Arqueólogo reivindica reconhecimento de civilização milenar no Xingu

O arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, afirma que a região do Parque Indígena do Xingu comportou uma sociedade altamente complexa vários séculos atrás.

Heckenberger relata a existência de vestígios seguros de ocupação humana há pelo menos 1.100 anos na região, que corresponderia, grosso modo, ao território atual do parque indígena, de quase 30 mil quilômetros quadrados. Segundo o pesquisador, que trabalha em colaboração com os antropólogos Bruna Franchetto e Carlos Fausto, o auge do que ele chama de Nação Xinguana se deu entre os séculos XIV e XVI.

Ele falou à Agência Brasil no dia da inauguração do Centro de Documentação Kuikuro, 22 de julho, enquanto moradores e visitantes embrulhavam tucunarés e outros peixes moqueados (assados e defumados durante horas) em beiju de mandioca.

Quando o senhor teve uma pista mais concreta sobre a dimensão dessa sociedade antiga no Xingu?
Logo no começo do trabalho. Quando cheguei em 1993, o cacique Afukaká [dos Kuikuro] me levou para ver um sítio antigo, eu esperava um sítio de praça circular relativamente pequeno igual ao de hoje. Mas era muito maior. Tinha muitas obras, muita elaboração. O mesmo formato que o de hoje, uma praça circular com estradas radiais partindo dele, mas era dez ou 15 vezes maior. Onde tinha uma aldeia atual, a gente achou uma rede de 20 sítios ligados por estradas, que tinham até 50 metros de largura.

Seria algo como a Civilização Marajoara, também amazônica?
Lá, também, se mostra uma rede regional de assentamentos, obras de aterro, conhecidas como tesos, relativamente grandes. Aqui, no Xingu, não tem tesos, não tem pirâmides, era uma monumentalidade horizontal. Mas em termos de quantidade de pessoas e tecnologia acho que era bem mais complexo. Estou discutindo e até brigando para abrir um espaço de que essa era uma verdadeira civilização, não era obviamente aquele estilo europeu, com prédios grandes e essas coisas, mas em termos de sofisticação era supercomplicado, e tinha bastante gente. Na Europa, na América do Norte, no litoral do Peru esse sistema seria chamado de civilização.

O que eles tinham em termos de conhecimentos e técnicas?
O que mais me impressiona é o sistema, vamos dizer, cartográfico. A posição das aldeias, praças, estradas, ligava-se a conhecimento cartográfico, baseava-se em mapeamento, planejamento supersofisticado. Era um sistema ligado a astronomia, com rituais calêndricos. Um mundo que junta cosmologia, política e cartografia, e no qual a Terra é um espelho para o que tem no céu. Um planejamento urbano, até. As estradas sempre na mesma direção, a distância de um sítio a outro praticamente o mesmo, ângulo e distância. Eram também sociedades com lado agrícola bem sofisticado, pesca e manejo bem sofisticado de outros recursos aquáticos, mas não acabaram com as florestas. De lá para cá não mudou muito isso. Eu vim da Alemanha, e vi coisas que me lembram mais de lá que o clássico dos povos de floresta tropical.

Como era a organização espacial desse sistema?
Eles eram organizados em conjuntos hierárquicos, com uma ou duas aldeias principais, várias secundárias e cinco a dez sítios-satélites menores, e você passa ao território de outro conjunto. O diâmetro de um conjunto era 20 quilômetros. O normal era ter oito a 12 aldeias num conjunto. Eu os chamo de polities a pari – pare polities. Um conjunto é um polity [comunidade organizada politicamente] e o outro é a pari [por igualdade]. Não era um sistema como o dos Incas ou o de Roma, que tinha um centro e todos os outros conjuntos abaixo. Todos os conjuntos eram iguais, como os caciques de hoje são iguais. Tinham espaço de 250 a 400 quilômetros quadrados cada um.

Quantos eram no total?
Pelo menos 20 ou 25, talvez bastante mais, no que eu chamo de Nação Xinguana, que é mais ou menos a área ocupada hoje pelo parque, mas se espalha um pouco mais para o norte. Diminuiu um pouco a área deles durante a época histórica [depois dos registros escritos], por causa de epidemias, da fronteira de colonização. Comparando com as outras civilizações… Por exemplo, as pólis da Grécia eram centenas. Atenas era enorme, Esparta também, mas a maioria das pólis era muito menor, milhares de pessoas num território de 150-200 quilômetros quadrados. Mas ninguém duvida de que a Grécia clássica era uma civilização. Os incas eram uma anomalia, um império, durou 60-70 anos, durante uma pré-história de 10 mil anos. Roma também era anômala. Todos os outros assentamentos na Europa eram do tamanho deste. Eles tinham um centro e uma periferia, aqui era multicêntrico.

