ISA – No último dia 26 de setembro, na aldeia Yawara, uma das 19 da Terra Indígena Waimiri Atroari, localizada ao norte do Amazonas e sul de Roraima, nasceu o milésimo Kinja – autodenominação desse povo – , um menino, filho de Anapidene e de Ketamy. A soma de mil indivíduos é revestida de grande valor simbólico, se contrastada com a situação desalentadora desse grupo indígena no início da década de 80, quando eram pouco mais do que 300 pessoas.
Particularmente, esse milésimo nascimento atesta o sucesso do Programa Waimiri Atroari, iniciado em 1987 com o objetivo de apoiar esse povo na recuperação de suas terras e de sua qualidade de vida. O idealizador do projeto – elaborado em conjunto com os Waimiri Atroari e profissionais de diversas áreas – foi Porfírio de Carvalho, indigenista que conhecera esse grupo de “altivos guerreiros” em 1969. Quando os reencontrou em 1986, “estavam doentes, tristes, perambulando pela estrada BR 174, pedindo carona a caminhoneiros, dependentes de alimentação e de doações. E morriam, em média, 20% ao ano. Podia-se dizer que estavam caminhando para o extermínio …”.
Estrada, Mineração e Barragem
Em sua história de contato com a sociedade não-indígena, os Waimiri Atroari ficaram conhecidos como um povo combativo e orgulhoso, que resistia à “pacificação” dos brancos e atacava vigorosamente os invasores de seu território. Mas este foi cortado ao meio pelo traçado da BR-174, rodovia federal construída para ligar Manaus/AM à Boa Vista/RR. Devido à “animosidade” dos índios, o Exército ficou incumbido da construção da estrada e da “segurança” dos funcionários e dos que por ali transitavam no decorrer das obras, no período 1969-1977. A violência dos enfrentamentos e a transmissão de doenças culminaram na quase extinção desse povo. Se antes da construção da BR-174 estimava-se que eram 1.500 pessoas, em 1987, censo realizado no grupo revelava que estavam reduzidos a 374.
Além dos impactos da estrada, no início da década de 1980, a integridade do território Waimiri Atroari foi afetada por interesses minerários. Porfírio Carvalho afirma que, com a conivência da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), a empresa mineradora Paranapanema – que já explorava a área clandestinamente – conseguiu articular um processo que resultou no Decreto nº. 86.630, assinado pelo presidente João Figueiredo em 23 de novembro de 1981, extinguindo a Reserva Indígena Waimiri Atroari, criada em 13/07/1971 pelo governo Médici, e declarando-a como “área temporariamente interditada para fins de atração e pacificação dos índios”. Este decreto também reduziu a extensão da terra interditada em 526.800 ha, justamente a área pretendida pela Paranapanema para exploração mineral. Assim, às margens do rio Pitinga, a empresa Taboca, subsidiária da Paranapanema, pôde dar continuidade à exploração da maior mina de cassiterita do mundo.
Em 1987, a Terra Indígena Waimiri Atroari foi finalmente declarada. Contudo, num contexto em que o então presidente da Funai, Romero Jucá, pretendia abrir as terras indígenas à mineração, o órgão indigenista negociou com a Paranapanema que a linha demarcatória excluísse as nascentes do igarapé Jacutinga e seus afluentes, formadores do rio Alalaú em sua margem esquerda, permitindo que continuassem a ser explorados pela mineração Taboca. A empresa então intensificou ainda mais suas atividades, desmatando nascentes e margens de igarapés. Houve ainda uma série de rompimentos nas barragens de contenção dos lagos formados pelo processo de lavagem mineral – sendo documentados pela imprensa desastres ambientais em 1987, 1991 e 1993 –, contaminando a bacia do rio Alalaú, responsável pela drenagem de 55% do território Waimiri Atroari.
Como se não bastasse a construção de uma rodovia federal no meio da terra indígena e a redução de cerca de um terço dela para a exploração mineral, outro grande projeto viria atingir as terras Waimiri Atroari. Tratava-se da construção da usina hidrelétrica de Balbina pela Eletronorte, cujo lago implicaria represar o rio Uatumã e na inundação de 30.000 ha da TI. Mas dessa vez o desfecho foi diferente e os índios conseguiram, como contrapartida, que a Eletronorte firmasse um convênio com a Funai comprometendo-se a efetivar um conjunto de medidas mitigadoras dos impactos causados pela barragem. Nascia o Programa Waimiri Atroari, projetado para 25 anos.
