ISA – Aprovado há um ano pelo Congresso Nacional, o acordo internacional sobre os povos indígenas e tribais em países independentes da agência multilateral da Organização das Nações Unidas (ONU) traz para o ordenamento jurídico brasileiro diversas inovações que contribuirão para a defesa dos povos indígenas.
Ratificada há pouco mais de um ano, depois de tramitar por 11 anos no Congresso Nacional, a Convenção 169 da OIT entrou em vigor no país na sexta-feira (25/7) e passa a ser um importante instrumento internacional na defesa dos direitos indígenas brasileiros. A adoção da palavra “povos”, fundamentada no princípio de que os índios são sociedades permanentes, tem como intuito propiciar o estabelecimento de uma nova relação entre os índigenas e o Estado, baseada no reconhecimento da diversidade cultural e étnica. Além disso, a utilização do termo implica outorgar-lhes proteção e incentivá-los a estabelecer suas próprias prioridades de desenvolvimento.
A Convenção 169, de 1989, que conta até o momento com a adesão de 17 países, está dividida em três seções principais. A primeira seção preconiza que os governos devem criar meios que permitam a participação dos povos indígenas na tomada de decisões de órgãos administrativos e instituições legislativas. Exige também que sejam consultados em relação a medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente.
Afirma ainda que os povos indígenas têm o direito de decidir sobre suas prioridades no que tange ao processo de desenvolvimento, e de gerir, na medida do possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Mais do que isso, determina que os governos têm obrigação de criar as condições que permitam a esses povos contribuírem ativa e eficazmente para o processo de desenvolvimento. Em alguns casos isso pode ser traduzido em ações de ajuda aos referidos povos para adquirir o conhecimento e as capacidades necessários para compreender as opções existentes de desenvolvimento e tomar as decisões pertinentes.
Em relação a planos e programas de desenvolvimento que os afetem, os povos indígenas deverão participar de sua formulação, execução e avaliação. Ademais, planos de desenvolvimento econômico que envolvam áreas ocupadas por comunidades indígenas e tribais deverão ser concebidos com vista, entre outras coisas, à melhoria das condições de vida, geração de oportunidades de emprego e conquistas educacionais. A Convenção dispõe também que os governos deverão executar estudos que avaliem possível impacto dos programas e planos de desenvolvimento de execução prevista nas áreas por eles ocupadas.
A cooperação dos povos indígenas e tribais deve ser considerada ainda na concepção, operação e avaliação dos serviços de saúde e de educação, inclusive nos programas de formação profissional que os beneficiem.
Temas específicos
A seção II da Convenção dispões sobre temas específicos, como terra, educação, emprego, formação profissional, artesanato e atividades rurais, previdência social e saúde, contatos e cooperação através das fronteiras, e enumera uma série de direitos que pressupõem o exercício da capacidade civil plena, como, por exemplo, o direito de associar-se, o direito de aderir a sindicatos, o direito de executar os programas que os afetem, por exemplo, os serviços de saúde, entre outros pontos.
Ao tratar sobre território, o documento impõe que deverá ser reconhecido aos povos indígenas o direito de propriedade e posse das terras que ocupam tradicionalmente. Dispõe também que medidas deverão ser tomadas para salvaguardar seus direitos de utilizar as terras que não são necessariamente ocupadas por eles, mas às quais tradicionalmente têm tido acesso. O “uso” de terras que esses povos não ocupam, mas às quais têm acesso para suas “atividades tradicionais e de subsistência”, foi reconhecido como um direito adicional e não como uma alternativa de direito de propriedade. Desta maneira, a Convenção exige que os governos reconheçam que, havendo uma ocupação tradicional, os povos indígenas e tribais têm efetivamente direitos sobre as terras em questão. Apesar de não especificar quando um caso deverá ser considerado como tal, a disposição deve ser lida no contexto do artigo 23, que estabelece o reconhecimento e o fortalecimento das atividades tradicionais, inclusive a caça e o pastoreiro.
A Convenção inova em relação ao artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos indígenas, e alguns aspectos, portanto, deverão ser disciplinados. Ainda em vigor, o Estatuto do Índio, de 1973, apesar de algumas revogações por força constitucional, tem uma visão assimilacionista não compatível com os princípios fundamentais da Convenção que supõe que os povos indígenas e tribais podem falar por si mesmos e têm o direito de participar no processo de tomada de decisões que lhes dizem respeito.