E qual era a área ocupada pela nação inteira?
Pelo menos 20 mil quilômetros quadrados. E a gente não sabe bem. Eu estou trabalhando na área kuikuro, um bloco de uma nação bem maior.

A existência dessa sociedade vem sendo aceita no meio científico?
Tem gente que não acredita, de jeito nenhum, que sociedades como essas poderiam sobreviver em floresta tropical. Obviamente, as pessoas não vão abandonar seus modelos de um dia para outro e dizer “a gente estava totalmente errado”. Outros vão se convencendo. Carlos Fausto [antropólogo do Museu Nacional] entrou na área em 1998. Não foi a favor nem contra, entendeu a possibilidade. Mas veio aqui e concordou com o que eu tinha pensado para os grupos atuais: que eles eram hierárquicos, sedentários, regionais, e montou uma etnografia superdetalhada. Nós, e a lingüista Bruna Franchetto, concordamos em quase tudo. E se essa sociedade hoje é sedentária, tem uma cultura, uma vida ritual, social e política complexa, superprodutiva, com manejo de terras sofisticado, e aqueles de ontem, que eram dez vezes maiores?

Como o atual modo de modo de vida dos xinguanos pode dar indicações sobre essa ocupação antiga?
Você não precisa inventar as formas econômicas, cosmologia, rituais dessas sociedades. Eles [hoje] já são muito parecidos com muitas sociedades complexas. Têm astronomia, conhecimento de biologia. Só que dá um choque no pessoal [da área científica], porque eles pensam: é um povo muito pequeno. Mas ignorar a porrada demográfica que esses povos levaram durante os últimos séculos é impossível.

Qual foi o impacto da chegada dos colonizadores sobre essa nação?
O choque de colonialismo botou eles no chão, [a população] era muito maior. A gente sabe que no Caribe, nos Andes, Mesoamérica, América do Norte – todo lugar onde tem registros documentais escritos – epidemias levaram muita gente. Aconteceu aqui na Amazônia também, mas escondido. Ninguém estava lá para testemunhar. Nesta área, os primeiros registros escritos são de 1884, e aí já era uma fração do que era em 1500.

Quais foram as descobertas recentes nessa pesquisa?
A gente sempre encontra algo que mostra um entendimento novo. Nos últimos anos era mais fechar que a gente já sabia existir. Estou terminando o relatório dos últimos quatro anos para entregar aos órgãos federais e às lideranças indígenas, especialmente a Aikax [Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu]. E aí a gente continua com essa campanha de destacar esta sociedade. Mundialmente você não encontra muitas sociedades assim que estão inteiras, vivas. É um patrimônio mundial. Esse e outros grupos amazônicos estão abrindo um novo capítulo sobre a história humana: o das civilização amazônicas.

Sobrevôo na região do Xingu revela a tapeçaria do agronegócio

Sobrevoando a região do Parque Indígena do Xingu em um monomotor rumo ao oeste, constata-se que o agronegócio está mesmo ali, 6 minutinhos pelo ar, ou menos de 30 quilômetros para além do parque, de acordo com a percepção do piloto que conduz os repórteres ao município mato-grossense de Sinop.

O tapete verde da área indígena dá lugar, então, a amplos quadrados e retângulos beges, marrons, vermelhos ou verdes claros, com retalhos verde-escuro de mata aqui e ali. Talvez por ironia, as linhas que os tratores escavam e os arados riscam  muitas vezes lembram as pinturas corporais com jenipapo e urucum e as tapeçarias de buriti e algodão dos povos indígenas.

Ou a escarificação feita com um pente de dentes de peixe-cachorro, com o qual os alto-xinguanos preparam os jovens em reclusão no programa de fortalecimento para lutar o huka-huka numa das festas desses povos.

Os desenhos mecanizados significam dinheiro para o país: no ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio – isto é, a soma das riquezas produzidas no setor – foi de R$ 540,06 bilhões, segundo estudo da Confederação da Agricultura e da Pecuária (CNA).

