Marina Silva condena uso criminoso de terras públicas

Agência Brasil – A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, informou que a “premissa fundamental” da política integrada do Governo Federal com relação ao desmatamento na Amazônia, cujos trabalhos interministeriais encontram-se “praticamente na fase de conclusão”, será a promoção de um “ordenamento territorial para evitar o uso criminoso de terras públicas que muitas vezes são griladas, em prejuízo da União, dos Estados e, principalmente, da sociedade brasileira”.

Em entrevista na estréia do programa “Revista Amazônia”, que vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 8h, nas Ondas Curtas da Rádio Nacional da Amazônia, hoje comemorando 26 anos, a ministra disse ainda considerar “perfeitamente adequada” a postura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criar um espaço de Governo nos grupos interministeriais envolvidos na questão do Meio Ambiente.

Ela assegurou que todos estão trabalhando integrados “para evitar que as decisões não sejam geradoras, de uma forma exacerbada, como vinha sendo feito, de ações de alto impacto que promovem a devastação ambiental e problemas sociais gravíssimos”.

O trabalho integrado entre os diversos Ministérios, segundo a ministra, “não é algo que seja de fácil solução e por isso representa um desafio que foi colocado na mesa”. Ela acrescentou que todos estão trabalhando para que se possa ter, cada vez mais, “outras formas de ocupação e utilização dos recursos naturais, que sejam sustentáveis e valorizem, ao mesmo tempo, a geração de renda e a inclusão social”. E adiantou que os resultados serão usados nas políticas públicas que o Governo brasileiro está traçando com o objetivo de combater o desmatamento e promover o desenvolvimento sustentável.

Em breve, informou a ministra, serão criados mais 18 milhões de hectares de APAs – Áreas de Proteção Ambiental, dos quais 9 milhões serão destinados para o uso sustentável, inclusive reservas extrativistas, e o restante será de proteção integral. Os recursos, mais de US$ 80 milhões, virão de doadores internacionais e serão administrados pela Secretaria da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente. “Tudo será feito numa perspectiva socioambiental”, garantiu.

Conhecimento Popular

Agência Brasil – O conhecimento tradicional sobre as plantas poderá virar parte da política federal de saúde. A idéia é ajudar o país a diminuir um déficit de R$ 3,5 bilhões na balança comercial gerado com a importação de medicamentos industrializados.

Representantes de organizações do terceiro setor, dos governos municipais, estaduais e federal se reuniram na semana passada, em Brasília, para definir recomendações que serão enviadas ao Conselho Nacional de Saúde. O objetivo é incorporar o uso de plantas medicinais e de fitoterápicos à Política Nacional de Saúde.

A inserção de tratamentos e terapias com as plantas medicinais e os fitoterápicos no Sistema Único de Saúde (SUS) pode gerar medicamentos mais baratos, seguros e eficazes, segundo o diretor de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, Norberto Rech. Na sua opinião, outros ganhos seriam o fomento à transmissão do conhecimento tradicional incorporado ao uso das plantas medicinais e a utilização da biodiversidade.

De acordo com Rech, o encontro foi um passo histórico. Além de reunir cerca de 300 pessoas da área, gerou consenso em pontos importantes e a ajudou a dimiuir a separação entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico. “É possível aproximar os dois lados”, afirmou.

Atualmente, das 500 indústrias farmacêuticas nacionais, 134 produzem fitoterápicos. O setor movimento no Brasil US$ 400 milhões, num mercado de US$ 7 bilhões. Para Rech, esta é uma área estratégica que poderá ajudar no saldo da balança comercial brasileira. Hoje, o setor farmacêutico registra déficit de R$ 3,5 bilhões. Outra vantagem seria melhorar a utilização da biodiversidade brasileira. De acordo com Rech, atualmente 84% das plantas que usamos para consumo direto são de origem européia.

O documento final aprovado no encontro faz uma série de sugestões. Uma delas é a inclusão da Política de Plantas Medicinais e Fitoterápicos no âmbito da assistência farmacêutica, inserida na Política Nacional de Saúde. Sugere ainda fomento a estudos de avaliação econômica para identificar o custo-benefício e o custo-utilidade dos produtos. Os pesquisadores querem também a criação de Fundos Setoriais de Pesquisa de matéria-prima e produção de medicamentos a partir de plantas medicinais. E, para garantir a qualidade dos produtos, seria fundamental a implementação de centrais de matéria-prima. Os representantes dos diversos setores também pedem a realização de estudos específicos para avaliação dos riscos de utilização de medicamentos fitoterápicos obtidos por meio de processos biotecnológicos ou organismos geneticamente modificados.

