Tradições e Modernidade

A edição 2006 da Bienal Internacional de Artes Visuais e Fotografia de Liége, Bélgica, teve como foco a diversidade cultural e o contraste da riqueza étnica do Brasil num mundo cada vez mais globalizado. Entre 18 de fevereiro e 31 de março, os visitantes caminhavam por galerias de fotos, vídeos e instalações que ilustravam um pouco do mosaico cultural brasileiro, com foco especial para os 220 povos indígenas do país e sua biodiversidade. Entre os artistas, estavam nomes consagrados como Cláudia Andujar, Ana Bella Geiger e outros. O Rota Brasil Oeste participou do evento a convite da curadora da exposição “Tradições e Modernidade”, a artista plástica Babi Avelino.

Em sua quinta edição, a Bienal levou um panorama visual completo com mais de dez exposições espalhadas por museus e centros culturais da cidade que tentavam mostrar ao público local um pouco da realidade de um país tão diferente da Bélgica. Com um território de 30mil km2 e apenas 6 milhões de habitantes, 97% deles vivendo em áreas urbanas, as diferenças entre os dois países são enormes. O desafio da Bienal foi este: aproximar dois mundos tão distantes por meio da arte.

Liege_Fernando_Zarur.jpgMontada no Centro Cultural Lês Chiroux, a exposição “Tradições e Modernidade” teve como objetivo destacar a pungente diversidade étnica e o conhecimento das populações indígenas brasileiras levantando as seguintes questões: O que significa ser índio no mundo de hoje? Como as comunidades indígenas vêem a si próprios? Qual sua mensagem e o que podemos aprender com eles?

Considerada um sucesso de público, com uma média de 50 visitas por dia, a exposição foi composta por diferentes módulos. O Rota Brasil Oeste participou, ao lado de outros fotógrafos, de uma instalação com projeção de fotos de Bruno Radicchi, Fábio Pili e Fernando Zarur. A sala, uma das mais visitadas, foi ambientada com música Ava-ara e decorada almofadas para a comodidade do público.

Em entrevista ao Rota Brasil Oeste, Babi Avelino, curadora de “Tradições e Modernidade”,  explica detalhes do evento e qual a importância da questão indígena no contexto cultural europeu atual. Acompanhe:

Porque a escolha do Brasil como tema da Quinta Bienal Internacional de Artes Visuais e Fotografia de Liége?

A direção da Bienal queria homenagear o Brasil, o gigante de contrastes. Um país tão diferente da Bélgica, para talvez assim, dar informações autênticas do que compõem o nosso país. Pois aqui na Europa, para a grande maioria, o Brasil é conhecido só pelos estereótipos. Seria também a oportunidade de apresentar na Europa uma seleção inédita da fotografia e da arte visual brasileira contemporânea que é muito pouco conhecida por aqui.

Como tive a oportunidade de apresentar meu projeto "Tradições e Modernidade" composto por uma exposição coletiva e quatro dias de atividades, pude contar com o apoio do Centro Cultural da cidade para realizar projeto dentro da Bienal. A importância de mostrar o tamanho e a qualidade da diversidade cultural do Brasil através da arte e poder sensibilizar vários tipos de público, várias camadas da sociedade.

Qual a relevância de destacar a questão indígena entre tantas outras?

Liege_Fabio_Pili.jpgNo fundo, eu acho que deveríamos abordar a questão indígena em qualquer evento, mesmo em eventos comerciais ou industriais. Ou principalmente nestes. A questão indígena diz respeito a todos nós, pois é a questão da terra, da biodiversidade, da diversidade cultural, da aceitação do outro. Da adaptação ao mundo que está em constante mudança. Esta ligada à preservação das fontes de vida como a água potável, a floresta, as tradições. É o questionamento da origem, é o passado, o presente. E, mesmo se muita gente dúvida, é o futuro do planeta.

Além disso, podemos abordar as dificuldades vividas pelos povos indígenas, mostrar trabalhos de artistas renomados e dos menos conhecidos sobre estes povos, trazer trabalhos de indígenas para provar que não existe indígena "aculturado" e que mesmo se eles usam ferramentas criadas pela sociedade dominante, eles conseguem reinventar a própria cultura para não perder suas tradições. É também a colaboração entre associações e ONGs belgas e brasileiras. É uma mobilização importante para não se esquecer que o planeta sofre e com ele seus habitantes. É questionamento e militância.

Qual tem sido a reação do público estrangeiro em relação ao Brasil e, em especial, nossos índios?

Como disse antes os europeus tem uma visão bem reduzida do Brasil, eles acham que só existem super ricos e os super pobres. Para eles tudo se resume em futebol, carnaval e meninas. E para muitos os indígenas estão na Floresta Amazônica.

Quando eu falo que há mais de 220 povos diferentes com 180 línguas diferentes, eles não acreditam. Conversando com algumas crianças durante as atividades, percebi que realmente se estranha o que não se conhece. E acho que somente pelo fato das crianças belgas verem fotos de indígenas e verem que mesmo com pintura no corpo, brinco de madeira na orelha e cocar na cabeça, eles também usam roupas, ou guarda-chuva, isso mostra que eles não são tão estranhos assim. Eles devem conhecer para poder respeitar no futuro. Durante a Mostra de vídeo de autores indígenas, muitos adultos saiam sensibilizados e alguns admirados de terem visto filmes realizados por autores indígenas, ver a coisa verdadeira.

Por que o Rota Brasil Oeste foi escolhidos para compor a exposição?