Significam também obtenção de divisas, isto é, entrada de moeda estrangeira. Segundo os dados do governo federal, o agronegócio respondeu por 93% do superávit (saldo positivo) comercial brasileiro em 2006, que totalizou US$ 46 bilhões. Os setores que mais colaboraram para isso foram os ligados à soja, com saldo de US$ 9,37 bilhões.

O Mato Grosso responde por mais de um quarto da produção nacional do grão, que registrou safra recorde este ano, apesar da redução na área plantada. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) prevê expansão da sojicultura na próxima safra no estado, usando principalmente áreas que já têm ocupação humana.

O Instituto Socioambiental (ISA) identifica risco para a floresta amazônica e para o Xingu nessa perspectiva. “Abraço da morte” é o cercamento do parque indígena pela derrubada de vegetação, pela soja e pelo gado, nas palavras do secretário executivo da entidade, Márcio Santilli.

Cacique yawalapiti pede a jovens que não abandonem tradições por causa da tecnologia

Visitante no fim de semana de festa na principal aldeia dos Kuikuro, o cacique Aritana, representando os Yawalapiti, diz que não se opõe ao envolvimento dos jovens do Parque Indígena do Xingu com a tecnologia – desde que ele não implique abandonar as tradições.

“Inclusive me entrevistaram aí hoje, eles são jovens, né?”, relata o líder, em entrevista à Agência Brasil. “Eu falei tudo isso para eles: Olha, principalmente vocês que estão mexendo com essa máquina aqui, depois não vão se sujar com urucum [semente usada para tintura vermelha], não vão querer fazer nada, vão querer fazer só isso, também não vale, né? Tem que participar de festa, participar de cerimônia, fazer tudo.”

Após ver imagens de um Kuarup (festa de celebração dos mortos) em 1984, ele comenta que os jovens estavam um pouco envergonhados nas danças do último sábado (21).

O integrante do Coletivo Kuikuro de Cinema Jairão (ou Mahajugi) Kuikuro, 20 anos, diz que as duas atividades não são excludentes: “A gente dança também. Como seis realizadores, vai se revezando com a câmera”.

Jairão leva uma prancheta com uma lista de perguntas jornalísticas, em português, aos participantes. Ele conta que escreve na sua língua e na dos brancos, além de falar kalapalo: “Para os mais velhos, é difícil escrever. Para mim, está fácil demais. Sou lingüista. Estou estudando direto. Eu não tenho vergonha de falar na frente do branco porque o índio foi o primeiro habitante do Brasil”.

“Escrevo bastante poesia em português”, conta o jovem kuikuro. “Com vela. Às vezes compro pilha, boto a lanterna, fico escrevendo na minha casa, na oca. ” Recorda trechos de poema elaborado às vésperas das sessões audiovisuais e da inauguração do centro de memória em sua aldeia: “Estamos aqui, cinco horas da manhã e tal… A poeira está incomodando os brancos. Ontem meu pai foi pescar…” Ele diz que escreveu em português, mas pode traduzir. “Quem lê sou eu mesmo. Meu irmão, a rapaziada.”

Para o jornalista Washington Novaes, autor de documentários sobre povos da região, existe um conflito latente, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações no Xingu. No centro dele estariam o consumismo e o abandono de atividades do cotidiano. “Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens”, comenta. “Eles vão perdendo a autonomia [de saber fazer todo o necessário à sobrevivência] e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra.”

Segundo o jornalista, a educação bilíngüe é criticada por muitos dos idosos. Ele diz não ter uma conclusão sobre a expectativa, de índios mais velhos, de que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos e formatos tradicionais. Na Aldeia Ipatse, boa parte do acervo do centro de documentação foi recolhido pelo grupo de cineastas.

Washington Novaes : Os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo

Para Washington Novaes, jovens e velhos vivem conflito latente no Xingu. O jornalista destaca a circulação de dinheiro nas comunidades como o grande fator de perturbação no cotidiano do Parque Indígena do Xingu e diz que existe um conflito enunciado, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações.

Novaes retratou o Xingu numa série de 11 documentários, gravada em 1984. Voltou à região em 2005 para documentar as mudanças nos grupos de cinco povos que havia visitado – Kuikuro, Kayapó (no caso, os Metuktire), Panará (antes conhecidos como Kren-Akrore), Waurá e Yawalapiti. No último fim de semana, os Kuikuro da Aldeia Ipatse e fizeram uma festa para, entre outros motivos, celebrar o lançamento de seu novo vídeo, com estréia na TV marcada para domingo (29).