Durante o Seminário, os participantes aprovaram moções para a definição de procedimentos de inclusão de raizeiros e parteiras no processo de atenção à saúde nas comunidades. Também foi aprovada uma moção de repúdio às ações contra a biodiversidade brasileira, como a biopirataria, o desmatamento irresponsável e as queimadas.

O documento aprovado durante o evento será discutido na Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica, marcada para 15 de setembro.

Com informações de Cristina Guimarães

Alemão é flagrado roubando sementes no Pico da Neblina

Ibama – Equipes do Ibama e da Polícia Federal prenderam em flagrante o alemão Joaquim Thiem, na quarta-feira (27/08), quando saía do Parque Nacional (Parna) do Pico da Neblina (AM), portando 21 sementes nativas da área. Três das sementes apreendidas em poder do alemão, foram identificadas pelos índios Ianomamis da região, como sendo de alto grau tóxico, o que permite um eventual uso para o desenvolvimento de algum princípio ativo medicinal.

O diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Flávio Montiel, presente no local, informou que Joaquim Thiem havia solicitado autorização do Instituto para fazer fotografias para um catálogo de ecoturismo, sobre o Parque Nacional do Pico da Neblina, a ser publicado na Alemanha. Ao ser autorizada a entrada ele comprometeu-se a repassar ao Ibama cópia das fotografias, do material estudado e, principalmente, a não retirar produtos da fauna ou flora do Parna. “Ele foi inclusive orientado pelo Ibama de que não poderia retirar material algum e assinou termo de compromisso neste sentido”, afirmou o diretor.

Ao conceder a autorização a Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama (Dipro) determinou que o nome do alemão fosse investigado junto a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e em entidades da região. “Thiem entrou no Parna e ‘sumiu’ por nove dias”, comenta Montiel. Neste período, a averiguação sobre o alemão apontou que o nome dele constava de algumas listas relativas a processos de certificação de produtos laboratoriais e químicos.

As equipes do Ibama e da Polícia Federal passaram a procurar por Thiem e no final da tarde de quarta-feira, quando ele saía do Parque teve seu material revistado, sendo encontradas as sementes nativas. Ele foi preso e encaminhado à Polícia Civil de São Gabriel da Cachoeira, onde foi autuado em flagrante e colocado à disposição da Justiça Federal.

Joaquim Thiem foi autuado pela prática de crime em área protegida e área indígena, com dano direto e indireto ao Parque Nacional, o que é uma infração prevista na Lei de Crimes Ambientais. Segundo Montiel, constam ainda agravantes por “retirar material biológico no interior de Unidade de Conservação; abuso de confiança do Ibama (ele havia assinado termo comprometendo-se a não retirar material); e, ainda, pela possibilidade de auferir lucro (o material poderia ser vendido a laboratórios)”.

Devastação do entorno do Parque do Xingu preocupa indígenas

Funai – A derrubada das matas que resistiram ao avanço agropecuário no Mato Grosso ameaça a sobrevivência dos povos indígenas da Terra Indígena Parque do Xingu, bem como o Cerrado, um dos biomas mais ricos e a floresta de transição para a Amazônia, característica da região. A situação preocupa os índios que temem não só a destruição das matas, mas também a contaminação do solo e, conseqüentemente, da água dos rios, lagos e lagoas que banham as aldeias. O fato das nascentes estarem situadas fora da terra indígena e sem controle de qualquer política de proteção agrava a situação. Em recente sobrevôo no Parque do Xingu, técnicos da Agência Nacional de Águas (ANA) mostraram-se extremamente preocupados com o processo de devastação das matas e comprometimento das nascentes e rios do Parque do Xingu e documentaram tudo que puderam observar.

O chefe do Posto Indígena Batovi, situado ao sul da Terra Indígena Parque do Xingu, Kanaiú Waurá e o vereador por Gaúcha do Norte (MT), Amanuá Seus, da aldeia Kamaiurá estão em Brasília há uma semana para buscar apoio do governo federal e de políticos para conter o processo de destruição do local. Para o vereador Amanuá, o perigo é imenso e “se não cuidar agora, o Xingu não vai resistir ao avanço de fazendeiros e madeireiros”, avisou. O chefe de Posto Kanaiú, relatou, que em recente fiscalização aos limites do Parque, uma grupo de indígenas constatou a invasão de madeireiros na Terra Indígena Batovi. “Madeireiros ou fazendeiros abriram uma estrada de 6 metros de largura com trator de esteira e entraram dois quilômetros para dentro da terra indígena. Encontramos também sinais de extração de madeira a menos de 200 metros da Terra indígena”, contou Kanaiú, explicando que os madeireiros extraem a itaúba, de valor comercial e chamam de mossagueira para dizer que não tem valor comercial.

