Agência Brasil – “A história da pistolagem no País se confunde com a história da “elite” brasileira – afirma a socióloga Peregrina Cavalcante, autora do livro Como se Fabrica um Pistoleiro, da editora A Girafa (SP), 254 páginas. A obra é resultado de dois anos e meio de pesquisas no interior do Maranhão, Piauí e Ceará. A professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará precisou morar junto às comunidades onde existem pistoleiros para “sentir como as pessoas convivem com o fato e como se dão os crimes”. E foi com muito custo que ela ganhou a confiança para realizar o trabalho.
No livro, ela relata as “confissões” feitas por um padre e um juiz, ameaçados de morte, conta histórias de pistoleiros em ação e até de um delegado de polícia que conseguiu a façanha de levar um desses assassinos de aluguel a ser condenado. O delegado, que não quis identificar-se, classifica o “matador de gente” como uma pessoa “perigosa, traiçoeira, astuta e covarde”. O pistoleiro Miranda confirma no livro a frieza dos profissionais do ramo: “A gente vai é prá matar, não é prá brigar”, diz ele.
Ela explicou que a “exportação” e o intercâmbio de pistoleiros são prática comum, até por uma “questão de segurança para os envolvidos no processo”, a socióloga Peregrina Cavalcante conta que a profissão de “matador de gente” começa cedo. “Garotos, moradores das fazendas, desde muito jovens, aos 15 anos de idade, começam a treinar para se tornarem pistoleiros”.
O matador de gente
Para a professora a imagem do pistoleiro, foi sendo construído historicamente, desde quando o Brasil foi colonizado, por exemplo, por meio do extermínio brutal dos índios. Ao falar dos tempos em que conviveu com os assassinos para escrever os livros e a tese, no Vale do Jaguaribe, Ceará , região famosa por ser uma “grande exportadora de pistoleiros”. Peregrina lembra que no local existe o chamado Riacho do Sangue, trágica lembrança de uma carnificina de indígenas.
Segundo ela, as comunidades que convivem com a “incômoda permanência” dos pistoleiros adaptaram-se à esta realidade. “Mesmo que os pistoleiros incomodem, que a convivência com eles seja uma coisa assustadora, a comunidade, na verdade, convive com a cultura da pistolagem. A cultura desses lugares é a de que todas as pessoas andem armadas. Um menino de 15 anos, por exemplo, geralmente passa pelo ritual em que o pai o presenteia com uma arma. De modo que, desde criança, ela é motivada ao uso da arma”, relata a socióloga.
Peregrina Cavalcante explica ainda que entender o papel da mulher na continuação da cultura da pistolagem foi muito importante para ela chegar a uma conclusão nos seus dois livros – “Matadores de Gente” e “Como se fabrica um Pistoleiro”. “A mulher é uma formadora de gente, ainda mais no caso da mãe que fala ao filho, por exemplo, que não volte para casa desonrado, depois de uma briga. Ela cria, assim, uma mentalidade errônea de honra e de família que não pode ser maculada e, se for, tem que ser respondida à altura”.
No livro, a socióloga faz um traço dos três tipos diferentes de pistoleiros – o tradicional, ligado a um dono; o bandido, com “práticas marginais múltiplas”, e o avulso, que é nômade e necessita do intermediário. Entre os três tipos, a autora diz que encontra um traço em comum, que é o fato deles todos “matarem por dinheiro e por vingança”. Peregrina cita as conclusões de um velho delegado de polícia que já conseguiu prender alguns pistoleiros na cadeia, que acabaram condenados, fato considerado raro. O delegado resume: “ A impunidade é a responsável pela permanência da pistolagem no país”.
Para o delegado, a impunidade ainda existe no Brasil do interior porque, geralmente, “o patrão do pistoleiro é influente na política regional , tanto que, logo após o assassinato, o pistoleiro é transferido por ele para outro Estado, de onde lhe é enviado, em troca, um pistoleiro novo, numa verdadeira rede do crime”.