Em entrevista à Agência Brasil, o jornalista aponta as razões pelas quais diz que os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo. 

O que mudou no Xingu nessas duas décadas?
Eles ainda têm aquele tempo que escorre mais devagar, mas com muitas transformações. Praticamente todas as casas, em várias aldeias, têm antena parabólica, então, quando têm combustível para o gerador, eles vêem Jornal Nacional, novela, jogos de futebol… Os jovens gostam muito de dançar forró, jogar futebol. Agora, talvez a transformação mais funda seja que antigamente não havia dinheiro nas aldeias, não tinha monetarização na cultura. E, a partir desse desejo de ter as nossas tecnologias, de ter televisão, de ter DVD, de ter gravador, de ter câmara de filmagem, trator, barco com motor, foi preciso que passassem a produzir dinheiro. Seja pelas associações de cada aldeia fazendo apresentações de suas danças e cantos fora, seja recebendo de direitos de imagem em filmagens… Também há, em várias aldeias, muitos velhos recebendo aposentadoria. E um salário mínimo é uma renda grande nesses lugares.
Outras pessoas tentam com a produção de artesanato. Os velhos dizem que os jovens não querem mais viver do modo tradicional, querem comprar tudo. Querem ter roupa, tênis, óculos escuros. E aí querem passar o tempo inteiro fazendo artesanato, e não vão se dedicar às atividades tradicionais, como cultivar as roças para produzir comida. Outro ângulo, muito mais complicado, é que os jovens não querem aprender os cantos, as danças, que estão todos relacionados ao mundo dos espíritos.

A presença dos espíritos era uma das origens dessa imagem que o senhor usou, “terra mágica”, não?

Sim. No mundo dos índios a questão do espiritual é decisiva, esse lado é profundamente ligado ao cotidiano, porque tudo tem um espírito que é dono. Se o culto aos espíritos não acontece a vida social começa a perder sentido. Além disso, os jovens não querem ser pajés, que é um caminho cheio de sacrifícios e de perigos, um longo processo. Os Waurá, que em 1984 tinham 13 pajés, hoje têm três; os Kuikuro tinham mais de dez e hoje têm cinco. Os Yawalapiti só têm Sapaim, que está com mais de 70 anos. Já há discussão entre os Waurá sobre um curso para isso. Mas no caminho tradicional o pajé não escolhe, é escolhido. Pode ser por meio de uma picada de cobra, de um rodamoinho que entra na casa, ou de uma doença, ou nascer enrolado no cordão umbilical.

Antes da projeção na Aldeia Ipatse, o senhor disse que os índios alteraram para sempre sua maneira de ver o mundo. Como foi isso?

A nossa cultura, em geral, enxerga-os de uma forma muito limitada. E não olha as culturas indígenas pelo que elas têm de mais importante. Por exemplo: a organização social e política. Entre os índios que vivem ainda na força de sua tradição, o chefe não manda em ninguém. Ele é a pessoa que conhece a história, conhece a cultura, as tradições, e transmite isso para seu povo em cada situação. É o grande mediador de conflitos, o que fala melhor, e, por isso tudo, o que mais sofre. E não dá ordens porque não há delegação de poder, e sem delegação de poder não pode haver repressão, e sem isso não pode haver repressão de um grupo por outro grupo, ou de um indivíduo por outro. Isso aponta na direção das utopias, uma sociedade que não precisa ter poder. E proporciona uma vivência para nós quase inimagináveis: alguém nascer e morrer sem receber uma ordem sequer.

Se formos comparar…
Nossa cultura tenta promover a democracia da maioria e raramente consegue, enquanto eles têm no dia-a-dia a democracia do consenso. O índio, na força de sua cultura, é um ser absolutamente auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisa para viver – plantar, caçar, pescar, sabe fazer sua casa, fazer seu instrumento, fazer seus objetos de adorno, sua rede, sua esteira, sua canoa. Nasce e morre sem depender de ninguém para nada. Me impressionou ver crianças que não apanham por nada, ver o carinho para com elas, a liberdade e a alegria delas. E, por fim, a informação é aberta. O que um sabe todos podem saber. Ninguém se apropria da informação para transformar em poder. Conviver com isso, ver que é concreto, mudou minha visão: eu sei que outras coisas são possíveis. É preciso que a nossa sociedade aprenda a ver essas coisas.