O chefe do Posto disse estar indignado porque além da região ter imensa importância do ponto de vista cultural, pois ali está situada a caverna Kamukuaká, local sagrado para os povos do Alto Xingu, é a sobrevivência dos índios que está ameaçada. “Quando acontece a festa do Kuarup, as aldeias lotam. Este ano, mais de 20 aviões pousaram na aldeia Yawalapiti para o Kuarup que homenageou o Orlando Villas Boas. Quando necessitamos de recursos para a fiscalização, a Funai não dispõe ou então ficamos esperando dois meses e, ao iniciarmos a operação, já encontramos tudo devastado. Só uma fiscalização constante poderia garantir o monitoramento da situação”, afirma Kanaiú.

Justiça ordena desarmamento de fazendeiros no Mato Grosso

Funai – A 1ª Vara da Justiça Federal ordenou o desarmamento dos fazendeiros e seus empregados no município de Primavera do Leste, no Mato Grosso. Os ruralistas ameaçam os índios Xavante e, há duas semanas, cercaram os técnicos do Grupo de Trabalho da Funai (GT), quando eles chegavam ao município, para iniciar os trabalho de revisão dos limites das Terras Indígenas Sangradouro e Volta Grande. De acordo com a determinação do juiz Marcos Alves Tavares, a Polícia Federal deverá apreender armas e munições nas fazendas Suspiro, Rica I e Rica II e demais áreas que provocam conflito com os Xavante.

Pela decisão, a Funai deverá retomar em dez dias o trabalho do GT, sob pena de multa diária de R$ 10 mil reais. A multa será aplicada também ao sindicato e Associação que representa os ruralistas, caso eles tentem impedir o trabalho do órgão indigenista. A Polícia Federal fará a segurança dos técnicos do GT e a Justiça responsabilizará a União pelos danos que ocorrerem, caso não haja acompanhamento adequado. A determinação do juiz atendeu o pedido do Ministério Público Federal.

Racismo denunciado

FUNAI – O Procurador da República em Roraima, Dr. Carlos Fernando Mazzoco, denunciou à Justiça Paulo César Cavalcanti Lima, morador da capital do estado, Boa Vista, pela prática de racismo contra o povo Yanomami, com base no artigo da Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça. O réu poderá ser condenado à pena de reclusão de dois a cinco anos, além de pagamento de multa.

Em novembro do ano passado, Paulo César publicou um anúncio na seção “Animais” de Classificados do jornal local Folha de Boa Vista., no qual colocava à venda “filhotes de Yanomami, com um ano e seis meses” no valor de R$ 1 mil. No inquérito, instaurado pela Polícia Federal, o acusado afirmou que o anúncio era apenas uma “pegadinha” que teria feito com um amigo.

O anúncio causou profunda indignação nos professores Yanomami, então reunidos para um curso de formação para o Magistério Indígena em Boa Vista. No dia seguinte ao da publicação, um grupo de 22 deles divulgou uma carta onde se diziam revoltados com o tratamento indigno dispensado aos índios na cidade. Eles cobraram também o apoio da Procuradoria Geral da República para que o povo Yanomami seja tratado com respeito e que os culpados sejam processados. Finalmente, os professores Yanomami exigiram que fossem tomadas providências em relação ao jornal Folha de Boa Vista que permitiu a publicação do anúncio racista. Esta última reivindicação ainda não foi atendida.

Venezuelanos invadem terras brasileiras

Boletim Yanomami/CCPY – Recentemente grupos de militares venezuelanos vêm invadindo o território brasileiro, cruzando a fronteira internacional que constitui o limite oeste da Terra Indígena Yanomami. O mais recente episódio desta invasão ocorreu entre os dias 7 e 8 de junho passado. Um militar venezuelano e um guia Yanomami da Venezuela fizeram uma rápida incursão em território brasileiro até uma aldeia chamada Poimopë, situada no alto rio Mucajaí. No dia seguinte, um grupo de militares venezuelanos armados chegou ao mesmo local e acampou numa casa coletiva dos Yanomami. Nesta aldeia – situada na área de atuação da Urihi Saúde Yanomami, ONG parceira da CCPY financiada pela FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) – o grupo impediu a auxiliar de enfermagem de utilizar o rádio a fim de alertar o Pelotão de Fronteira do Exército brasileiro sediado na região, em Surucucus.

