ISA – Editado após um longo e amplo processo de discussão que envolveu 13 Ministérios, a Advocacia Geral da União e o movimento quilombola, e adotado como o marco jurídico que sustenta toda a política federal de titulação de terras de quilombos, o Decreto Federal nº 4887/03 corre agora sério risco de ser anulado.
Alegando a inconstitucionalidade do decreto, o PFL, no final de junho, ingressou no STF com a ADIN nº 3239, com o objetivo de sustar seus efeitos jurídicos. Em sua ação, o partido alega que ele não tem uma base legal que o sustente e questiona as principais disposições do decreto, dentre elas o critério para a identificação de uma comunidade quilombola, o critério para a delimitação do território a ser titulado e a necessidade de desapropriação de terras particulares, de titularidade de não-quilombolas, que estiverem dentro dos territórios a serem titulados.
Um dos grandes avanços da nova legislação é reconhecer que o território a ser titulado não deve abranger apenas a área onde estão localizadas as moradias, pois isso não é suficiente para garantir uma vida digna às comunidades e desconhece o tipo de posse praticado por grande parte das comunidades, denominada de posse agroecológica, que abrange também as áreas necessárias à agricultura, pesca, caça e extrativismo.
Segundo o PFL, esse critério é “excessivamente amplo” e não se pode “qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural”, pois “a área cuja propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão-somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formaram”. Essa tese, se vencedora, restringirá imensamente o número de comunidades que teriam garantido o direito à terra, pois exige que se comprove a posse da mesma área por mais de um século, o que é uma grande injustiça, já que é praticamente impossível comprovar uma posse tão antiga e, mais, é notório que grande parte das comunidades tem em sua história casos de invasão e apropriação indevida de suas terras, o que fez com que muitas já tenham sido expulsas de seus territórios originais, fato este que motivou o constituinte de 1988 a exigir que seus territórios fossem titulados, como uma forma de evitar novos abusos.
O mais curioso, entretanto, é a alegação de que seria inconstitucional a desapropriação das terras de terceiros incidentes sobre os territórios quilombolas. Segundo o PFL, as terras onde hoje se localizam as comunidades seriam, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, automaticamente de propriedade das comunidades, sendo desnecessário, portanto, a desapropriação. Na prática, o Partido da Frente Liberal, que tem como um de seus princípios institucionais “perfilhar o respeito ao direito de propriedade”, está defendendo que todos os títulos de propriedade incidentes sobre terras de quilombos são nulos, ou seja, defende a tese de que a própria Constituição teria expropriado essas terras, sem necessidade de indenização a seus titulares. Essa tese, se confirmada, gerará inúmeros conflitos no campo, pois dificilmente os detentores dos títulos aceitarão sair da terra sem nenhum tipo de indenização, razão pela qual o próprio movimento quilombola vem há anos pleiteando que se indenizasse os proprietários, para que os conflitos fossem rápida e amistosamente resolvidos.
Se anulado o decreto, a ainda tímida política federal de reconhecimento e titulação de terras de quilombos voltará à estaca zero, depois de quase dois anos de discussões e preparações. E, pior, toda a mobilização social que ocorreu em torno dele terá sido jogada por água abaixo.
A ação está nas mãos do ministro Cézar Peluso, mas, como foi pedida medida cautelar, ela deve em breve ir a plenário, tão logo o STF retorne do recesso.
Raul Silva Telles do Valle.