E as duas outras características – a ausência de informação restrita e a autonomia? Mantêm-se?
Eles [os xinguanos] estão no ápice de um conflito entre os mais velhos e os mais novos que é já enunciado, mas não tem ainda desfecho. Os velhos vêem com enorme temor o que está acontecendo e sabem que a cultura não vai sobreviver se os jovens não tomarem outro caminho. Isso ainda não se traduz em mudanças práticas, por exemplo, na organização social. Os chefes são instituídos pelo caminho tradicional. Em quase todas essa culturas, são escolhidos pela hereditariedade. E isso não é questão de privilégio: um chefe precisa ser educado desde muito pequeno, precisa de convívio permanente com o pai. Quando acontece alguma perturbação nesse caminho, é complicado. Quando os Villas-Boas [indigenistas que fizeram contato com vários povos] se aproximaram dos Kuikuro, nenhum Kuikuro falava português. Eles conheciam o Nahu, de pai nahukwá e mãe kuikuro. Quando morreu o pai do Tabata e do Afukaká, que ainda eram meninos, os Villas-Boas nomearam, entre aspas, o Nahu chefe. Isso gerou conflitos quando Tabata e Afukaká foram chegando à idade adulta, porque eles eram herdeiros tradicionais. Isso seguiu até que o Nahu morreu. O filho dele, Jakalo, que é kuikuro, é cacique hoje.

E quanto à auto-suficiência?
Logo, logo, vai começar a ter [implicações concretas]. Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens. Eles vão perdendo a autonomia e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra. Uma esperança deles é que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos, das lendas, dos formatos tradicionais.

Além das questões culturais, o subtítulo de sua nova série de documentários, A Terra Ameaçada, tem a ver com o entorno do parque.
O Xingu, você vê, é uma ilha de vegetação e de rios limpos, cercado pelo desmatamento da soja, da agropecuária, por hidrelétricas, por garimpeiro, por madeireiro. Já está sendo fortemente afetado pelas mudanças. Há um aquecimento evidente, causado pelo desmatamento no entorno. Alguns dos rios já chegam com agrotóxico, com sedimentos resultantes da erosão nessas atividades, que não respeitam mata ciliar [às margens dos cursos dágua, e cuja conservação é obrigatória], não respeitam nada. Os peixes podem ser afetados pelas hidrelétricas, e peixe é um dos alimentos fundamentais ali, com a mandioca.

O Brasil tinha que ter visão estratégica. Dar-se conta nas suas políticas de que que é detentor do fator mais escasso no mundo, recursos e serviços natu

rais, e de que o índio é guardião deles. Estamos consumindo, no mundo, acima da capacidade de reposição da biosfera, e mudanças climáticas são o segundo problema crucial. Um país que tem uma dimensão continental, tem 12% da água superficial, tem um terço da biodiversidade, tem possibilidade de uma matriz energética limpa e continua atado a um modelo que vigora há 500 anos, de exportar baratinho produtos primários e grãos para os países centrais…

Nesse contexto, como o senhor vê a expansão do biodiesel e do etanol?
As biomassas para produzir energia limpa, que podem ser uma das soluções [no combate ao aquecimento], ameaçam se tornar um grave problema. O álcool, por exemplo: é evidente que precisa haver um zoneamento para saber onde você pode plantar sem danos. É preciso também estabelecer regras, como alternação de culturas, para não ter monoculturas extensas. Juntar isso com a agricultura familiar, para ela não ser despejada dos lugares que ocupa, como já aconteceu no estado de São Paulo. Criar cooperativas para fornecerem cana, ou soja, ou pinhão-manso, ou a matéria-prima que for, para as usinas centrais, mas não transformá-los em fornecedores com preços aviltados. É preciso impedir as queimadas. Criar regras para remuneração dos trabalhadores, que hoje são quase escravos. E não deve ser essa a única alternativa. O Brasil tem altas possibilidades na energia eólica, na energia das marés, na solar. Um estudo mostra que se você ocupasse um quarto da Usina de Itaipu com placas de energia solar produziria o mesmo que a usina. E o Xingu não escapa a essa regra. O entorno precisa ser preservado, ele é uma preciosidade. São mais de 20 mil quilômetros quadrados praticamente intactos. Isso é quase uma Bélgica. Minha tese é que o Xingu deveria ser reconhecido como patrimônio histórico, ambiental e cultural da humanidade.
Levantamento do ano passado mostra bem isso – o baixo índice de desmatamento em boa parte da terras indígenas. Por outro lado, pesquisadores têm alertado para a insustentabilidade de algumas atividades indígenas, como a a caça para arte plumária, em muitos locais. É possível pensar numa limitação, algum tipo de manejo?
De fato, diversos estudos mostram que o formato mais eficaz para a conservação da biodiversidade está nas áreas indígenas. Não está nem nos parques, nas áreas fechadas, nem nas áreas de proteção permanente. As áreas indígenas significam hoje 23% da Amazônia. Mas é preciso pensar nessas questões. No Xingu mesmo, com o uso de caramujos em colares para a venda, eles já estão escasseando. Os Kuikuro estão fazendo intercâmbio com os Pataxó, fornecendo penas para eles. É evidente que isso vai levar a um uso excessivo tanto de caramujos como de aves. Os mais velhos dizem que o centro de preocupação deles está na educação. Desde que se implantou nas aldeias a educação bilíngüe, as crianças e os jovens passaram a aprender a língua portuguesa. A televisão se tornou uma presença muito forte, e eles vão incorporando novos valores e formatos de viver. Esse assunto não está em discussão ainda no Ministério da Educação, nem na Funai, em lugar nenhum. Não sei se se deve interromper [o ensino de português], mas acho que se deve discutir. É possível também que se pense uma política estabelecendo uma uma compensação para não haver um uso excessivo de recursos. Isso tudo precisa ser discutido com urgência.