Peregrina identificou, ainda, outro ponto em comum entre os pistoleiros. Em geral, o matador de gente é religioso, usa uma medalha milagrosa, geralmente de São Francisco das Chagas do Canindé, para manter o corpo “fechado”. Um pistoleiro famoso dá, no livro de Pelgrina, uma receita para manter o corpo fechado: começa por enterrar um gato vivo, com certos ingredientes para, dias depois, já apodrecidos, serem comidos acompanhados de uma oração.
No seu livro, a socióloga colhe o depoimento de um Juiz do interior, que lhe diz: “a pistolagem está entranhada na vida cotidiana das pessoas, das famílias e dos que ocupam os espaços do Poder, tanto que é comum , na minha frente, apresentarem seus empregados como sendo seguranças, de total confiança, quando destacam, com orgulho e abertamente, o detalhe do se eu mandar matar, ele mata.”
Outro personagem importante ouvido no “Como se fabrica um pistoleiro” é um padre do interior. Peregrina Cavalcante o chama de “pára-raio de todos os acontecimentos, embora não tome partido, até porque na hora da morte ele é o primeiro a ser chamado”. Padre José, 30 anos no Vale do Jaguaribe, Ceará, diz que “ hoje, não são apenas os fazendeiros os principais articuladores da pistolagem . Outros articuladores entraram em cena : empresários, prefeitos, deputados, secretários de Estado, etc”
O pistoleiro Miranda, ouvido no livro, resume o perfil psicológico do matador de aluguel: “olha, se o patrão chegar para mim e mandar matar o Papa, não me interessa o que o Papa fez, mas o Papa ia morrer”. O mesmo Miranda conta: “antes de atirar, sempre me benzo com a arma para tudo dar certo. Depois do serviço realizado, vou a uma igreja pedir perdão.”
O pistoleiro não é o único criminoso
“A presença de pistoleiros em fazendas com trabalho escravo infelizmente ainda é um fato e são eles que garantem a permanência dos trabalhadores nessas regiões distantes, na condição de presos, sem receber remuneração”. A afirmação é do Coordenador da Pastoral da Terra em Xinguara, no Sul do Pará, Frei Henry des Roziers, advogado de líderes sindicais rurais ameaçados de morte e também frei dominicano.
Ele já foi “condenado à morte”, mas agora diz que “graças a Deus, não estou mais recebendo ameaças de morte”. Frei Henry falou ao programa “Revista Amazônia”, da Rádio Nacional da Amazônia, sobre a questão da pistolagem no País. O Frei adverte que ainda existem, na região, “muitos líderes sindicais e agentes pastorais que continuam ameaçados de morte por conta do trabalho que desenvolvem a favor do ser humano menos favorecido”.Frei Henry lembra, no entanto, que não só o pistoleiro é o criminoso.
Para ele, “não é só a presença do pistoleiro que caracteriza e permite a permanência do trabalho escravo no Sul do Pará. Existem os fazendeiros reincidentes no trabalho escravo. Eles são infratores e criminosos”. Frei Henry comenta que a reincidência tem sido muito grande, apesar do trabalho que está sendo feito pela fiscalização do Ministério do trabalho. “Tudo bem que já conseguimos ver fazendeiro preso, devido à fiscalização, mas eles ficam presos por pouco tempo,” desabafa Roziers.
Ele já teve sua atuação elogiada em nota assinada por várias instituições, entre elas a Associação dos Juizes Federais do Brasil, a Organização Internacional do Trabalho e o Movimento dos Direitos Humanos. O frei consegue ter uma explicação, embora lamente, até para o fato de, muitas vezes, os fiscais do Trabalho encontrarem as mesmas pessoas que, pouco tempo antes, tinham sido libertadas de trabalho escravo, em outras fazendas.
Explica que “eles vieram de regiões muito pobres do Maranhão, Piauí e Tocantins, onde perderam suas terras, agora não têm para onde voltar e ainda enfrentam a falta de um emprego onde possam apenas sobreviver” . Por isso, ele acha que o caminho para o fim da violência, no caso do Sul do Pará, onde ele vive há mais de 20 anos, “tem que passar primeiro pelo emprego e depois pela reforma agrária, esta com o acompanhamento técnico e também do crédito para que possam produzir”.
Eduardo Mamcasz