A auxiliar foi interrogada sobre o trabalho que realizava no local e a quem estava subordinada. Os militares venezuelanos ignoraram a informação de que estavam em território brasileiro. Pernoitaram na aldeia. Pela manhã, depois do grupo ter deixado o local, a auxiliar de enfermagem constatou que uma mulher yanomami, com várias escoriações, teria sido vítima de abusos sexuais dos militares venezuelanos. Verificou ainda que 40 lâminas coletadas para diagnóstico de malária tinham sido destruídas.

Na mesma ocasião, outra tropa de militares venezuelanos teria se encontrada com cerca de 25 garimpeiros no lugar denominado Chico Veloso – pista clandestina de garimpo – localizado no alto rio Catrimani, em território brasileiro. Os garimpeiros teriam sido torturados e saqueados pelos soldados venezuelanos. Em depoimento à Polícia Federal, os garimpeiros teriam se recusado a dar informações sobre o proprietário da aeronave utilizada para o ingresso ilegal deles na área indígena.

Estas recentes incursões da Guarda Venezuelana no país levantaram a suspeita de que quatro índios Yanomami desaparecidos em 2001 na região de Xitei poderiam ter sido seqüestrados desta maneira . O seqüestro dos índios teria ocorrido num lugar chamado Simoki, no início de outubro daquele ano. Soldados venezuelanos teriam ingressado em território nacional, espancado os índios e seqüestrado quatro deles para destino ignorado. Os índios desde então não retornaram à aldeia.

Diante destes fatos e relatos o Exército brasileiro montou em regime de urgência uma operação para apurar as atividades dos soldados venezuelanos em território nacional, assim como para localizar acampamentos ilegais de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. O grupo militar contou para estas operações com o auxílio de índios Yanomami, conhecedores da região, e de funcionários da CCPY.

A expedição percorreu entre 6 e 8 de agosto, a região de Morohusiu (alto Mucajaí), ocupada por três comunidades yanomami, muito próximas à fronteira Brasil-Venezuela. A Guarda Nacional Venezuelana possui uma base ao longo da fronteira, próxima a uma das aldeias situadas em território brasileiro, com a população da qual mantém uma relação aparentemente problemática. A expedição brasileira constatou que os Yanomami manifestam muita insegurança diante da presença militar, refletindo os problemas que vêm enfrentando com as visitas recorrentes dos soldados venezuelanos. As mulheres, sobretudo, escondem-se e os homens recebem os visitantes na entrada de suas casas com desconfiança, não permitindo sua entrada.

O temor dos Yanomami tornou-se ainda mais claro quando questionaram os integrantes da expedição brasileira sobre o seu tempo de permanência na aldeia. Mostraram-se preocupados sobre o que poderia ocorrer quando a expedição partisse. Explicaram que os soldados venezuelanos deviam ter escutado o vôo do helicóptero utilizado pela expedição e, com certeza, iriam rapidamente até a aldeia indígena para apurar o que havia ocorrido.

A questão destas incursões de soldados venezuelanos no Brasil através da Terra Indígena Yanomami está sendo também tratada no alto escalão do Governo Federal. Assim, durante o período de 26 a 28 de agosto está acontecendo no Ministério das Relações Exteriores, com a presença de uma delegação de 11 pessoas do governo venezuelano, a VIIª Reunião do Grupo de trabalho sobre mineração ilegal Brasil-Venezuela. Na pauta do encontro está prevista uma discussão específica sobre o ingresso indevido de militares venezuelanos em território nacional.

Tesouro arqueológico

Funai – Em recente reforma da Praça D. Pedro II, no Centro Histórico de Manaus, técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (UFA) encontraram 259 urnas funerárias que indicaram a existência de um cemitério de povos indígenas da família lingüística Aruak.

A descoberta começou quando foram encontradas cerâmicas, enfeites e duas urnas funerárias. A primeira exumação revelou, por exemplo, que uma das urnas tem sepultamento duplo. Especialistas afirmam, ainda, que há indícios de que esses índios resistiram e lutaram contra a colonização. Certos de estarem diante de uma grande descoberta arqueológica, o professor da USP, Eduardo Góes Neves, e técnicos do Iphan prosseguiram com as escavações.

