O projeto das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, pode trazer reflexos que vão além do alagamento provocado pela elevação no nível do Rio Madeira e dos possíveis obstáculos para a reprodução dos peixes da região: ao atrair contingente populacional e estimular o desenvolvimento da agricultura no estado, as usinas podem trazer um impacto semelhante ao causado pela expansão da soja sobre o Mato Grosso. O alerta é da organização não-governamental (ONG) Conservação Internacional.
No início de maio, a entidade divulgou um estudo no qual aponta os impactos dos principais projetos de infra-estrutura no Brasil e no continente sobre as unidades de conservação e os territórios indígenas. No caso das usinas do Rio Madeira a influência dos empreendimentos não se restringiria a Rondônia e também abrangeria o interior da Bolívia, conclui a ONG. “Em relação a esse projeto, a maior preocupação não é com o que se diz, mas com o que não é dito”, adverte Isabella Freire, especialista em Política Ambiental da Conservação Internacional.
De acordo com a organização, os impactos ambientais e sociais das hidrelétricas se tornariam ainda mais intensos porque os dois empreendimentos, considerados prioridade no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), são apenas parte de um grande projeto de integração do Brasil com a Bolívia. Além de Santo Antônio e Jirau, o projeto prevê a construção de uma hidrelétrica binacional, no Rio Mamoré (afluente do Madeira) e outra em território boliviano.
O projeto do complexo não se restringe à produção de energia. As obras também prevêem a recuperação de duas rodovias: a BR-364, que liga Porto Velho (RO) a Cuiabá (MT), e a BR-317, que vai de Porto Velho a Rio Branco (AC). Para estimular a navegação na região, seriam construídas eclusas em cada hidrelétrica que formariam uma hidrovia de 4,5 mil quilômetros que se estenderia do interior da Bolívia até o Rio Amazonas, conectando os Rios Madeira, Guaporé e Beni. “Essa seria a maneira de a Bolívia encontrar a saída para o Atlântico”, ressalta Isabella Freire.
Para a especialista, a redução do custo de logística na região proporcionada pelas usinas pode destruir qualquer iniciativa de desenvolvimento sustentável no oeste da Amazônia. “Vai ficar barato produzir soja, o que vai expandir as fronteiras agrícolas do país sem qualquer respeito ao meio ambiente e às populações que vivem na floresta”, salienta. “Será o mesmo processo que ocorreu no Centro-Oeste.”
Em 2003, o consórcio formado pela estatal Furnas e pela empreiteira Odebrecht, que está elaborando o estudo de impacto ambiental (EIA) das usinas de Santo Antônio e Jirau, estimou que o complexo vai impulsionar a produção de 25 milhões de toneladas de soja por ano apenas no Brasil. Isso equivale à expansão de 80 mil quilômetros quadrados de agricultura mecanizada. As projeções constam de um grupo de assessoria internacional que ajudou na elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2004–2007 para a região amazônica.
De acordo com o próprio estudo da Conservação Internacional, as conseqüências podem ser ainda mais graves porque, para que ocorresse de forma legalizada e respeitando as áreas de preservação permanente, as propriedades privadas teriam de ocupar pelo menos mais 400 mil quilômetros quadrados, cinco vezes mais que o previsto pelo consórcio. “É impossível que uma expansão dessa magnitude não se dê sem desmatamento nem a expulsão de agricultores familiares e comunidades tradicionais”, avalia Freire. “Isso teria pelo menos que ser debatido em conjunto com a população.”
Por enquanto, o governo desistiu de construir as eclusas e deixou em suspenso a proposta das usinas em parceria com a Bolívia. Segundo a Casa Civil, o grupo de trabalho formado em fevereiro de 2006 para discutir o projeto do complexo optou por dar prioridade às usinas de Santo Antônio e Jirau ao incluí-las no PAC.
Para a Conservação Internacional, no entanto, o recuo em relação à proposta inicial representa um artifício para adiar as discussões e permitir a execução do projeto de forma gradual. “O complexo do Rio Madeira é outro grande projeto fragmentado para facilitar seu licenciamento. Até mesmo as linhas de transmissão, claramente imprescindíveis às hidrelétricas, são consideradas como projeto à parte”, conclui o estudo. As linhas não constam do EIA.