ISA – A pretexto de regulamentar uma situação que se arrasta há pelo menos uma década, o Decreto nº 4412, de 7 de outubro de 2002, trata da questão da atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em terras indígenas de forma unilateral e autoritária.
Diversas organizações indígenas e instituições não-governamentais, que trabalham em parceria com os índios, protestaram publicamente por meio de notas e manifestos contra a legislação que visa legitimar a presença militar em terras indígenas sem estabelecer regras de conduta e convivência entre militares, policiais e índios.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, saiu na frente, questionando a inconstitucionalidade do decreto e apontando contradições, por meio de representação encaminhada ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 11/10. O Cimi considera que o decreto infringe a Constituição por desrespeitar o que dispõe o parágrafo 6º, do artigo 231, da Constituição Federal. Também a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Conselho Indigenista de Roraima (CIR) divulgaram notas. O CIR afirma no texto que pretende entrar com representação contra o decreto. A Foirn, de sua parte, considera positivo que se tenha abordado o assunto, porém, não sem ouvir os índios, especialmente porque o Ministério da Justiça havia se comprometido a realizar uma consulta prévia.
Ainda a propósito do assunto, ontem (07/10), as lideranças do distrito indígena de Iauareté – Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauareté (Coidi) e Organização Indígena do Centro Iauareté (Oici) -, povoado multiétnico situado às margens do Alto Rio Uaupés, na linha de fronteira Brasil/Colômbia, formularam uma carta dirigida ao Comandante Militar da Amazônia, na qual levantam duas questões: problemas de convivência com recrutas de fora e o funcionamento precário do Hospital Calha Norte (Veja as cartas e notas na íntegra, ao final do texto).
ISA vê retrocesso
O decreto poderia ter sido uma resposta às demandas indígenas sobre a regulamentação da presença militar em suas terras. Seu texto, porém, é composto por linhas gerais, sem comprometimento efetivo com questões como a proteção à vida e ao patrimônio indígena, de sua comunidade, de seus costumes e de suas tradições. Além do mais, não explicita a necessidade da superação dos conflitos gerados pela presença militar em terras indígenas.
Na opinião dos advogados do Instituto Socioambiental, o decreto, infelizmente, indica um retrocesso na política de relação com os povos indígenas no Brasil, principalmente face aos compromissos que o governo brasileiro assumiu internacionalmente durante a Conferência de Durban (África do Sul) contra o racismo e a discriminação, em agosto do ano passado. “Pelo decreto, os índios sequer são vistos como sujeitos de direitos (inúmeros deles consagrados na Constituição). Ou seja, não serão consultados acerca da implementação de estradas e batalhões do exército, que, muitas vezes, são construídos nas próprias aldeias causando sérios conflitos socioambientais”, analisa André Lima, coordenador do Porgrama Direito Socioambiental do ISA. “O retrocesso é tamanho que chega ao ponto de o decreto estabelecer a possibilidade de infraestrutura não somente nas áreas de fronteira, mas para TIs em qualquer região do país”.
ISA, 18/10/02
Leia a seguir o texto do decreto:
DECRETO Nº 4.412, DE 7 DE OUTUBRO DE 2002
Dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, no art. 15 da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, e nos arts. 142 e 144, § 1, inciso III, da Constituição,
D E C R E T A :
Art. 1º No exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão compreendidas:
I – a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestre, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública;
II – a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;
III – a implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira.
Art. 2º As Forças Armadas, por meio do Ministério da Defesa, e a Polícia Federal, por meio do Ministério da Justiça, deverão encaminhar previamente à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional plano de trabalho relativo à instalação de unidades militares e policiais, referidas no inciso II do art 1, com as especificações seguintes:
I – localização;
II – justificativa;
III – construções, com indicação da área a ser edificada;
IV – período, em se tratando de instalações temporárias;
V – contingente ou efetivo.
Parágrafo único. A Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional poderá solicitar manifestação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas das localidades objeto das instalações militares ou policiais.
Art. 3º As Forças Armadas e a Polícia Federal, quando da atuação em terras ocupadas por indígenas, adotarão, nos limites de suas competências e sem prejuízo das atribuições referidas no caput do art. 1, medidas de proteção da vida e do patrimônio do índio e de sua comunidade, de respeito aos usos, costumes e tradições indígenas e de superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas.
Art. 4º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 7 de outubro de 2002; 181º da Independência e 114º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Geraldo Magela da Cruz Quintão
Paulo de Tarso Ramos Ribeiro
Alberto Mendes Cardoso