Agora, a idéia é promover palestras para organizações indígenas do estado, mostrando a importância da descoberta e a história dos povos que habitaram a região antes dos colonizadores. Um pagé, da etnia Apurinã, foi chamado para realizar cerimônia que permita a continuidade do trabalho arqueológico. A preocupação dos arqueólogos agora é com a proteção e segurança do sítio contra os saqueadores que vivem do tráfico ilegal de peças do patrimônio. A cerimônia de permissão deverá ocorrer no dia 18 de setembro próximo.

O órgão responsável pela coordenação das escavações é o Museu Amazônico, um órgão da Universidade Federal da Amazônia. Com exceção de pequenos fragmentos, nenhuma urna foi retirada do local ainda. A segurança do sítio de escavações contra a ação de saqueadores está sendo realizada por vigilância permanente.

Kuarup – Parte III

foto5.jpgO ritual do Kuarup (nome de uma madeira) revive a narrativa religiosa dos índios do Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. Por seu papel na criação do mundo, dos homens e das coisas, Mawutzinin tem sido comparado a "Deus" ou, de outra forma, ao "demiurgo" (na tradição platônica, também divino). Mawutzinin é um ser eterno, antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore. Mawutzinin é também, o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de troncos Kuarup para casamento com as onças. Dadas tais características, o conceito de “Deus” parece-nos que melhor ajuda à compreensão, em uma tradução cultural livre, uma metáfora que busque, sobretudo, a inteligibilidade do leitor ocidental.

Há vários registros da narrativa dramatizada através do ritual do Kuarup. Existe um volume inteiro sobre o tema em que o ritual e o complexo de idéias associadas são descritas2 .

Os primeiros homens, em uma das versões colhida por Agostinho teriam sido criados a partir da madeira Kuarup. Segundo a narrativa colhida por Villas Bôas, o primeiro Kuarup teria sido realizado com o objetivo de trazer os mortos de volta à vida. Abaixo transcrevemos a versão dos Villas Bôas3 , por ser em português mais claro que o "dialeto do contato" transcrito por Agostinho e, também, por representar uma versão menos detalhada mas, possivelmente, mais "universalmente" xinguana da narrativa:

"Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.

Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.

Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.

Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.

Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. "Ninguém pode ver" – dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente.

Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.

Os cantadores – os cururus e as cutias – quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda.

Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera…espera…espera" – dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.

Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.

Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.

Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: – O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:

– Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora vai ser só festa.

Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. Tem que ficar assim mesmo, disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no Morená."

O Kuarup só é realizado para pessoas ilustres, seja por um critério de "sangue", seja por um critério de liderança política ou econômica. A sociedade xinguana apresenta duas classes tradicionais, o "morekwat" (na lingua Aweti) ou "morerekwat", (em Kamaiurá) os descendentes uma classe hereditária de chefes, originários dos primitivos índios de cada tribo. Os "morekwat" têm o direito (teórico) à propriedade do pátio da aldeia e uma posição de destaque em determinados rituais. A eles cabem os discursos e representar a aldeia no momento do recebimento ou oferta de presentes em rituais, especialmente, nos de caráter intertribal. Possuem o direito ao uso de uma pintura característica no braço.

Além da chefia tradicional há, ainda, a liderança emergente do contato interétnico, índios que melhor falam o português e desempenham a função de intermediários culturais com a sociedade caraíba. Em um trabalho anterior4 , denominei-os "capitães", termo que embora seja usado pelos índios como tradução de "morekwat" enfatiza a relação com a sociedade nacional brasileira.

Opostos aos "morekwat" (lideranças hereditárias tradicionais) e "capitães" (lideranças novas resultantes do contato interétnico) estão os "camara", transformação do termo português "camarada".

Normalmente, os "morekwat" e "capitães", por sua situação estratégica nos diversos rituais, possuem a indispensável capacidade de mobilização econômica, que lhe permite acionar uma forte rede de parentes e outras pessoas, para a produção de alimentos e, assim, "pagar" rituais maiores, como é o caso do Kuarup, o maior de todos. Há um intricado sistema de prestações e contraprestações, que se inicia com a iniciativa dos familiares da pessoa morta e vai se desdobrando até atingir todas tribos do Xingú.