Escolhi o trabalho do Rota Brasil Oeste, primeiro por que ele "re-escreve" uma expedição (Roncador-Xingu) muito importante para os povos indígenas e para o Brasil. Também por que as imagens realizadas mostram de uma forma sincera e poética o cotidiano numa parte do Xingu. Além disso, queria apoiar de alguma forma o projeto que eu acho deve continuar para termos uma documentação autêntica e verdadeira do que acontece dentro das aldeias indígenas depois da criação do Parque.  

Greve de fome pelo Rio São Francisco

Desde 26/09 o bisbo de Barra, BA, Frei Luiz Flávio Cappio, iniciou uma greve de fome a favor da revitalização do rio São Francisco para tentar impedir a implantação do projeto de transposição do Rio Francisco.

O Rota Brasil Oeste solidariza-se com a campanha do religioso e une-se aos esforços para barrar a transposição do rio, obra faraônica que promete favorecer apenas a seus construtores e grandes proprietários rurais. Nossa opinião é de que o modelo para aliviar o problema da seca no semi-árido deve ser em ações decentralizadas que leva a água diretamente aos pequenos proprietários e suas famílias. Um destes exemplos é o Programa de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semi-Árido (P1Mc) que promove o uso de cisternas para captação e armazenamento de água da chuva.

O bispo enviou uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma declaração, registrada em cartório expondo as suas razões. Eis a declaração do bispo e a carta enviada a Lula.

Declaração

"Em nome de Jesus Ressuscitado que vence a morte pela Vida plena, faço saber a todos:

1.De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo contra o Projeto de Transposição, a favor do Projeto de Revitalização.

2.Permanecerei em greve de fome, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de Transposição.

3.A greve de fome só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, revogando e arquivando o Projeto de Transposição.

4.Caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente, chegue quando já não for mais senhor dos meus atos e decisões, peço, por caridade, que me prestem socorro, pois não desejo morrer.

5.Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem, com muito amor, doei toda minha vida, em Barra, minha querida diocese.

6.Peço, encarecidamente, que haja um profundo respeito por essa decisão e que ela seja observada até o fim."

Carta ao presidente Lula

"Barra, 26 de setembro de 2005

Senhor Presidente

Paz e Bem!

Quem lhe escreve é Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM, bispo diocesano de Barra, na Bahia.

Tive a oportunidade de conhecê-lo por ocasião da passagem do senhor por Bom Jesus da Lapa, na Caravana da Cidadania pelo São Francisco, em 1994. Isto aconteceu pouco tempo depois que fizemos uma Peregrinação pelo Rio São Francisco, da nascente à foz, com objetivo de conscientizar o povo ribeirinho sobre a importância do rio para a vida de todos e a necessidade de preservá-lo.

Fui-lhe apresentado por meu professor de teologia, Frei Leonardo Boff.

Sempre fui seu admirador. Participei ativamente em todas as campanhas eleitorais do PT, alimentando o sonho de ver o povo no poder.

Desde que o Governo Fernando Henrique apresentou a proposta de transposição do Rio São Francisco, fomos críticos acirrados deste projeto. Desde então acentuamos a necessidade urgente de revitalização do rio e de ações que garantam o verdadeiro desenvolvimento para as populações pobres do nordeste: uma política de convivência com o semi-árido, para todos, próximos e distantes do rio.

Esperávamos do senhor um apoio maior em favor da vida do rio e do seu povo.

Esperávamos que, diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo este projeto que carece de verdade e de transparência.

Quando cessa o entendimento e a razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional.

Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança.

Tenha certeza, é um profundo testemunho de amor à vida.

Minha vida está em suas mãos.

Receba minha saudação fraterna e amiga,

Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM."

Sem pudor, ética ou vergonha

OBS – Íntegra da matéria da Veja analiasada aparece abaixo do texto a seguir.

A edição da revista Veja de 28 de abril traz um belo exemplo do que irresponsabilidade, preconceito e interesses econômicos podem fazer com o jornalismo. O texto "Sem fé, lei ou rei" aborda o conflito entre índios cinta-largas e garimpeiros no interior de Rondônia. Talvez a única função positiva do artigo seja como exemplo nas escolas de comunicação do que não devemos fazer enquanto profissionais ou pessoas. O fato trágico, no entanto, é que ele circula na revista de maior número de leitores no país e serve apenas para alimentar rixas e distorcer a realidade. 

Em primeiro lugar, uma análise puramente jornalística e formal. A reportagem começa com uma citação de um cronista português do século XVI, Pero de Magalhães Gândavo. O europeu concluiu que os índios não possuíam os fonemas "f", "l" ou "r". Sem isso, eles não poderiam ter "fé, lei ou rei". Assim, estariam fadados à barbárie eterna. Este abre dita o tom do por vir, afinal, o mesmo tipo de dedução lógica e raciocínio foi aplicado pelo autor e editores. 

Qualquer veículo de comunicação que se preze tem a apuração como exigência mais preciosa para uma matéria de qualidade. No caso, parece que tudo isso foi jogado para fora. Não há, por exemplo, qualquer contextualização histórica sobre o assunto, que já ocupou as páginas dos jornais tantas vezes nos últimos anos. Não cita sequer que ano passado a Funai retirou cerca de 5 mil garimpeiros da terra indígena e que uma força-tarefa já havia sido criada para acompanhar o caso. Ou que vários organismos internacionais ligados aos direitos humanos também emitiram relatórios sobre a questão e visitaram a área. Outro erro grave: não há nenhuma resposta às críticas, o governo federal e a Funai não foram ouvidos e, muito menos, os índios.