Seminário sobre o tema
O Instituto Socioambiental (ISA), o Warã Instituto Indígena Brasileiro e a Rainforest Foundation-US, com o apoio da Organização Internacional do Trabalho, realizarão um seminário nos dias 11 e 12/8, em Brasília, para discutir a importância da ratificação da Convenção 169 da OIT pelo Brasil e as expectativas jurídicas e políticas dos povos indígenas em relação a este novo instrumento internacional. Mais informações pelo e-mail seminario.169oit@socioambiental.org.
Leia a íntegra da Convenção 169 da OIT.
Resumo da Convenção 169 da OIT
Política Geral – Princípios e condições básicas que os governos devem respeitar em suas relações com os povos indígenas e tribais
A Convenção estabelece os direitos dos povos indígenas e tribais de:
– ter uma existência duradoura e diferente;
– definir suas próprias prioridades de desenvolvimento e de exercer controle sobre o mesmo, na medida do possível;
– serem consultados de boa-fé, mediante procedimentos apropriados e por meio de suas instituições representativas com relação a decisões susceptíveis de afetá-los diretamente, inclusive com relação a medidas administrativas ou legislativas, assim como sobre planos de desenvolvimento;
– manter seus costumes e instituições, inclusive os métodos tradicionalmente utilizados para reprimir os delitos cometidos por seus membros, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Os governos deverão:
– definir a que grupos se aplica a Convenção, com base em critérios objetivos (idioma, parentesco, costumes, etc.) e na auto-identificação dos povos indígenas e tribais;
– assegurar aos povos indígenas e tribais o gozo, em igualdade de condições, dos mesmos direitos e oportunidades concedidos aos demais membros da comunidade nacional;
– ajudar os povos indígenas e tribais a eliminar as diferenças sócio-econômicas existentes entre eles e os demais grupos da comunidade nacional;
– respeitar os costumes dos povos indígenas e tribais, aos lhes aplicar a legislação nacional, inclusive quando se aplicam sanções penais;
– estabelecer mecanismos e procedimentos apropriados de consulta com os povos indígenas e tribais;
– assegurar-se de que se realizem estudos apropriados, desde que possível, em cooperação com os povos interessados, para avaliar o impacto social, espiritual, cultural que possam ter as atividades de desenvolvimento sobre o meio ambiente. Os resultados desses estudos servirão de critérios fundamentais para a execução das ditas atividades;
– promover as instituições e iniciativas dos povos indígenas e tribais.
Disposições Específicas
Terras – compreende o conceito de territórios, o que cobre a totalidade habitat das regiões que os povos indígenas e tribais ocupam ou utilizam de alguma maneira.
Os governos deverão:
– reconhecer, quando for o caso, a relação especial que têm os povos indígenas e tribais com suas terras, inclusive os aspectos coletivos dessa relação;
– reconhecer os direitos de propriedade e de posse das terras que tradicionalmente ocupam; o direito ao uso das terras às quais têm tido acesso tradicionalmente para suas atividades tradicionais e de subsistência;
– identificar as terras dos povos indígenas e tribais e proteger seus direitos de propriedade e de posse, mediante sanções previstas pela lei contra toda intrusão não-autorizada e por meio de procedimentos para resolver as reivindicações de terras
– proteger os direitos do povos indígenas e tribais sobre os recursos naturais de suas terras e territórios, inclusive seu direito de participar da utilização, administração e conservação desses recursos;
– consultar os povos indígenas e tribais antes de realizar trabalhos de prospecção e de exploração de minerais ou recursos do subsolo ou outros recursos cuja propriedade seja do Estado, mas que se encontram nas terras de propriedade dos povos indígenas e tribais;
– assegurar que os povos indígenas e tribais percebam uma indenização justa e eqüitativa por qualquer dano que sofram por essas atividades e que participem dos benefícios que produzam as mesmas;
– consultar os povos indígenas e tribais toda vez que se considere modificar sua capacidade de alienar suas terras;
– respeitar os procedimentos tradicionais de transmissão, entre os povos indígenas e tribais, dos direitos sobre as terras existentes;
– garantir aos povos indígenas e tribais um tratamento em igualdade de condições com os demais setores da população no desenvolvimento dos programas agrários nacionais;
– os povos indígenas e tribais não deverão ser removidos das terras que ocupam, a não ser em caso rigorosamente necessário.