Tradicionalmente, o Kuarup era realizado, apenas, para os "morekwat" (hoje, também, para "capitães" e outras pessoas importantes), pois eram esses chefes tradicionais associados aos p

rimeiros índios, que viveram a narrativa do Kuarup. A realização de um Kuarup, em homenagem a determinada pessoa ilustre, representa, portanto, o reconhecimento de que esta pessoa estaria associada aos primeiros índios que conviveram com Mawutzinim. A realização de um Kuarup significa, assim, uma grande honraria, o reconhecimento de que o homenageado passa a ser situado no mesmo nível dos que conviveram com Mawutzinim, isto é, são incorporados ao povo descrito na narrativa religiosa e passam a integrá-la.

A idéia de convívio com a divindade apresenta um claro paralelo com a situação dos santos católicos que, também, convivem em proximidade com a divindade. Outro paralelo é a questão da transgressão na narrativa do Kuarup, na medida em que o processo de ressurreição é interrompido, pelo fato de um dos índios ter mantido relações sexuais enquanto acontecia. É desnecessário elaborar a idéia do sexo como transgressão e seus efeitos no Cristianismo, como aparece na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Durante a quaresma, a "abstinência" não se fazia, tradicionalmente, apenas com o jejum de alimentos.

Por outro lado, a proibição do sexo durante o Kuarup pode estar associada à criação da vida por um método não "biológico". Para que haja a plena criação da vida pela divindade não pode haver a criação da vida pelos homens, através do método que lhes é próprio, o sexo. Um método inviabiliza o outro. Quando Mawutzinin diz que "agora é só festa" está dizendo que resta o método humano de criação de vida.

O kwarup que assistimos foi oferecido pelos índios Yawalapiti, em associação com as demais tribos de língua Aruak, os Mehinaku e Waurá. Esses índios, chegaram antes dos demais e foram abrigados nas casas dos Yawalapiti. Os homens vieram dançando, acompanhados por algumas poucas mulheres, principalmente meninas, fazendo, na dança, uma fila paralela à dos homens. As demais mulheres chegaram discretamente.

Depois de muita dança, alguns índios foram para o mato cortar um tronco do arvore kwarup. Foi construída uma cobertura de palha, um "rancho", em frente à "Casa dos Homens", sob o qual foi fincado o tronco no chão. O tronco foi descascado e aplainado para receber a pintura.

foto2.jpgO tronco do Kuarup recém colocado e decorado. No chão os arcos, cocares e maracás dos dois cantadores, que tinham, por um breve momento, interrompido sua atividade. Foto: Sandra Zarur

Dois cantadores, que lá se encontravam, previamente, deram continuidade ao seu trabalho, acompanhados por seus maracás. A tradução que me fizeram foi a seguinte da letra da música:

"Auíre ("morekwat" em Ywalapiti, "chefe"), você está sendo pintado,
Sua pintura está ficando muito bonita".

foto3.jpgEste e outros refrãos parecidos são repetidos, e o que é importante é que se dirigem ao tronco como a uma pessoa humana. A pintura (de sapo) é, não apenas, humana, como é aquela só de uso dos chefes importantes. O tronco é decorado com os mais belos ornamentos masculinos, como cinto de algodão colorido (dois são colocados), colar de caramujo, e cocar de penas. Tudo em tamanho maior do que seria usado por humanos vivos, pois sua dimensão é adequada à do tronco.

Os cantadores apoiados no arco e com o maracá na mão direita. Foto: George Zarur.

No primeiro dia de efetiva realização do ritual (os demais dias foram preliminares) começaram a chegar as demais tribos, que foram se instalando ao redor da aldeia iawalapiti. No final da tarde e começo da noite foi feita uma fogueira em frente ao tronco do kwarup. Os homens de cada uma dessas aldeias visitantes vieram dançando e cantando e um deles se aproximava para recolher o fogo com que se aqueceriam suas fogueiras na fria noite xinguana.

foto4.jpgUm dos índios veio correndo e tirou um dos cintos de algodão do tronco do kwarup. Este é uma ação que só os grandes campeões da luta huka-huka têm o direito de realizar. É como um desafio ao grande chefe que está em processo de revivescência no tronco.

Dança do Kuarup. Foto: George Zarur

A visita de outras tribos é, sempre, um processo considerado muito perigoso, especialmente devido à possibilidade de feitiçaria, que pode ser realizada com um resto humano qualquer, como um pouco de cabelo. Há muita tensão. A entrega do fogo às tribos visitantes e as danças associadas não interrompem o cantochão do cantadores.

foto5.jpgDurante a noite, há um momento que corresponde ao da ressurreição do homenageado, que estaria, fugazmente, presente no tronco da mesma maneira que na narrativa religiosa acima transcrita. Segundo me informou um dos morekwat yawalapiti, no Kuarup que homenageou Cláudio Villas Bôas, em um dado momento, as penas do cocar teriam mexido. No Kuarup de seu pai (Kanato), os morekwat yawalapiti, os irmãos Aretana e Piracumã, relataram-nos terem ouvido um farfalhar, um vento, na cobertura de palha que cobre o Kuarup e em seguida ter visto o pai de pé, em frente ao tronco. Piracumã informou ter desmaiado com a visão.