É estranho que o repórter esteja escrevendo diretamente de Espigão dOeste e não traga nenhuma fonte local. O investimento da revista em mandar um repórter para lá não traz qualquer novidade além da informação que caciques têm casas na cidade e andam de carro importado, algo noticiado ao longo da semana pelas TVs. A aldeia, segundo o próprio texto, fica a 20km. Por estar tão perto e serem protagonistas no assunto, será que não seria uma boa ouvir os moradores dessa aldeia? E os garimpeiros? Também não tiveram vez. Nenhum pôde comentar a perda dos 29 companheiros brutalmente assassinados. Talvez porque eles tenham falado durante toda a semana para a imprensa nacional que esteve de olho na região. Além disso, em nenhum momento, os editores ou o repórter lembraram de ouvir algum especialista sobre o tema. O único erudito citado é nosso valioso Pero de Magalhães Gândavo e sua teoria. 

Por outro lado, vários políticos, que também falaram ao público durante esta última semana, voltaram a ter amplo espaço. A lista de aspas conta com governadores e deputados. E nós sabemos que muitas vezes nossos políticos podem ser sensíveis à atuação de grupos de pressão interessados em garimpo, extração de madeira ou a ampliação da fronteira agrícola. Mas o ministro da Justiça foi duramente condenado pela Veja ao dizer que "todo dia é dia de índio". Será isso tão condenável do chefe da pasta do governo responsável pela defesa da população indígena brasileira? Será isso um grande erro?

A falta de conhecimento e o preconceito são latentes na matéria. Um exemplo é o trecho: "Os índios são idolatrados. No Brasil do século XXI, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo". Usar um termo como "selvagem" é digno dos cronistas portugueses que inspiram o texto. Mais triste, porém, é que um "civilizado" diga que os índios são idolatrados e apela para uma certa ironia velada sobre o real valor da cultura indígena. Uma vez, certo alemão franzino e baixinho, de bigode apertado, também questionou o valor de se preservar a cultura de certa minoria religiosa. Deu no que deu. E quanto à idolatria incondicional deste conceito de índio-pop que nos é apresentado? Aposto que o bodoque de Raoni compartilha paredes ao lado da Sandy no quarto das adolescentes. É assim?

Certa vez, entrevistei um xavante de Areões, terra indígena próxima a Água Boa, MT. Ele começou a contar-me que sua filha de 4 anos quase morreu no hospital local porque os médicos se negavam a tratar da pneumonia da menina. Aos prantos, ele terminou de me dizer que foi preciso apelar para todas as instâncias, causar uma confusão no hospital e contar com a boa alma de uma enfermeira. Ele vive na expectativa e reza para que sua filha não adoeça de novo. Na realidade, e o tom dessa matéria comprova isso, os índios sofrem talvez o mais forte preconceito racial no Brasil de hoje.

Outro argumento que deveria ter parado na pena dos cronistas portugueses de 500 anos atrás é: "Donos de 12% de todo território nacional, os cerca de 410 000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu".

O problema começa com a generalização. Os 410 000 índios brasileiros eram cerca de 100 mil em meados do século passado e retomaram seu processo de crescimento de forma inesperada. Nos anos de 1950 a mentalidade por trás da criação de terras indígenas era de se ter um espaço para deixar de lado aquele povo agonizante até desaparecem. A mesma lógica impera hoje quando questionamos porque dar milhares de hectares para este bando de gente que deve sumir mesmo.

As cerca de 200 etnias brasileiras têm realidades totalmente distintas. Algumas mal têm terra para sobreviver, vivem à beira do asfalto pedindo esmola ou sobrevivendo de artesanato. Mas os grandes "latifúndios indígenas" – como são descritos no texto – ocorrem principalmente em regiões como a Amazônia, onde existem estados como Roraima, que tem 300 mil habitantes e duas vezes a área do estado de São Paulo.

Mas nada melhor que os termos "obesidade e tédio" para nos elucidar mais sobre a intenção do texto. Com toda propriedade a matéria diz que ambos são "problemas de saúde no Xingu". Quem diz isso? A Funasa? Ou Pero de Magalhães Gândavo? A matéria não cita a fonte do dado. Além dos ecos do antigo discurso de que os índios são preguiçosos, nada poderia estar mais distante da realidade. Afinal, o que causa obesidade e tédio é ficar inventando besteiras e comendo hambúrguer na frente do computador.
 
Em suma, a revista Veja perdeu a oportunidade de aprofundar o tema dos conflitos indígenas, um assunto extremamente complexo e distante do pensamento minimalista e maniqueísta do texto. Talvez seu único mérito – que aparece afogado no meio de tantas distorções, exageros e irresponsabilidades – seja afirmar que o índio pode ter os mesmos defeitos como qualquer outro ser humano. Corrupção, chantagem, disputas de poder, traição, ganância etc., são fatos da vida de qualquer comunidade humana, seja ela indígena ou não. Infelizmente a imprensa brasileira é cada vez mais influenciada por esta nossa face vergonhosa e obscura. 

Fernando Zarur
Equipe Rota Brasil Oeste

Confira, abaixo, íntegra da matéria da revista Veja:

Veja – 28/04/2004

"Sem fé, lei ou rei"

A Funai fez das reservas indígenas áreas de preservação de sua própria burocracia e agora enfrenta acusações de corrupção.

