Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, 14/04/2011
O Parque Indígena do Xingu foi criado depois de uma luta de quase dez anos. O primeiro anteprojeto de criação do parque foi apresentado em 1952, no governo Vargas.
Três eram seus objetivos principais: preparar as comunidades indígenas para o contato inevitável com a nossa sociedade; amenizar a pressão que a sociedade exercia sobre essas comunidades, evitando um contato brusco, com consequências desastrosas (como, mais tarde, foi confirmado em outras regiões); e preservar as condições necessárias de fauna e flora, garantindo que as comunidades xinguanas seguissem mantendo seu modo de vida, indissociável da terra.
O anteprojeto foi formalmente apresentado ao presidente Getulio Vargas pela comitiva liderada pelo vice-presidente Café Filho. Dela participaram grandes nomes, que foram fundamentais para o projeto e que meu pai, Orlando Villas Bôas, sempre fazia questão de mencionar: Noel Nutels, médico sanitarista; José Maria da Gama Malcher, presidente do Serviço de Proteção ao Índio (SPI); brigadeiro Raimundo Vasconcelos Aboim; dra. Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional; o jornalista Jorge Ferreira e os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro.
No entanto, o parque não sensibilizou Vargas. Meu pai contava assim esse episódio: "Sua excelência, de mãos às costas, cenho cerrado, ouviu a proposta e só não se tornou mais sisudo porque foi obrigado a abrir um largo sorriso diante de uma irreverência inteligente "desafogadora" do Noel Nutels".
Juscelino Kubitschek também se mostrou sensível à ideia de criação do parque, mais até do que Getulio Vargas, mas teria confessado que não teria força política para criá-lo.
Em 1961, por decreto, Jânio Quadros, em sua breve passagem pela Presidência, criou, num de seus primeiros atos, o Parque do Xingu, convencido da importância da criação de uma reserva para abrigar as populações indígenas. Por que por decreto? Porque o projeto jamais passaria pelo Congresso Nacional, já que contrariava interesses econômicos, principalmente, claro, do Estado do Mato Grosso.
A criação do parque não foi um fato isolado: a política indigenista brasileira tomou outro rumo, diferente daquele da política do marechal Rondon, "pai" do indigenismo brasileiro. Ficou claro, com a criação do parque, que, para garantir a sobrevivência dos indígenas, seria preciso garantir suas terras, de forma que o índio seguisse vivendo em sua cultura e organização social, em equilíbrio com a natureza.
Para os irmãos Villas Bôas, a política indigenista deveria se apoiar em duas máximas, simples e concretas: primeiro, o índio só sobrevive na própria cultura; segundo, não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje… como também não havia meio século atrás.
No parque, a política indigenista dos Villas Bôas pode ser implantada tal como a conceberam, proporcionando ao índio a proteção necessária que o preparasse para o choque inevitável com a nossa sociedade. Cumpriu a sua função.
As ameaças que o índio, não só o xinguano, enfrenta não são novas, como provam políticas indigenistas de governos passados. O famoso Plano de Integração Nacional, do presidente Médici, por exemplo, tinha duas diretrizes em relação ao índio: integrá-los o mais rápido possível à economia de mercado e impedir que constituíssem um obstáculo ao desenvolvimento do país.
Mas o Parque Indígena do Xingu, que celebra 50 anos hoje, como dizia o imortal Antonio Callado, é criação amorosa e, portanto, dura muito, ou talvez nunca acabe; assim é "a República dos Irmãos Villas Bôas", a mais importante reserva indígena do continente americano e o mais belo mosaico linguístico-cultural do mundo de acordo com a Unesco.
NOEL VILLAS BÔAS, 35, formado em direito e filosofia, é filho do sertanista Orlando Villas Bôas, um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Foi membro do conselho indigenista da Funai por dois mandatos (de 2000 a 2004).