Virando o jogo: o Programa Waimiri Atroari
Logo no primeiro ano do convênio, em 1987, a Terra Indígena Waimiri Atroari foi declarada com uma superfície de 2.585.911 ha., demarcada em 1988 e homologada em 1989 pelo presidente José Sarney pelo Decreto nº. 94.606. A despeito de ampliar a área interditada em 1981 – então com 1.800.000 ha –, o decreto excluía parte dos formadores do rio Alalaú, como mencionado acima, e ainda deixava de fora a superfície de inundação da barragem da UHE de Balbina e a faixa de domínio da BR-174.
Administrado por uma figura jurídica criada a partir do convênio entre a Funai e a Eletronorte, o Programa Waimiri Atroari inclui ações nas áreas de saúde, educação, meio ambiente, apoio à produção, vigilância dos limites, documentação e memória. Quase 15 anos já se passaram e os resultados são alentadores. “A população cresce hoje em média 6,5% ao ano, a Terra Indígena Waimiri Atroari está demarcada, sem invasores e ecologicamente equilibrada, o sistema de saúde está funcionando, o sistema escolar já em parte sendo conduzido pelos Waimiri Atroari, as festas tradicionais voltaram, a alegria de ser índio resgatada, a independência alimentar retomada, o orgulho e a dignidade dos Waimiri Atroari restabelecida”, diz Porfírio Carvalho.
Além dos recursos advindos do Programa, a melhoria da qualidade de vida dos Waimiri Atroari possibilitou que a comunidade passasse a investir em sua auto-sustentabilidade, por meio da comercialização de artesanato e de produtos agro-florestais, além de uma “taxa de uso” de uma estrada construída no interior da TI em 1981, ligando as minas de cassiterita à BR-174. Depois de uma série de negociações e conflitos, que incluíram a interdição da estrada em 1996, marcando a volta dos “altivos guerreiros”, os índios lograram uma porcentagem de 0,5 sobre todo minério extraído pela empresa.
Outro exemplo de atuação desses guerreiros na defesa de seus direitos e interesses – sempre acompanhados do não menos combativo Porfírio Carvalho – foram as negociações para a pavimentação da BR-174, em 1995. Os índios, com apoio da equipe do PWA, exigiram uma série de contrapartidas que deram origem ao Plano de Proteção Ambiental e Vigilância da área, financiado pelos governos do Amazonas e Roraima e pelo Ministério dos Transportes e com duração de dez anos. A verba possibilitou a criação de uma guarda florestal controlada pelos próprios Waimiri Atroari, com apoio de veículos e rádio escuta, que faz a vigilância não apenas da estrada, mas dos rios e dos limites da TI.
Em 1998 a obra foi inaugurada, mas a circulação pela rodovia no trecho incidente na TI só é permitida das 6h às 18h, a circulação restrita no período noturno só é permitida em casos de urgência. Isso porque, alega Carvalho, os índios costumam caçar à noite, o trânsito de veículos afugenta os animais e aumenta o perigo de invasões.
Além da integridade do território, nas áreas de saúde e educação as conquistas não foram menores. O programa mantém postos de saúde em todas as aldeias, onde 10% dos agentes são indígenas, que trabalham voluntariamente, e conseguiu a erradicação completa de doenças imuno-previníveis, como a tuberculose, endêmica na região. Todas as aldeias também possuem escolas, em que 90% dos professores são indígenas (não remunerados) e cujo sistema procura seguir os valores e o ritmo da sociedade waimiri atroari, sem divisão de séries e com alfabetização na língua nativa, sendo o português aprendido como segunda língua.
Com o objetivo de alcançar uma independência absoluta da sociedade envolvente, os índios deixaram de consumir produtos industrializados, incluindo sal e açúcar. Essa postura já rendeu algumas críticas ao Programa Waimiri Atroari, acusado de impedir o contato dos índios com a sociedade brasileira. Mas Porfírio afirma que todas as decisões refletem o desejo da coletividade, sendo discutidas por um colegiado composto pelos líderes das famílias que compõem essa sociedade indígena.
O fato é que, diante da recuperação demográfica e da melhoria na qualidade de vida sintetizadas no nascimento desse bebê, Carvalho não esconde sua comoção, quase paterna: “Saí contando para todos: nasceu o milésimo Waimiri Atroari!… Parece que os vejo todos, todos os mil na minha frente… Eu estou feliz. E grato a todos que me ajudaram a realizar este sonho”.
ISA, Valéria Macedo