Com o primitivismo característico do homem europeu culto e nobre do século XVI, o cronista português Pero de Magalhães Gândavo diagnosticou o que a seu ver seria a mácula original do caráter do

silvícola brasileiro. Depois de uma viagem ao Brasil em 1570, ele escreveu que os índios não podiam ser mesmo grande coisa, pois na língua deles "não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei". A confusão mental de Gândavo, que não via ordem ou justiça possíveis em uma sociedade estranha se ela não reproduzisse fielmente os vocábulos de seu próprio idioma, não difere muito da imagem que seus contemporâneos tiveram dos índios. Cinco séculos depois, essa imagem praticamente se inverteu. Os índios são idolatrados. No Brasil do século XXI, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo.

Na semana passada, com a descoberta de um massacre cometido pelos índios cintas-largas contra 29 brasileiros que garimpavam diamantes em sua reserva no Estado de Rondônia, a idéia de que o índio pode ser tão cobiçoso, cruel e mesquinho como qualquer outro ser humano voltou a ser cogitada. Não sem certa resistência, em especial da imensa burocracia federal encarregada de tutelar os selvagens brasileiros, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai, e seu chefe, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, justificaram o ataque dos índios como um ato de defesa de suas terras. Ambos lembraram que os garimpeiros estavam "cometendo um crime". Qual? Prospectar diamante em áreas indígenas. Pero de Magalhães Gândavo ficaria deveras contente em ouvir tais justificativas. Descobriria que estivera certo todos esses séculos. Se as maiores autoridades do país encarregadas da política indigenista reconhecem que os índios podem matar quem garimpa em suas terras então está claro que são mesmo uma gente sem fé, lei ou rei. Tanto os tutelados quanto seus protetores, diria um cronista moderno. Como outros ministérios e órgãos do governo do PT – os mais notórios deles aqueles ligados à reforma agrária -, a Funai vem ajudando a criar no país uma falsa "questão indígena". Donos de 12% de todo o território nacional, os cerca de 410.000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu.

O próprio PT deu o alerta sobre essa nova forma de atuação proativa da Funai. No ano passado, o governador petista de Mato Grosso do Sul, José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT, pediu ao presidente a substituição dos três administradores da Funai no Estado. Segundo o governador, funcionários da Funai estavam transportando em seus carros índios terenas para uma área invadida com o objetivo de "aumentar o contingente de conflito". Agora outro governador, Ivo Cassol, de Rondônia, vê na atuação da Funai o catalisador de discórdia e tensão em seu Estado. O governador corroborou as acusações feitas por um bispo de Ji-Paraná, em Rondônia, dom Antonio Possamai, segundo quem a Funai faz vistas grossas ao uso por contrabandistas das pistas de pouso existentes na reserva dos índios cintas-largas. "A Funai sabe de tudo. Contrabandistas pousam seus aviões em pistas da própria Funai, que vê tudo e não fala. Até o acompanhamento da negociação das pedras de diamante é feito sob os olhos dos funcionários do órgão", acusa o governador Cassol. Uma comissão de deputados federais liderada por Alberto Fraga, do PTB do Distrito Federal, esteve na semana passada em Espigão dOeste, cidade distante 20 quilômetros da reserva onde ocorreu o massacre. Fraga reclamou do controle total que a Funai tem do acesso ao território indígena. Disse Fraga: "Nem a Polícia Federal pode entrar na reserva, e o que se ouve na cidade é que o comércio de diamantes é acertado com os caciques na presença do pessoal da Funai".

O governo já fora informado da tensão na área da Reserva Roosevelt e nada fez para esfriar a temperatura elevada devida à cobiça de índios, garimpeiros e, como sustentam o governador, o bispo e o deputado, dos funcionários da Funai. Os cintas-largas se confundem com a população não índia de Espigão dOeste. Os caciques vivem parte do tempo nas melhores casas da cidade, que eles compraram com o dinheiro do comércio de diamantes. As propriedades dos caciques nas cidades de Cacoal e Pimenta Bueno estão entre as mais caras. Em Cacoal, por exemplo, o cacique João Bravo tem uma mansão com cercas eletrificadas e vigilância eletrônica. Só usam carros do ano. Eles preferem as caminhonetes como a Hilux 3.0. A de um dos filhos do cacique Bravo é equipada com DVD-player. Muitos dos chefes índios apontados como suspeitos de comandar o massacre dos garimpeiros na semana passada já respondem a processo na Justiça Federal. Eles são acusados de formação de quadrilha, garimpagem ilegal e contrabando.

A força-tarefa comandada pela Funai, que cercou a reserva dos cintas-largas depois do massacre dos garimpeiros, atua de forma bastante peculiar. As estradas de acesso à reserva estão fechadas e os carros são minuciosamente revistados. Mas, por alguma razão misteriosa, as revistas visam apenas aos veículos que se dirigem à cidade de Espigão dOeste e à reserva. Os que saem não sofrem nenhum tipo de revista. No dia 19 de abril, índios paramentados de índios entraram livremente no Congresso Nacional, ocuparam as mesas dos parlamentares e fizeram discursos em saudação a eles próprios. Com as tribos indígenas prósperas, donas de latifúndios tão vastos e sob a tutela da Funai, fica a pergunta: quem vai cuidar da tribo dos garimpeiros? A cultura deles pode não ser tão atraente do ponto de vista antropológico, mas certamente atrairia a curiosidade de cronistas seiscentistas como Magalhães Gândavo. Eles gostavam de perdedores.

Leonardo Coutinho, de Espigão dOeste

As belezas do Jalapão

Vistos através das revistas turísticas o Jalapão é um paraíso perdido, uma espécie de Parque Krüeger brasileiro no qual é possível pegar um avião de São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília para fazer safáris fotográficos e divertir-se nas inusitadas dunas em meio ao cerrado, sempre no conforto do ar condicionado. A maior parte da viagem de carro – onze horas de Brasília, DF, até Ponte Alta do Tocantins, TO – parecem comprovar o que se publica: asfalto bom, cidades pequenas e paisagens maravilhosas. As coisas começam a mudar depois que o asfalto novo acaba, cerca de 40km antes da cidade.

