ISA – Em cerimônia de abertura na qual estavam presentes o novo diretor do museu, Amir Labak, a secretária da cultura do estado, Cláudia Costin, e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o Museu da Imagem e do Som (MIS) reabriu suas portas, fechadas desde dezembro de 2001. Como destaque, foi escolhida a mostra Nas lentes de “O Cruzeiro”: os dois Brasis de Henri Ballot, um conjunto de imagens do fotógrafo tiradas para a revista O Cruzeiro durante as décadas de 50 e 60, época em que o Brasil buscava se industrializar, ao mesmo tempo em que tentava desbravar o centro-oeste desconhecido.
“Foi um acidente feliz”, diz Eduardo Castanho, um dos curadores da exposição junto com a pesquisadora Helouise Costa. “A idéia fundamental era que a reinauguração tinha de ser pontuada com um evento de importância e que compartilhasse com o público paulista o que o museu tem em seu acervo. Talvez por acidente, esse [as fotos de Ballot] foi um dos primeiros materiais a serem pinçados na nossa pesquisa e a gente percebeu que ele tinha muita chance de ser curado para se tornar uma boa exposição”, conta Castanho. As imagens fazem parte das cerca de 800 doadas recentemente ao MIS por Veronique Ballot, filha de Henri, morto em 1997. Ela também doou cópias do acervo ao Instituto Socioambiental.
Separadas em duas partes – São Paulo e Alto Xingu -, as fotos retratam bem a dualidade do Brasil daquela época. “Os índios eram vistos dentro daquele ponto de vista do Brasil do passado e a possibilidade do futuro, que eram as metrópoles – esse era o paradigma que a revista lançava para o grande público”, avalia o curador. “O Cruzeiro tinha essa forma de enxergar o Brasil, como o país do futuro, mas, que ao mesmo tempo, tinha um passado nos indígenas, que era o passado primitivo, ainda intocado do selvagem. O índio era visto como essa coisa diferente, essa coisa inusitada, enquanto o Brasil moderno era a potência, a pujança industrial, tendo principalmente São Paulo como ícone da modernidade, da grande metrópole”, analisa.
As fotografias do Alto Xingu foram tiradas entre 1952 e 1957, anos em que Henri Ballot acompanhou a expedição dos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas pela região do Diauarum, no coração do que em 1961 se tornaria o Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do Xingu), por meio de um decreto do então presidente Jânio Quadros. Naquela época, a Constituição de 1946, do governo Eurico Gaspar Dutra, não apresentava grandes mudanças em relação às anteriores na questão indígena: os índios estavam sob a tutela do Estado, que tinha a missão de ‘pacificá-los’, e eram representados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910. No ano de 1954, o órgão já sofria sérias acusações de corrupção e de uso político, enquanto, no Mato Grosso, a legislação permitia ao governo doar até 9.999 hectares sem considerar a presença de índios na área – e era isso que estava acontecendo, com a venda de lotes indígenas aos brancos (o SPI seria extinto no meio dos anos 60, já sob o regime dos militares, para a criação da Fundação Nacional do Índio).
O Cruzeiro
Neste sentido, o papel da revista semanal O Cruzeiro, fundada em 1928, foi fundamental para a criação de uma consciência política sobre o tema. “Eu acho que a importância do Cruzeiro foi tão grande quanto o é, guardadas as proporções, a Rede Globo hoje: a dimensão do que ele representava, onde ele ia…”, conta-nos Juvenal Pereira, repórter fotográfico durante a fase final da revista, que seria fechada em 1978. Durante os anos de 1971 a 1974, Juvenal fez dupla de reportagem com o mineiro e então repórter Fernando Brant. Acompanhou assim o surgimento do célebre Clube da Esquina, formado pelo cantor Milton Nascimento, o próprio Brant, que era compositor, e outros cantores e compositores mineiros.
É difícil para as novas gerações entenderem a influência de uma publicação que, na década de 50, abrangia vários países da América Latina. A televisão ainda dava os primeiros passos, com dois ou três programas por dia, enquanto as ofertas de banca se restringiam às revistas Cruzeiro, Manchete e Fatos e Fotos. “As pessoas esperavam O Cruzeiro para ter assunto”, diz Juvenal. “A revista chegava nos lugares mais distantes do país e aí as pessoas começavam a ter assunto, porque as informações eram via rádio ou revista, e O Cruzeiro era a revista que preenchia esse espaço da informação visual. Talvez tenha tido a mesma importância que as norte-americanas Time Life, National Geographic. E reunia uma equipe de ouro no jornalismo brasileiro”.
