instituição comprometida com a verdade, elevando os índices de confiança da sociedade na segurança pública e na justiça.
Márcia Cruz Heofacker
Acadêmica de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Bibliografia
CERONI, Carlos Roberto Barros. Revisão Criminal. Características, conseqüências e abrangência. 1ª ed. Ed. Juarez de Oliveira Ltda. São Paulo, 2005
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. III, 2ª ed. Ed. Millennium. Campinas/SP, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. Ed. Atlas. São Paulo, 2006.
Revistas e jornais sobre o assunto. Caso da Irmã Dorothy. 2005 a 2008.
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