Como o senhor mesmo apontou, os índios mais jovens, especialmente, manifestam desejo de ter produtos da sociedade de consumo e integrar-se mais aos brancos. Como lidar com isso? É possível um processo mais equilibrado?
Não sei. Eu tenho minhas dúvidas de que simplesmente pela apropriação da tecnologia de documentação em vídeo ou em áudio isso aconteça. Há algumas outras coisas sendo feitas, como o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais dos Yaualapiti, com apoio de uma historiadora e uma lingüista. Os antropólogos dizem que as sociedades indígenas são sempre capazes de absorver muitas coisas das outras culturas sem perder a sua natureza. Eu torço para que seja assim, mas, acompanhando há mais de 20 anos o processo no Xingu, fico com o coração apertado, me perguntando se elas vão ser capazes de resistir.

Que papel, a seu ver, o governo deve ter diante dessas questões?
Acho, em primeiro lugar, o país ter uma estratégia que valorize essas coisas que existem no Xingu. Isso precisa ter desdobramentos na educação, na demarcação de terras, na proteção das áreas. Pelo que vejo, praticamente nada nesse sentido está sendo feito. A área que tenho visto atuar é a da saúde. A Funasa [Fundação Nacional de Saúde] tem tido uma atuação muito forte com vacinação, e isso reduziu muito a mortalidade infantil, e com outras ações que eu me pergunto se são um bom caminho ou não, como colocar poços artesianos e água em cada casa, o que muda também o modo de viver.

O senhor pagou às aldeias por direitos de imagem. Acha que essa deveria ser a prática sempre?

Em 1984, quando consegui autorização da Funai [Fundação Nacional do Índio] para visitar todas essas áreas, uma parte da legislação a cumprir era uma portaria da Funai que estabelecia pagamento para qualquer documentação em área indígena. Só que isso nunca havia sido cumprido. Foi conversado com eles e com a Funai sobre o que seria justo. Foi depositado antes de irmos para lá, e criou um precedente principalmente para televisões do exterior. Agora houve negociação prévia, com participação da Funai, e eles estabeleceram R$ 30 mil por aldeia. Os Kuikuro me mostraram um caminhão e disseram que foi comprado com esse dinheiro. Eu sei que isso é uma contradição, um formato de entrada de dinheiro. Eu tento fazer com que o problema não seja maior fazendo que esse dinheiro vá para a associação da aldeia, e seja usado para acomunidade toda. Numa conversa com índios sobre essa questão, um deles brincou: “Você que ensinou o caminho…”

A série original, Xingu – A Terra Mágica, chegou a ter 20 pontos de audiência. O senhor acha que ajudou a mudar, ainda que seja um pouquinho, o que os brasileiros pensam sobre os índios?