Ponte Alta nos recebe por volta das nove da noite com poucas luzes, céu ameaçador e uma festa no clube da cidade que nos ia alentar o sono com "Éguinha Pocotó" e afins.

Depois de instalados na hospitaleira Pousada Planalto – única da cidade – fomos direto saciar a fome de um dia inteiro na carrocinha de cachorro-quente da praça central:

– Num dá para comer cachorro-quente, não, senhor, afirmou o dono do quiosque.
– Por quê?
– É que não encomendei o pão ao padeiro hoje de manhã e a farinha tem que chegar de Porto (Nacional, localizada a 136km de distância).

jalapao1.jpgAssim fomos percebendo que os desafios locais estão muito além da imagem tranqüila de santuário ecológico. Ponte Alta, por exemplo, é conhecida como "Portal do Jalapão" e está cercada pelas atrações que transformaram a região num dos mais conhecidos destinos do turismo de aventura do Centro-Oeste brasileiro: dunas avermelhadas, veredas, cachoeiras, rios de impressionante força e beleza, trilhas para offroad, cenários selvagens.

A imensidão das dunas, principal cartão-postal do Jalapão, atrai visitantes de todo o Brasil. Foto: Fábio Pili

jalapao2.jpgNo entanto, poucas vezes as lentes dos visitantes focam outro lado da vida regional. Enquanto pacotes turísticos de três dias custam muito mais de R$ 1 mil, no Jalapão existem lavradores como Manuel Bomfim, que alimenta a família de dez pessoas com agricultura de subsistência e uma renda mensal que varia entre R$ 30,00 a R$ 50,00 – resultado de empreitadas em fazendas vizinhas.

Enquanto pacotes turísticos de três dias chegam a custar mais de mil reais, a família Santos ainda sobrevive da agricultura de subsistência. Foto: Fernando Zarur.

Do alto do caminhão, raros são os turistas que lembram o fato da região ser composta por remanescentes de quilombos ou que os moradores, pouco mais de quatro décadas atrás, precisavam andar até quatro dias a cavalo para comprar sal. Em geral, chegam já empacotados em tours inflexíveis, preocupados em registrar apenas araras e cachoeiras. Assim, o auxílio do turismo à economia local ainda é pouco, quase limitado à compra de artesanato.

| A realidade por trás das dunas >

A realidade social por trás das dunas

Apesar de estar a apenas a 205km de Palmas, TO, e ter visitas regulares de milhares de visitantes, o Jalapão continua sendo um local isolado. Os moradores contam que comemoraram a chegada da primeira geladeira em 1985. Há uma década atrás, a viagem até Porto Nacional, distante 136km, era uma aventura de dois dias pelas serras. Aliás, a região continua tendo uma das menores densidades populacionais do Brasil: 0,8 habitantes por quilômetro quadrado (dados do governo do Estado do Tocantins).

jalapao3.jpgHoje, cidades como Ponte Alta de Tocantins convivem com uma nítida dicotomia. Só agora os moradores começam a assimilar as mudanças trazidas pelo desenvolvimento do novo Estado e o advento do turismo. A valorização do artesanato de capim dourado – cujos trabalhos chegam a valer algumas centenas de dólares no exterior – mudou as relações econômicas locais.

Casas de pau-a-pique e sapê são as acomodações mais comuns dos arredores da cidade e doenças como a hanseníase ainda atacam pessoas na região. Foto: Fernando Zarur

Há cerca de oito meses, por exemplo, comemorou-se a inauguração da primeira linha de ônibus regular a atravessa a região até os sertões da Bahia. Enquanto isso, o dono da carrocinha de cachorro quente da pracinha precisa encomendar o pão com um dia de antecedência porque o padeiro nem sempre tem os ingredientes necessários para o ofício.

Outro dado interessante: a cidade encontra-se no que se chama de “sombra” nas transmissões de rádio. Ou seja, os moradores locais estão, talvez, em um dos únicos locais do Brasil onde há pessoas que desconhecem o chavão: “Em Brasília, 19 horas”. Hoje, no entanto, quem pode compra uma antena parabólica e abre uma janela ao mundo da televisão e rádio. Ainda é comum, também, achar quem de lá nunca tenha saído. “Como é o rio Tocantins?”, a pergunta nos surpreendeu na cidade, localizada a pouco mais de uma hora de carro das margens do próprio.

< As belezas do Jalapão | Aproveitar o turismo é o maior desafio >

O brilho do Capim Dourado

 Além do turismo, outro fator que está revolucionando a economia local é a crescente popularidade do artesanato de capim dourado. A planta, que só existe nessa região, permite a realização de trabalhos de extrema beleza. As bolsas, cintos, pulseiras, bandejas, descansos e chaveiros feitos com a palha ficam com a aparência e o impressionante brilho do ouro. Valorizadas quase como o metal, algumas peças de capim dourado chegam a custar US$ 500,00 no exterior.

capim1.jpgA arte originou-se no vilarejo de Mumbuca, TO, composto por remanescentes de antigos quilombos que ainda enfrentam sérios sociais, como desnutrição e falta de saneamento básico e doenças, como a hanseníase. O artesanato, no entanto, está começando a melhorar a vida no local. Além disso, a demanda já é tão forte que a técnica hoje é difundida nas diversas vilas da região. Com isso começam a surgir as primeiras associações de produtores, tendo os turistas como principal mercado consumidor.