É a partir desta referência que o jornalismo mudou de cara, como vê o curador Eduardo Castanho. “Com esse perfil, que era uma fábrica de fotografia, no sentido de capacidade de produção, criou-se uma maneira de ver, um estilo. A partir de O Cruzeiro, o fotojornalista se tornou mais exigente, ele tinha uma referência que dava um ponto de qualidade, dava uma maneira nova de fazer, de olhar e de falar a notícia, porque antes disso era o quê? Só texto, texto, texto”.
Um xavante na reabertura do museu
Siridiwê Xavante é presidente do Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas (Ideti), com sede na Rua da Glória, 474, em São Paulo. Durante a cerimônia de abertura do MIS e da exposição, ele era o único indígena presente.
ISA – O que você achou da exposição?
O lado da fotografia é muito importante porque, antes de toda a inserção, nós com a nossa pureza, encontramos os materiais da cidade. Então, esse material de imagens do fotógrafo é muito rico. Esse pessoal mais velho, que hoje estão lá, ou já foram, os seus próprios netos ou familiares, quando um dia souberem, com certeza vão ficar felizes. Agora, eu fico chateado é o texto [das reportagens]. Porque naquela época são assim, meio ironizado, meio forte o texto sobre a gente. Não teve essa preocupação, de pensar a longo prazo, para dar a expressão de respeito. Tanto é que, por causa desse texto, em todos os níveis, nas escolas, nos jornais, televisão, tem essa carga negativa sobre a questão indígena.
ISA – Mas isso não está mudando?
Falta muito, muito, muito. Só para ter um exemplo, são 40 anos de educação, que é o papel do MEC, então, alguns poucos que escrevem um livro didático, paradidático, têm essa sensibilidade, mas na maior parte ainda não há essa modificação. Então, se você pega livro didático, livros sociais, história do Brasil ainda tem aquele pretérito passado “usavam”, “cantavam”, “índio”, e alguns têm essa sensibilidade e falam “povo nativo”, “cantam”, “fazem”, que é uma cerimônia que ainda continua… É pouco. Falta muito para organizar para que haja um bom olhar, respeitoso.
ISA – Por que você acha que os índios não vieram aqui?
Distância de contato. Que seria legal, convidar uns indígenas para poder ver. Se o órgão público se preocupasse com a questão indígena, porque em São Paulo também tem a questão indígena, são os Guarani. Para as pessoas, índio, entre aspas, é Amazônia, é Parque do Xingu, sabendo que aqui tem Guarani… Esquece, né? Então falta de conhecimento. O Guarani está aí, podia vir para ver essas imagens, para participar de um acontecimento da cidade de São Paulo e… eu vim porque eu estou acompanhando o que está acontecendo. Legal, acho bonito, estou fazendo o meu papel e representando também as nossas forças.
ISA – O que faz o Ideti?
O Ideti foi criado em 1999 com a proposta de divulgar, promover a cultura indígena, resgatar, proteger a nossa cultura. Então ele é formado por núcleo de diretores indígenas Xavante, Kashinawá, Krenak, Guarani, Karajá…. Esse núcleo vai dar representatividade do que o Brasil tem. Só nós mesmos podemos fazer o pensamento dos nossos mais velhos. Através da música, fazer um cd é uma coisa direta. Não o que o branco está fazendo sobre a gente. Então, o instituto dá a possibilidade para que haja expressões de conhecimento, através do livro, música, palestra… Tem esse objetivo, de fazer intercâmbio, estar próximo, conversando, não o que os acadêmicos falam sobre a gente. Não que os diretores de cinema ou teatro ou escritores falam sobre a gente – ele está falando sobre o sentimento dele. E o Ideti vai trazer o velho, os jovens, que pode falar sobre essa cultura. Por enquanto, uma concessionária, a Volkswagen, está comigo, que apóia e entende essa filosofia, é a única empresa que entende, que está meu parceiro. Aí, a gente quer, nós mesmos ser independentes. A Funai fez o seu papel, era um papel muito importante, isso aí ficou meio assim… não é nosso pensamento. Ela é filhote do governo federal e é um dos órgãos, mas como eu tenho esse instituto, é primeira pessoa. Só a gente pode chamar várias etnias para falar de nossa cultura.
Nas lentes de “O Cruzeiro”: os dois brasis de Henri Ballot
Onde: Museu da Imagem e do Som, Avenida Europa, 158, São Paulo.
Horário: das 14h às 22h, entrada gratuita. Até o dia 28/09.
Mais informações no site do MIS ou pelos telefones 3088-0896 ou 3085-1498.
No dia 23/08, às 11h, haverá um bate-papo com os curadores Eduardo Castanho e Helouise Costa, Veronique Ballot (filha de Henri Ballot) e Sylvia Caiubi, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.
ISA, Flávio Soares de Freitas, 21/08/2003; com a colaboração voluntária de Livia Chede Almendary.