A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie suspendeu, na última segunda-feira, dia 3/1, a portaria 820/98 do Ministério da Justiça que oficializou a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. A decisão liminar atendeu a uma Ação Cautelar ajuizada pelo senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) e volta a impedir a homologação em área contínua da TI, pelo menos até que os outros ministros do tribunal opinem sobre a questão, o que pode ocorrer em fevereiro. Há ainda a possibilidade do relator do caso, ministro Carlos Aires Britto, cassar a deliberação de sua colega.
Em sua decisão, Gracie argumenta que a TI não poderia ser homologada antes do julgamento de mérito da ação impetrada por alguns fazendeiros contra a portaria 820 ou antes de uma outra decisão do STF, esta sobre a Reclamação 2833 da Procuradoria-Geral da República (PGR) que, por sua vez, questiona um suposto conflito federativo entre a União e o estado de Roraima na mais recente batalha judicial envolvendo o caso.
No último dia 15 de dezembro, Britto havia suspendido as liminares que impossibilitavam a homologação em área contínua. Com isso, a medida voltara a depender apenas da assinatura de um decreto pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Informações divulgadas pela imprensa nos últimos dias davam conta de que o governo estaria fazendo os ajustes finais no texto do ato e pretendia publicá-lo até o final deste mês.
“É a demora do governo que está permitindo todas essas reações, tanto as ações judiciais quanto os atos de violência”, aponta Joênia Wapixana, advogada do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ela refere-se, em especial, às agressões promovidas por produtores rurais, no final de novembro passado (confira). Joênia alerta que a última decisão do STF pode estimular novos atos de violência. “O governo e o Ministério Público Federal têm de tomar providências urgentes, precisamos garantir a segurança da comunidade”.
Procurada pela reportagem do ISA, a Advocacia-Geral da União(AGU) informou que ainda está estudando a possibilidade de recorrer da decisão de Ellen Gracie.
Há mais de 20 anos, as comunidades indígenas Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana lutam pelo reconhecimento definitivo da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, mas somente em 1998 o Ministério da Justiça publicou a portaria que oficializou a demarcação em área contínua, totalizando um território de 1,67 milhão de hectares. Em 1999, com o apoio de políticos, de empresários e do governo estadual, fazendeiros da região impetraram uma ação popular contra a portaria (foi esta última ação que havia sido suspensa por Britto, no dia 15/12).
Argumentos antigos
Em seu pedido de liminar, Cavalcanti repete os argumentos já utilizados na ação popular que originou o processo da Raposa-Serra do Sol. Entre eles, o de que a homologação em área contínua “importará na retirada de milhares de pessoas” e no acirramento dos conflitos na região.
“Quando o território foi demarcado não houve aumento dos conflitos, esse discurso é usado para tentar assustar e constranger a sociedade”, rebate Joênia. Para ela, é a desinformação e a indefinição da situação que vem provocando insegurança na área. “Em outros lugares já foram feitas homologações em condições semelhantes e cada parte encontrou alternativas adequadas”.
A advogada também contesta a idéia de que a homologação em área contínua trará transtorno e mudanças abruptas para as populações não-indígenas. “O processo deve ser gradual, feito dentro da lei e seguindo um plano de retirada que disponibilize novas terras para essas pessoas. O governo diz que tem esse plano e temos informações de que o Incra estaria estudando o caso”.
Ao dizer que a demarcação proposta pelo MJ "abrange três municípios" e que a homologação "importará na retirada de milhares de pessoas" o pedido de liminar superestima a ocupação de não-indígenas na região. Na verdade, apenas a sede do município de Uiramutã está dentro do território demarcado – sua população estimada é de 6,3 mil pessoas, sendo que, de acordo com dados do CIR, cerca de 700 são não-indígenas. A cidade foi criada em 1996, após a identificação da TI.
Cavalcanti também volta a apontar um suposto prejuízo econômico ao estado em virtude da desativação das plantações de arroz existentes na área. A quase totalidade do rebanho bovino e da produção agrícola da região, no entanto, está hoje nas mãos dos próprios índios. Além disso, sabe-se que a frente agrícola mais dinâmica em Roraima está no sul do estado e não na parte abrangida pela Raposa-Serra do Sol.
Um senador contra a causa indígena
Mozarildo Cavalcanti só pôde sair vitorioso na última decisão do STF sobre a Raposa-Serra do Sol porque requereu e conseguiu ser admitido como “terceiro interessado” na Reclamação 2833 da PGR, depois de já ter conquistado a mesma competência na ação popular que originou todo o processo.
O senador tem se mostrado um fiel aliado dos grupos que se opõem à demarcação das TIs em Roraima. Com a apresentação de projetos e a coordenação de investigações parlamentares, ele se destacou, nos últimos anos, como uma das principais vozes dos setores antiindígenas brasileiros no Congresso Nacional, embora se auto-intitule defensor dos interesses dos índios.
Cavalcanti foi eleito para o Senado em 1998, depois de exercer o mandato de deputado federal por duas vezes (1983-1987 e 1987-1991). Atualmente, é líder do Partido Popular Socialista (PPS) e presidente da Comissão Temporária Externa que analisa a questão indígena e fundiária nos estados de Roraima, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Rio Grande do Sul. No ano passado, a comissão apresentou o Projeto de Lei (PLS) 188, que, ao alterar o procedimento para a demarcação, cria uma série de dificuldades para a criação de novas TIs, entre elas, institui o controle do Senado sobre o processo.
Em 2001, o senador já havia sido responsável pelo requerimento para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as demarcações de áreas indígenas na Amazônia. Na prática, a investigação acabou tentando atingir os processos relativos às TIs Raposa-Serra do Sol e Yanomami(RR/AM).
O parlamentar também é autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 38/99, que limita a 50% do território de cada estado a área total passível de ser reconhecida como Unidade de Conservação (UC) ou TI.
Cavalcanti exerceu ainda a presidência da CPI destinada a investigar a atuação das organizações não-governamentais, mas que, na verdade, ficou marcada pela tentativa de criminalizá-las. No ano passado, ele conseguiu aprovar no Senado o Projeto de Lei 07/03, que impõe restrições ao direito de livre associação e cria uma série de controles burocráticos para restringir a ação das ONGs.