O aprendizado do ritual pelas crianças. Foto: George Zarur

Este momento é o da virtual ressurreição do morto. Corresponde ao instante em que os troncos da narrativa religiosa começam tomar vida. Foi quando Orlando retornou e esteve perto de nós. Foi o momento em que a família de Orlando se aninhou junto ao tronco e três amigos de Orlando, um dos quais o autor deste artigo, foram chamados para sentar-se próximo à família e ao tronco.

O momento seguinte foi das carpideiras, cinco mulheres de idade, enroladas em cobertores que choravam , um choro tristíssimo, repetido, com voz muito baixa. Não é difícil comparar tal costume com o das carpideiras mediterrâneas. A diferença é a notável delicadeza do choro baixo das xinguanas, embora no Nordeste brasileiro, por exemplo, também haja "incelenças" muito belas e, também, delicadas.

Parecia haver uma alternância e, por vezes, uma disputa, entre as vozes masculinas dos cantadores e as femininas das carpideiras. Como se os homens estivessem estimulando o morto a reviver e as mulheres chorando, cantando tal impossibilidade.

Pela noite inteira ouvem-se as vozes ritmadas dos cantadores e, até um dado instante, bem baixinho, o choro sentido das carpideiras.

A manhã seguinte, com os primeiros raios de sol, são ouvidos os gritos, por meio dos quais as tribos visitantes, que dormiram ao redor da aldeia, anunciam sua chegada. Acaba o choro e a atividade dos cantadores. Nota-se perfeitamente, que se inicia outra etapa do ritual. Chegam os índios e, rapidamente, começam as lutas de huka-huka, primeiro, uma a uma, entre os campeões das diferentes tribos e, depois, lutas simultâneas, principalmente, entre indivíduos mais jovens que ainda não se afirmaram como bons lutadores. Houve um momento em que havia perto de 30 lutadores, simultaneamente, em atividade.

Foto 6: Huka-huka: notar a pintura de peixe do lutador da esquerda e de onça, do lutador da direita. A narrativa completa da origem dos homens faz menção à luta dos peixes contra as onças. Foto: George Zarur

A mãe de um dos lutadores, uma mulher kamaiurá, entrou no círculo dos lutadores e
fez um discurso político, em defesa de Takumã, o capitão Kamaiurá. Gritou para que todos ouvissem que "Takumã não era feiticeiro".

O morekwat yawalapiti ajoelha-se frente ao morekwatde cada das tribos visitantes recém-chegadas e lhes oferece, em hospitalidade, peixe e beiju, que o chefe visitante, vai, posteriormente distribuir à sua tribo. Em se tratando de "morekwats", uo seja, chefes por "nobreza de sangue", alguns dos que recebem a oferenda são muito jovens. Ficam sentados nos bancos em que são esculpidas cabeças de gavião, de seu uso exclusivo, e assumem uma postura corporal de superioridade, uma "pose aristocrática". Posteriormente às lutas há um moitará, ritual de trocas, em que cada tribo oferece os produtos de sua especialidade (arquetipicamente, os Aruak, a cerâmica; os tupis, o arco preto; e os karib, os colares de caramujo).

O ritual é encerrado com o lançamento do tronco do Kuarup na água. Houve, porém, no Kuarup do Orlando, uma inovação: entre o Moitará e o lançamento dos toros na água, houve a reunião de boa parte dos presentes, para a apresentação de um vídeo. Sentados frente à tela nas poucas cadeiras disponíveis, o Embaixador do Canadá e a família Villas Boas. O vídeo falava da possível poluição das nascentes do Xingu e, após os chefes yawalapiti, falou um visitante Xavante, filho do chefe e ex-parlamentar Mário Juruna e o representante de uma ONG, ao que parece apoiada pela Embaixada canadense, interessada em avaliar a possível poluição das nascentes do Xingu.

Embora o evento tenha representado uma quebra da seqüência do ritual tradicional, não aconteceu uma ruptura com sua lógica, como apontaram alguns puristas. A inclusão de um espaço para os caraíbas em um ritual de articulação política entre sociedades distintas, apenas reforçou o próprio ritual como instrumento de diálogo e articulação interétnica.