Artesã trabalha em bolsa enquanto exibe outros produtos à venda para turistas em Ponte Alta do Tocantins. Foto: Fernando Zarur.

miuda.jpgUma das mais antigas artesãs do capim é Dona Miúda (na foto ao lado), 72 anos. Ela ficou conhecida por ter popularizado a arte na região e nos recebeu na soleira de sua casa para uma conversa. Sentada num banco feito de galhos de buriti, em frente à sua casa de adobe, Dona Miúda conta que aprendeu a técnica de sua mãe e sua avó que, por sua vez, aprenderam de índios que habitavam a região. Desde cedo, ela conta que a arte ajudou a alimentar seus 12 filhos. Enquanto conversa ela tece mais um de seus trabalhos para mostrar que continua em plena atividade e nos dar uma idéia da complexidade do trabalho que ela reclama estar sendo superexplorado.

Na sua opinião falta qualidade em muitos trabalhos que não respeitam a tradição. Ela diz que "agora qualquer um faz" e defende algum tipo de identificação para diferenciar a origem das peças. "O dinheiro ajuda a gente comprar coisas, mas podia ser melhor. Agora na posse do Lula eu mandei um chapéu que fiz especialmente para ele lembrar aqui da gente" , afirma.ete a situação com uma forte inflação. Algumas peças que podiam ser compradas por R$15,00 em novembro do ano passado, por exemplo, passaram a custar R$35,00 em março de 2003.

Estimulados pelo lucro, o aumento da produção começa a desequilibrar o meio-ambiente local. "Hoje a gente anda cada vez mais longe para pegar o capim", admite Dona Miúda. "Mas isso é porque bicho come e muita gente não sabe cortar", conclui. Assim como a maioria dos vizinhos, para ela é impossível acabar cA exploração incondicional do artesanato também pode ameaçar a existência da planta, que cresce nas margens dos vários rios que entrecortam o Jalapão. Além de arrancar o capim pela raiz, os moradores usam o fogo para fazer a colheita. Alguns argumentam que isso ajuda o capim a crescer mais forte depois. Porém, não há estudos conclusivos sobre o assunto. Soma-se a isso outro fator: a linha usada para trançar o capim é extraída do chamado "olho do buriti" . Ou seja, é necessário abater um buriti inteiro para extrair-lhe a parte interior e fazer os fios usados no artesanato.

buriti.jpgA palha do Buriti, utilizada para trançar os fios de capim dourado no artesanato, é extraída do chamado "olho" da palmeira, seu broto central. Os artesãos locais afirmam que para remover a palha não causam danos à plantas, mas algumas pessoas argumentam que o processo mata rapidamente o Buriti. Em meio à controvérsia, a falta de planos de manejo e pesquisa ameaçam a vegetação utilizada para o extrativismo na região. Foto: Fábio Pili.

Por outro lado, a produção também ajudou os moradores que se organizam em cooperativas para produzir e vender peças aos visitantes. A associação de Mumbuca mantém uma casa de vendas no centro do vilarejo, que também serve como centro de reunião para a comunidade artesã. Em abril deste ano, por exemplo, a comunidade realizou uma exposição em Brasília apoiada pelos Ministérios do Meio Ambiente e da Cultura. O evento, que contou com a presença da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, celebrou a exportação do artesanato para outros países.

capim2.jpgA alternativa econômica está começando a ajudar a população, uma das mais pobres de toda a região, mas precisa ser administrada com cuidado. Os estudos sobre o assunto agora concentram-se em entender o manejo auto-sustentável do capim. O segundo passo será conscientizar os produtores. Enquanto isso, a confiança fica em Deus e a culpada é a vaca.

Peças de capim dourado expostas na associação de produtores da comunidade de Mumbuca. Foto: Fábio Pili. 

< Aproveitar o turismo é o maior desafio  | Educação ambiental ainda é novidade na região >

Educação ambiental ainda é novidade na região

A preservação ambiental é uma preocupação nova no Jalapão. Conhecida por ser um ecossistema delicadíssimo, a área é vista por especialistas como um importante e estratégico depósito da água doce nacional, ameaçado de virar um enorme deserto se não for preservado. Percebendo isso, há cerca de dois anos o governo começou a olhar a região com mais cuidado.

foto21.jpgO marco neste sentido é a recém criada Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins, sob responsabilidade do Ibama, é considerada uma das mais importantes áreas de preservação do cerrado. A reserva é das principais medidas do pacote verde anunciado pelo governo Fernando Henrique para comemorar o dia da árvore em 2001. Sua formalização aumentou em cerca de 30% a área de cerrado protegida por lei.

Além disso, ela forma um corredor ecológico ao lado do Parque Nacional Nascentes do Parnaíba; das Áreas de Preservação Ambiental (APAs) da Serra da Tabatinga e do Jalapão (TO) e do Parque Estadual do Jalapão (TO). No total, são 160 mil hectares de vegetação nativa. A intenção é salvar a fauna da região e permitir a mobilidade dos animais por esta extensa faixa contínua de verde.