Eu quis mostrar o índio do nascimento à morte – como nasce, como é educado, adolescência, organização social e política, arte, relação homem-mulher… Cada um vai enxergar de uma forma, mas eu espero dar, com isso, alguma contribuição. Em 1986 encontrei o Darcy Ribeiro [um dos mais importantes antropólogos que o país já teve] na escada de um avião e ele me disse: “Você está contribuindo fortemente para mudar a imagem do índio brasileiro”. Agora, quando fui gravar na aldeia kuikuro, me chamaram na frente da casa dos homens [espaço simbólico de muitas aldeias] e falaram, Jakalo e Afukaká, coisas que me emocionaram muito. Jakalo disse que, antes, quando ia ao Aeroporto Santos Dumont, as pessoas batiam na boca, fazendo “U! U! U! U!” [de forma jocosa] e que hoje isso mudou. Talvez a televisão possa dar a sua grande contribuição mostrando o que essas culturas têm de fundamental. Nós não vamos voltar a ser índios, não temos competência para isso, mas essas sociedades podem apontar rumos.

Líderes do Alto Xingu pedem ampliação de parque indígena ao presidente da Funai

A ampliação do Parque Indígena do Xingu foi uma das principais reivindicações de líderes indígenas ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, no último fim de semana. O parque, que tem quase 30 mil quilômetros quadrados, foi criado em 1961 com um território muito menor do que o inicialmente previsto, e nas quatro décadas seguintes teve áreas incorporadas.

O cacique Aritana, dos Yaualapity, explica o que foi levado pelos xinguanos ao presidente do órgão federal. “O sul do parque, aqui, tem uma área que já está em processo, faz tempo, mas não está homologada ainda”, disse. “E desse lado aqui [a divisa leste do parque] tem uma área que a gente chama de ziguezague, porque ela é toda tortinha, ninguém sabe direito onde termina o parque, se o fazendeiro já está dentro, nada disso. A gente quer que fique reta, para fiscalizar melhor.”

Outra preocupação expressa por Aritana é com a preservação da tradição cultural dos povos do Xingu. “Ele [Meira] está vendo pessoalmente o que a gente sempre faz, essa cultura. Ele tem que reconhecer e manter isso para sempre, isso é o que a gente quer.” No fim de semana os índios fizeram várias exibições festivas.

Segundo Márcio Meira, o pedido de redefinição territorial será avaliado. “Essa é uma atribuição e uma obrigação constitucional da Funai, estamos examinando”, disse. “Vamos fazer isso sempre que os índios colocarem essas demandas, com o cuidado, obviamente, de primar pelo bom senso e pelo resguardo dos direitos dos povos indígenas.”

Para Meira, é necessário que todos os setores da sociedade na região sejam conscientizados sobre a importância de preservar os cursos dágua que formam o Rio Xingu. Com relação às s hidrelétricas e outros grandes projetos previstos pelo governo para a Amazônia, como a usina de Belo Monte, no Baixo Xingu, ele diz que a Funai atuará com a preocupação de conciliar desenvolvimento e respeito ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas.

Foi a primeira reunião de Meira, que tomou posse em março, com os líderes do Alto Xingu.

Operação combate grilagem, extração de madeira e garimpo nas terras dos índios kayapó

A Polícia Federal (PF), Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) começaram uma operação para combater a grilagem de terras, a extração ilegal de madeira e o garimpo na Terra Indígena Kayapó, no sudeste do Pará. A Operação Kayapó, que teve início às 4 horas, fará a retirada de 50 pessoas, segundo estimativa da Funai.

O ex-administrador regional do órgão em Marabá, Eimar Araújo, um dos coordenadores da ação, explicou à Agência Brasil que a presença dos invasores foi identificada há cerca de um ano, após denúncia dos kayapó. E foi confirmada com o sobrevôo da área e o uso de imagens de satélite. “Constatamos a presença de 19 focos de desmatamento”, disse Araújo. Ele contou que a maioria dos locais estava em preparação para virar pastagem.

“Esperamos que a saída [dessas pessoas] seja pacífica”, comentou o chefe da equipe, o delegado da Polícia Federal Delfino de Castro Neto, que prevê uma empreitada de 12 dias. “A área é muito grande e isso dificulta a fiscalização pelos órgãos federais. Cria a necessidade de uma ação quase permanente”. São quase 3,3 milhões de hectares – cada hectare corresponde a um campo de futebol.

Castro Neto disse que o fato de a população local já estar ciente da operação pode evitar enfrentamento com os invasores. Segundo ele, estão envolvidos 24 homens da PF, o que caracterizaria uma operação de médio porte.

