O Kuarup, homenagem tradicional aos mortos ilustres do Xingu, foi também palco este ano de articulações políticas em prol da preservação ambiental. A cerimônia que se encerrou ontem (26/08) aconteceu este ano na aldeia kuikuro de Ipatse. Um dos líderes kalapalo, Kurikaré, aproveitou a presença no evento do coordenador de Políticas Indígenas de Mato Grosso, José Seixas da Silva, para pedir que o governo do estado desautorize a construção das barragens Paranatinga I e II, no rio Culuene, cerca de 100 km ao sul do parque.
Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os Kalapalo dizem ser possível demonstrar por vestígios arqueológicos que a área era ocupada por seus ancestrais e relacionam esse território às origens históricas do próprio Kuarup. Kurikaré considera a área "sagrada". O governo do estado alega que o projeto é particular e que não pode se envolver na questão. As obras estão atualmente paradas por ordem da Justiça Federal.
Fausto lembra que o problema de as nascentes não estarem dentro dos limites do parque remonta à sua demarcação, no início da década de 60. Ele conta que o projeto original, defendido pelos irmãos Villas Boas, por Darcy Ribeiro e pelo marechal Cândido Rondon junto a Getúlio Vargas, previa uma área quatro vezes maior para o parque. Por causa da redução, várias áreas que podem ser cientificamente comprovadas como indígenas e que ficam na região das nascentes, explica, ficaram de fora dos limite do parque. "Metade das terras kalapalo está fora, por exemplo", diz ele.
Segundo a antropóloga e sanitarista Cibele Verani, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e uma das convidadas para o Kuarup, a devastação na região já se constitui num "enorme problema de saúde" no parque." Vinte anos atrás, nós tínhamos água limpa para beber em qualquer uma dessas aldeias. Hoje, a maioria das pessoas já não pode beber água de alguns rios. E, de lá pra cá, nós temos visto a poluição descer, inclusive fazendo escassear a pesca", conta ela.
O Parque Indígena do Xingu conta atualmente com cerca de 2,6 milhões de hectares e tem hoje quase 5 mil habitantes. Junto com a área Kayapó, com que faz divisa ao norte, constitui-se, segundo a Fundação Nacional do Ìndio, na maior área contínua de preservação da sociobiodiversidade brasileira, num total de quase 15 milhões de hectares.
O problema é que, ao sul, ficam fora do parque as nascentes dos rios formadores do Xingu, o principal da região, e considerado o maior "rio indígena" do Brasil, pela grande quantidade dessas comunidades às suas margens. Em volta das nascentes de rios como Culuene, Tanguro, Arraias, Ronuro, Batovi e Curisevo, têm se alastrado nos últimos anos as lavouras extensivas de soja e algodão.
Em algumas fazendas, como é visível de avião, as plantações não respeitam as matas ciliares, e as marcas de erosão se multiplicam. O resultado já perceptível pelos índios é o assoreamento. "Hoje, dá pra atravessar a pé o rio. Antigamente, era fundo", conta Fadiuvi, líder dos índios kalapalo. Ele conta também que as comunidades se incomodam com a presença crescente do turismo de pesca nos rios da região. O lixo deixado nas praias pelos turistas desce para dentro do parque na época das chuvas, e aparece na barriga dos peixes e tartarugas que servem de alimentação para os xinguanos – tradicionalmente, todos os povos do Alto Xingu evitam a carne de caça.
O que os índios temem, mas ainda não dispõem de estudos para comprovar, é a possível contaminação das águas por agrotóxicos. Segundo Carlos Fausto, o perigo é real, principalmente por causa desse hábito xinguano de comer peixe. "Nós sabemos que os efeitos da acumulação de alguns componentes, como os metais pesados, na carne do peixe, só são sentidos a longo prazo", alerta ele.