Para tanto, o acesso à reserva será restrito. O chefe da equipe do Ibama, composta por apenas três técnicos, Paulo Cezar dos Reys Bastos, explica que os visitantes não precisam se preocupar. "Nós estamos protegendo uma área extremamente delicada de nascentes, lagoas e veredas que está ao sul das dunas e não inclui nenhum dos pontos turísticos", afirma.o também promete ser um importante aliado para promover o desenvolvimento sustentável da região. Um dos desafios da equipe é tornar as novas oportunidades econômicas, como o turismo e o artesanato, em aliados na preservação e nas tão necessárias melhorias sociais.

jacare.jpgUm trabalho de educação ambiental, por exemplo, foi iniciado pela equipe em Ponte Alta, sede da Estação, e deve ser ampliado para outros vilarejos como Mateiros (TO) e até Formosa do Rio Preto (BA), no extremo leste da região. Técnicos do Ibama trabalham ao lado dos professores para conscientizar os alunos da rede local. "O resultado em Ponte Alta já foi muito bom, conseguimos passar noções de eco-turismo e agora estamos começando a fazer o trabalho de formação de condutores" – explica o técnico do Ibama, Miguel Bernardino dos Santos. mais importante dessa iniciativa, além de gerar mais uma oportunidade de renda para os moradores, é evitar o turismo predatório. Com equipe tão pequena, o Ibama terá que contar com toda colaboração para preservar a região. Em fevereiro deste ano, foi ministrado pela primeira vez um curso de formação de condutores que habilitou dez moradores como guias oficiais. A idéia é seguir o caminho da parceria com a população e conseguir conscientizar e fiscalizar ao mesmo tempo.

Osso da mandíbula de um filhote de jacaré abatido por caçadores nas imediações de uma lagoa. Foto: Fábio Pili

Nessa linha, outra função fundamental do grupo é prestar esclarecimentos para fazendeiros. Como em várias outras partes do país, um dos grandes inimigos do meio-ambiente no Jalapão é o fogo para pastagem. A idéia é orientar e conversar para evitar novos incêndios. A caça de animais silvestres também é um dos assuntos que devem ser fiscalizados pelo Ibama local.

< O brilho do Capim Dourado  | Traçando as fronteiras da futura reserva >

Traçando as fronteiras da futura reserva

Um exemplo das dificuldades que vão enfrentar a equipe do Ibama responsável pela Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins, foi o trabalho de reconhecimento de fronteiras realizado em maio de 2003. O Rota Brasil Oeste acompanhou com exclusividade a atividade que envolve contato com famílias isoladas, fazendeiros e vai muito além do GPS e a caminhonete 4×4.

Munidos do único veículo de tração 4X4 do Ibama na região, os técnicos iniciaram o processo pela parte sul do parque. Dentro das fronteiras estão localizadas 30 propriedades que terão de ser desapropriadas, mas o maior desafio não são os grandes proprietários.

miguel.jpgSaindo de Ponte Alta por volta de meio-dia, seguimos por dezenas de quilômetros em uma trilha local típica: atoleiros, areia e vistas deslumbrantes. No caminho, hora de sol a pino, encontramos uma família de seis pessoas que se dirigiam para o Córrego Alto Alegre. Conversando, descobrimos que eles tinham deixado Ponte Alta ainda de noite e vinham caminhando por mais de quatro horas.

Miguel do Santos, funcionário do Ibama, trabalha na demarcação dos limites da estação ecológica. Foto: Fábio Pili.

– Pra gente isso é comum, a gente sai de lá de noite e chega para o almoço, explicava a moça com uma criança no colo.

Lombo de burro, bicicleta e as próprias pernas continuam sendo os meios mais comuns de locomoção para os moradores, que já estão acostumados com a poeira jogada da tração dos 4X4. O destino desse grupo era a casa de Maria Odina Pereira dos Santos, dona de uma cabana de pau-a-pique na beira de um córrego. Trabalhadora rural aposentada ela tem uma sorte rara na região: recebe R$ 200,00 do INSS. Com isso e alguma coisa que planta, ela mantém ou ajuda seus nove filhos e netos.

A chegada do carro do governo é vista por desconfiança. Só depois de muita explicação é que Miguel dos Santos consegue deixar claro que está ali para ajudar. Depois de anos de opressão, o reflexo automático é receber qualquer autoridade com respeito e, como diz a música: "falando de lado e olhando pro chão". um testemunho de sua vida de subsistência. Construída com barro numa armação de gravetos, o visitante se abaixa para adentrar uma sala de chão de terra batida com um forno também de barro no canto onde fervia uma panela. Quem nos dá as boas vindas na parte é uma de suas filhas que amamenta uma criança com menos de um ano de idade.

De novo do lado de fora – enquanto observávamos a pequena plantação de mandioca, abóbora e frutas em torno da casa – o GPS conectava via-satélite a um inflexível computador que indicava: a construção está localizada dentro das fronteiras da reserva. No entanto, Miguel explica que não será necessário removê-la. Hoje, a filosofia para casos de moradores antigos e isolados é cadastrá-los e deixá-los em suas terras. Nos despedimos e D. Maria pede várias desculpas porque não pôde nos oferecer café, "o pó acabou!"das que já estão em fase de desapropriação e, seguindo sempre o GPS, chegamos a uma nova casa, esta também isolada dentro da reserva.

manuel.jpgSeguimos o mesmo ritual. Miguel aproxima-se para conversar com o chefe da família que vive ali. Manuel Bomfim (na foto ao lado) responde ao cadastramento. Ele conta que mantém dez pessoas apenas com agricultura familiar e trabalhos esporádicos para as fazendas da região , nos quais fatura entre R$30,00 e R$50,00. A alternativa para ele deve ser a mesma, continuar morando dentro da reserva e talvez até ajudar de alguma forma o trabalho dos fiscais.

Enquanto conversamos, sua mulher prepara um café novo no fogão à lenha. Servido quente, mesmo no calor escaldante, a bebida nacional parece aquecer um pouco mais a alma. A tradição, um verdadeiro ritual de boas vindas, é típica do interior brasileiro. Assim como os desafios, contradições e belezas do Jalapão.