No caso de remoção de suas terras ancestrais, os povos indígenas e tribais têm o direito de:
– só serem removidos com seu livre consentimento e com pleno conhecimento de causa ou ao termo de procedimentos adequados, inclusive consulta pública;
– regressar a suas terras quando deixarem de existir as causas que motivaram a remoção e o reassentamento;
– receber terras em qualidade e estatuto jurídico iguais às terras que antes ocupavam, caso não seja possível o retorno;
– ser plenamente indenizados quando forem reassentados.
Contratação e condições de emprego
Os povos indígenas e tribais têm direito de:
– ter acesso a emprego, condições de trabalho, assistência médica e social e a uma remuneração eqüitativa, em condições de igualdade com os demais trabalhadores;
– exercer todas as atividades sindicais lícitas.
Os governos deverão:
– adotar, em cooperação com os povos indígenas e tribais, medidas especiais para proteger seus direitos trabalhistas, quando esses direitos não estejam eficazmente protegidos pela legislação aplicável aos trabalhadores em geral;
– evitar qualquer discriminação contra os trabalhadores indígenas e/ou tribais, garantindo-lhes proteção contra condições perigosas de trabalho, constrangimento sexual e sistemas coercitivos de contratação;
– assegurar que os trabalhadores indígenas e/ou tribais sejam plenamente informados sobre seus direitos trabalhistas e procedimentos existentes para sua proteção.
Formação profissional, artesanato e indústrias rurais
Os povos indígenas e tribais têm direito de:
– dispor das mesmas oportunidades de formação profissional que os demais cidadãos.
Os governos deverão:
– promover e reforçar, quando necessário, com a participação dos povos indígenas e tribais, atividades tradicionais relacionadas com as economias de subsistência, facilitando adequada assistência técnica e financeira;
– desenvolver programas especiais de formação, caso necessário, baseado nas necessidades concretas dos povos indígenas e tribais; transferir-lhes, quando possível e com sua anuência, a responsabilidade da organização e funcionamento desses programas especiais.
Previdência social e saúde
Os povos indígenas e tribais têm direito de:
– ser atendidos pelos sistemas de previdência social ou serviços adequados de saúde, em âmbito comunitário, respeitados seus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais;
Os governos deverão:
– planejar e administrar os serviços de saúde, em cooperação com os povos indígenas e tribais, ou lhes proporcionar os meios que lhes permitam planejar e administrar esses serviços de uma maneira autônoma;
– dar preferência à formação e ao emprego do pessoal de saúde da comunidade local.
Educação e meios de comunicação
Os povos indígenas e tribais têm direito de:
– receber educação em todos os níveis nas mesmas condições que as demais pessoas da comunidade nacional.
Os governos deverão:
– desenvolver e aplicar, em cooperação com os povos indígenas e tribais, programas de educação e serviços adequados a suas necessidades, com pleno respeito a suas tradições, cultura e história;
– reconhecer o direito dos povos indígenas e tribais de criar suas próprias instituições e meios de educação, desde que satisfaçam as normas mínimas estabelecidas;
– tomar medidas para que os povos indígenas e tribais tenham a oportunidade de dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país, assim como preservar e promover o desenvolvimento e a prática das línguas dos povos indígenas e tribais;
– proporcionar conhecimentos gerais e aptidões que permitam as crianças dos povos indígenas e tribais participarem plenamente na vida de suas próprias comunidades e na comunidade nacional;
– adotar medidas adequadas, pelos meios de comunicação de massas e nas línguas dos povos indígenas e tribais, para lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações;
– sensibilizar e educar os cidadãos não-indígenas sobre a situação dos povos indígenas e tribais a fim de eliminar os preconceitos contra eles.
Contratos e cooperação através das fronteiras
Os governos deverão:
– facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive atividades econômicas, sociais e culturais e relacionadas com o meio ambiente.
Disposições gerais e administração – Especifica as medidas administrativas que os governos devem tomar para garantir a aplicação da Convenção.
Os governos deverão:
– criar instituições ou outros organismos apropriados para administrar os programas que afetam os povos indígenas e tribais, assegurando-lhes os meios necessários para seu cabal funcionamento;
– aplicar a Convenção de uma maneira flexível, levando em conta as condições e características próprias de cada país;
– ao aplicar a Convenção, não reduzir os direitos dos povos indígenas e tribais por força de outras convenções, instrumentos internacionais, tratados, leis nacionais ou costumes ou acordos.
Ana Flávia Rocha