Também integram a comitiva dois representantes da aldeia kayapó Kikretum – um deles, o chefe de guerreiros Piydjô. Responsável por um dos papéis de liderança na organização política dos kayapó, ele resumiu como encara a presença dos estranhos: “Fazendeiro estraga o mato, madeireiro estraga o mato, e nós precisamos do mato grande para criar os bichos que a gente caça”.

Secretário nega falta de diálogo e diz que floresta só se conserva se for rentável "de pé"

Brasília – O secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, afirma que o governo vem adotando as medidas necessárias para combater o desmatamento na Amazônia e escuta os especialistas nas discussões ambientais, ao contrário do que o geógrafo Aziz Ab’Saber declarou. Em entrevista, à Agência Brasil, Capobianco reiterou a ênfase no Projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas para conter a devastação no norte do país. "Só conseguiremos preservar a floresta se, em termos de emprego e geração de renda, ela for mais interessante de pé do que derrubada".

Agência Brasil: Com relação aos novos dados de desmatamento na região amazônica, o professor Aziz Ab’Saber afirma que o Ministério do Meio Ambiente "está totalmente enfraquecido" e não consegue efetuar as medidas necessárias. O senhor concorda?

João Paulo Capobianco: Os dados se referem a um período em que o novo sistema de monitoramento (o Deter) ainda não estava operacional. Esse sistema, construído graças a um esforço muito grande do governo – não só do MMA –, acompanha em tempo real o desmatamento e começou a funcionar no início deste ano. Até então, você verificava um ano depois. Com base nesse sistema já realizamos, em 2005, um conjunto de operações de inteligência que resultou na apreensão de 75 mil metros cúbicos de madeira. Isso em quatro meses, sendo que em 2002 (último ano do governo Fernando Henrique Cardoso) inteiro haviam sido apreendidos 40 mil metros cúbicos. Nunca se fiscalizou tanto como agora.

ABr: Vocês já têm os dados referentes a desmatamento nos quatro primeiros meses de 2005? É possível fazer uma previsão de desmatamento para o ano?

Capobianco:Ainda estamos sistematizando esses dados. O que podemos dizer é que a capacidade de desmatar foi intensificada. Mato Grosso (estado que respondeu por 48,1% do desmatamento total na Amazônia de agosto de 2003 a agosto de 2004), por exemplo, iniciou o desmatamento em janeiro, época da chuva. Normalmente, isso acontecia a partir de abril.

ABr: O professor Aziz Ab’Saber também criticou o projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas, uma das principais apostas do ministério contra o desmatamento. Segundo ele, o projeto resultou de pressão de ONGs interessadas e deixa de promover um redirecionamento do uso dessas áreas – que, na opinião dele, deveriam priorizar a proteção da biodiversidade. Além disso, ele disse, poderia se complicar a retomada dessas áreas no futuro, pela presença de entidades e empresas estrangeiras.

Capobianco: É preciso dizer que o governo atual possui o recorde histórico de criação de reservas na Amazônia. Foram 8,3 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 60 % são áreas de proteção integral. E o uso sustentável, previsto nos outros 40 % das áreas, também promove a proteção à biodiversidade. É uma visão estreita essa (de que as duas coisas não são compatíveis). A iniciativa do projeto não tem nada a ver com pressão de ONGs. Elas não fazem manejo e não terão, portanto, nenhum benefício nesse sentido. Nosso entendimento é o de que o desmatamento não será combatido com controle. A Amazônia não será preservada só com polícia, mas também com medidas de macroeconomia. Nosso objetivo para as florestas públicas é mantê-las públicas e como florestas. Com relação a qualquer vínculo internacional, o que cabe esclarecer é que o manejo só será permitido a cooperativas nacionais e empresas regularmente constituídas no Brasil.

ABr: O professor também se queixa de que os especialistas não estariam sendo ouvidos nesse e em outros projetos.

Capobianco Foram ouvidos vários especialistas, em dezenas de ocasiões. A proposta passou por reuniões, seminários. Foi aprovada pela Comissão Nacional de Florestas – na qual governo, academia, empresários, estados, municípios, ONGs e a própria Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC, da qual Ab’Saber é presidente de honra) estão representados. Depois de encaminhada ao Congresso como projeto de lei, passou por audiências públicas. A ministra Marina Silva e sua equipe técnica receberam o professor Aziz em longa audiência.O que há é divergência de visão, de encaminhamento. Não falta de diálogo.