2 Kwarup, Mito e Ritual no Alto Xingu, de autoria de Pedro Agostinho da Silva (Edusp, )
3 Xingu: os índios, seus mitos, de Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas – Ed. Kuarup)
4 George Zarur, Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingú. Brasília, Funai, 1975.

Kuarup – Parte II

Claude Levi-Strauss enfatizou aspetos comuns na estrutura formal de mitos de diferentes culturas, enquanto outros autores, a partir de uma tradição que passa por Mircea Eliade e Frazer exploraram, fenomenologicamente, os conteúdos ideológicos e sentimentos universais à experiência religiosa.

Uma de suas conclusões é bastante animadora quanto ao futuro dos povos indígenas da região: mesmo com as interferências sofridas por anos e anos de contato com não-índios, os povos do Xingu “estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.”

O objetivo deste trabalho é o de procurar universais na experiência humana pela comparação de temas centrais da narrativa religiosa dos índios do Xingu e da narrativa religiosa cristã. Enquanto autores como Durkhein, Levi-Strauss e Mircea Eliade sempre buscaram a diferença entre as religiões européias modernas e as dos assim chamados "povos primitivos", Frazer, em que pese o viés etnocêntrico da "Belle Époque", que caracteriza sua obra, procurou as analogias e metáforas comuns à experiência religiosa de muitos diferentes povos, inclusive, mostrando a origem pré-cristã de diferentes rituais e crenças cristãs. Ao contrário de antropólogos como, por exemplo, Levi-Strauss e Evans-Pritchard, que enfatizaram a irredutibilidade do pensamento e das religiões "selvagens" frente aos das culturas ocidentais contemporâneas, Frazer estabeleceu uma continuidade entre todas as culturas religiosas do mundo.

Vamos evitar, neste artigo, a expressão “mito”, por ser sinônimo de "lenda", algo que seria característico dos povos supostamente menos desenvolvidos, do ponto de vista religioso. A idéia de "mito" como algo inverídico ou imperfeito pode ser facilmente perceptível a partir dos significados que são atribuídos ao termo por um dicionário popular brasileiro ("Novo Aurélio"), embora os antropólogos tenham procurado depurar o termo de seus aspectos negativos. Assim, ou todas as narrativas históricas, religiosas e científicas de toda e qualquer cultura, inclusive as nossas, são "mitos", isto é, ou "tudo é mito", ou todos os assim chamados "mitos" seriam, também, narrativas religiosas, históricas ou científicas. Uma breve lembrança sobre estudos recentes sobre a "invenção das tradições", a "construção da história" ou as revisões das idéias científicas bastam para sustentar tal dimensão relativista.

Na visão etnocêntrica dominante, as narrativas religiosas ocidentais não são "mitos", mas a única verdade. Embora o nosso evangelho cristão possa fazer sentido para nós, não o faz, evidentemente, para um maometano e muito menos para um xinguano. A Igreja Católica tem, por avanços e recuos, caminhado, de forma tolerante, na direção do reconhecimento de tal situação através do Ecumenismo, que considera, atualmente, um dos seus objetivos mais importantes. A "descoberta de Deus em outras culturas" define o sentido deste movimento, em que pese o potencial de intervenção colonial e até de agressão a culturas mais frágeis, ainda presentes no conceito de “inculturação" (usado em textos religiosos balizando a ação missionária).

A transcrição das narrativas religiosas, no português quase incompreensível dos índios, em contato recente com a sociedade brasileira, pode ser importante para estudos lingüisticos sobre os "dialetos do contato". Em antropologia social, porém, reforça o estereótipo do "mito primitivo" como oposto à narrativa religiosa característica das religiões ditas monoteistas e, principalmente, da religião cristã. De fato, o "mal português" indígena, freqüentemente infantilizado pela própria relação colonial estabelecida no contato interétnico, é plenamente compatível com a idéia de "mito".

A Antropologia em que pese o exorcismo que vem realizando desde Boas, ainda não conseguiu, de todo, livrar-se do fantasma de Levy-Bruhl1. Substituir o conceito de "mito", com suas ressonâncias semânticas negativas, pelo de "narrativa religiosa", pode representar um passo à frente.

1 Levy-Bruhl acreditava na infantilidade e, portanto, na inferioridade da mentalidade primitiva. Franz Boas teve um importante papel na formulação do relativismo em antropologia.