< Educação ambiental ainda é novidade na região  |

Aproveitar o turismo é o maior desafio

formiga.jpgÉ inegável que os visitantes, a venda de capim dourado, a chegada do asfalto e da televisão; transformam a vida em cidades como Ponte Alta do Tocantins. Apesar do relativo isolamento que persiste para a população local, todo final de semana e principalmente durante as férias, cruzam a praça da cidade dezenas de carros importados preparados para enfrentar as estradas de terra, areia e lama.

Com o aumento do afluxo e da fama, um assunto que preocupa é o controle e o cuidado que devem ter os visitantes. Mesmo que vários jipeiros procurem preservar a natureza, as erosões provocadas por motoristas menos atenciosos preocupam. Os veículos com tração 4X4 abrem caminho para água passar pelo frágil solo arenoso do Jalapão. Cada pista improvisada no meio do mato tem potencial de se transformar numa enorme erosão em poucos anos.

A cachoeira da Formiga é um dos pontos turísticos que continuará aberto à visitação, por se encontrar fora das áreas da nova reserva. Foto: Fábio Pili.

Outros lugares, como o fervedouro, sofrem com abusos e excesso de visitantes. A mina dágua encanta pelo inusitado: é simplesmente impossível afundar. Nem mesmo um homem adulto, saltando de boa distância, com todo seu peso; consegue mergulhar. O fenômeno é explicado pelo lençol freático que aflora com força total. Uma prova da abundância da região.

Há cerca de dois anos as bordas do pequeno poço se romperam por causa do excesso de nadadores ávidos para sentir o impressionante efeito da corrente. As margens tiveram de ser escoradas por sacos de areia e a situação está temporariamente sob controle. A estimativa é que a solução improvisada resolva o problema por menos de dois anos.

florencio.jpgAlém disso, os grupos que vêm de todo o país passam, às vezes, sem deixar benefícios econômicos para os locais. As iniciativas de turismo de maior envergadura são raras e estão praticamente limitadas à única pousada de grande porte, localizada longe das cidades, e ao caminhão que faz uma espécie de safári pela região. Na prática, a estrutura turística é incipiente e os estímulos governamentais estão sempre ligados a apadrinhamentos políticos.

Seu Florêncio controla o acesso à cachoeira da Formiga, um dos principais pontos turísticos da região. Cada visitante paga uma taxa de R$ 5 pela entrada. Foto: Fábio Pili.

Em Ponte Alta, por exemplo, só agora começam a surgir os primeiros tímidos negócios relacionados ao turismo. A Pousada e Restaurante Planalto, o Hotel e Restaurante Coelho, o Hotel e Restaurante Turibe e o Restaurante Beira-Rio – que tem um ótimo PF com pescado frito – são os quatro únicos estabelecimentos do tipo localizados na cidade.

Entre eles, o destaque fica para a Pousada Planalto, administrado pela Dona Lázara Silva. A hospedaria não traz grandes luxos, mas acolhe o viajante como parte da família. Lembrando as antigas pousadas de interior, o visitante tem privilégios que nenhum hotel cinco estrelas oferece, como o direito a saborear um bolo de milho caseiro.

< A realidade social por trás das dunas | O brilho do Capim Dourado >

Chico Chagas, artesão bom de histórias

Além de exímio carpinteiro, fazendeiro, tocador de sanfona e ótimo contador de casos, seo Francisco Chagas é o primeiro artesão a fabricar carrancas já na nascente do rio São Francisco.

Ligado ao rio até pelo nome, seo Chico Chagas, como é conhecido, mora num sítio no sopé da Serra da Canastra. Natural de São Roque de Minas, ele ficou conhecido nas redondezas quando começou a fazer carrancas, atividade que era apenas um passatempo quando esteve proibido de sair de casa depois uma operação de hérnia.

chicochagas.jpgA extrema habilidade para trabalhar a madeira é uma herança do avô carpinteiro, e deu facilidade ás primeiras caretas esculpidas, usando como molde apenas suas lembranças. Ele explica didaticamente que a carranca é usada para afastar o mau. Ao lado de cada explicação, segue uma pequena história:

“Meu avô sempre ia pescar com meu tio-avô, nuns rios que tinham aí pra cima. Meu tio sempre falava pra tomar cuidado com o caboclo d´água, uma mistura de homem e macaco que vira a canoa para comer as pessoas. Meu avô num acreditava em nada disso. Mas um dia ele tava pescando, a canoa começou a bambear. Quando ele viu uma mão agarrada na borda, ele tirou o facão e cortou. Era a mão do caboclo d´água, ela era preta com umas coisas assim no dedo que nem pato. Ele guardou isso até as vésperas de sua morte. A carranca é pra isso, o caboclo d´água vê aquela cara mais feia que ele e vai embora”.

Seu Chico Chagas conta seus causos ao redor de sua sanfona. Foto: Fernando Zarur.

Além dos causos, seo Chico também é conhecedor dos problemas que a região enfrenta atualmente. Reclama da degradação ambiental no Parque da Serra da Canastra, do rio São Francisco e de que as autoridades deviam pensar mais sério sobre o meio ambiente. Ele sugere, por exemplo, a construção de pequenas usinas para aproveitar a queda natural das dezenas de cachoeiras da região.

Chico defende que em locais onde não há tratamento de esgoto, as pessoas deveriam usar mais o banheiro ao ar livre. “Eu acho que as pessoas tinham que usar mais o campo para defecar. Poderia até ser construída uma fossa comunitária. Aí, deixava encher e doava tudo como adubo para os fazendeiros”.