A fé no Bom Jesus

A religiosidade do povo brasileiro expressa-se ao longo do Velho Chico: cada cidade, povoado e lugarejo, por menor que seja, conta com uma capela ou igrejinha. Às margens do rio, também está um dos mais famosos pontos religiosos do nordeste, o Santuário de Bom Jesus da Lapa. Verdadeira Meca dos sertões, a igreja regula a vida da cidade que leva seu nome e atrai milhares de romeiros todos os anos.

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Para o padre Tadeu Mazokievski a cidade precisa preparar-se para receber os turístas. Foto: Fernando Zarur

Considerada milagrosa, a gruta de Bom Jesus da Lapa tornou-se um dos maiores símbolos religiosos do interior. As histórias são muitas: paraplégicos voltam a andar e cegos a enxergar, inimigos se reconciliam, outros se arrastam de joelhos e há quem não agüente e morra só de tocar o chão sagrado. O povo se reúne aos milhares na esperança de conseguir favores e agradecer uma benção. Numa região de natureza sofrida e, principalmente, negligenciada por seus governantes, a gruta de Bom Jesus da Lapa representa a esperança na fé, muitas vezes a única que prevalece.

Por causa disso, na Bahia, o município só perde em potencial turístico para grandes centros como Salvador e Porto Seguro. Em 6 de agosto, 15 de setembro e 4 de outubro – Festa do Bom Jesus, Nossa Senhora da Soledade, Festa do Romeiro – mais de 200mil visitantes lotam a cidade de apenas 50mil habitantes. A estimativa anual indica um fluxo de turistas em torno de um milhão de pessoas. “Em dia de festa, não dá para andar, todo lugar tem gente”, explica Expedito Nunes, funcionário local da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf).

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O escultor Cosmo Duarte ao lado do trabalho que leva oito meses para ser feito e não tem saída porque, segundo ele, o turista não fica mais na cidade. Foto: Fernando Zarur

Entretanto, esse fluxo de romeiros esbarra na falta de infra-estrutura local. Não existem leitos suficientes, e muitos precisam alugar quartos ou camas nas casas ao redor do santuário ou acampar nas margens do São Francisco. Segundo o padre Tadeu Mazokievski, esses problemas são recorrentes, resultado da falta de visão das administrações locais. Os únicos banheiros públicos da cidade, por exemplo, foram feitos pela diocese. “O povo, cada vez mais, desenvolve sua consciência, mas ainda tem medo dos nossos políticos. O prefeito sempre assume e pensa primeiro em empregar toda sua família e destruir o que foi feito na gestão anterior”, afirma o religioso.

O município não possuiu indústrias ou grandes plantações. Por isso, a economia depende quase unicamente do dinheiro trazido pelos romeiros e turistas. Com exceção dos funcionários contratados pela prefeitura ou pela Codevasf, o resto da população trabalha em função dos visitantes.

Para Mazokievski, parte do problema poderia ser solucionado com a criação de escolas técnicas e com mais interesse das administrações em trazer empresas para a cidade. Ele afirma que em duas oportunidades fábricas de doces e de sucos fizeram contatos com o município, mas desistiram por falta de incentivos.

Outro caminho seria a estruturação do turismo. Além de ser um marco religioso às margens do rio São Francisco, a cidade também é ponto de parada de turistas de Brasília e Goiânia com destino ao litoral baiano. “Eles vêem e passam uma noite aqui, antes de continuar viagem. Precisamos pensar em uma maneira de fazer com que passem um ou dois dias na cidade”, diz o artesão Cosmo Duarte, 36 anos fazendo carrancas.

Segundo o carranqueiro, o turismo religioso já existente não satisfaz as necessidades do comércio local: a maioria dos romeiros gasta pouco na cidade. Assim, o ideal seria a viabilização pela prefeitura de projetos de exploração sustentável do Velho Chico, transformando Bom Jesus da Lapa em um balneário.

Velho Chico irriga o Norte de Minas

Logo na saída do porto de Itacarambi – MG, a Expedição Américo Vespúcio entrou no que parecia ser um pequeno rio, afluente do Velho Chico. Era na verdade o canal de adução do maior projeto de irrigação da América Latina, o Jaíba, uma área de 100 mil hectares entre o alto rio Verde Grande e o São Francisco, responsável pela produção da maior parte dos alimentos produzidos no norte de Minas. Em 2000 foram 58 mil toneladas, entre frutas, sementes de hortaliças e grãos.

irrigacaojaiba.jpgAlém de ser um afluente ao contrário, com potencial de retirar do São Francisco até 80 m³/s de água, vazão maior que a de rios pequenos, também é uma hidrelétrica às avessas, chegando a gastar 300 kw/h nos meses de seca, em que há maior bombeamento, para subir a água necessária para a irrigação. A área irrigável é de 67 mil hectares, mas apenas 33 mil hectares estão ocupadas, com mais 17 mil prontos para receber irrigação nos próximos anos.

“À medida em que utilizamos novas técnicas de irrigação poupadoras de água, como a aspersão e o gotejamento, podemos aumentar a área irrigável sem dispor de mais águas do rio”, explica Carlos Antônio Landi Pereira, gerente do projeto Jaíba. Foram 1400 pequenos irrigantes, como são chamados os colonos instalados até o momento, com propriedades de cinco hectares. Há também 82 empresas agrícolas, com empreendimentos que variam entre 20 e 160 hectares. Os pequenos são selecionados por entrevistas, e os grandes por concorrências públicas.

Canal principal do Jaíba – MG. O rio artificial tem uma calha semelhante à do rio São Francisco em Iguatama, onde a expedição embarcou. Foto: Marcello Larcher

engacarloslandi.jpgAlgo preocupante é a situação do rio, que pode afetar o projeto. O rio atingiu 438,54 metros acima do nível do mar na última estação seca, enquanto as bombas do Jaíba só operam com 438,5, ou seja, 4 cm de margem. Na opinião de Landi, isso se deve à mudança na prioridade da usina de Três Marias. “O objetivo passou a ser gerar energia, quando a barragem deveria regularizar a vazão do São Francisco”, explica. Com o reservatório agora comprometido, Três Marias não pode garantir os 290 m³/s necessários para que o andamento do projeto.

E Landi conta que desde 1992 o rio não vê uma grande enchente, o que poderia repovoar de peixes o rio. “Teve ano que o rio chegou a 30cm de inundar as lagoas, precisava ter alguém para avisar Três Marias para que soltasse mais água”, defende. O projeto foi acusado de devastar a mata da região, mas Landi defende o contrário. “Se não fosse o Parque Estadual criado pelo Jaíba, as matas teriam sido devastadas há muito tempo”, argumenta, mostrando que dentro do projeto há duas áreas de preservação somando 34 mil hectares, todas ligadas por um corredor ecológico.

Para Landi a situação é preocupante, o rio já esteve a 4 cm de inviabilizar o bombeamento. Foto: Marcello Larcher

Dona Lurdes, carranqueira, cantora, poetisa, escritora…

O Velho Chico é um rio rico em contradições, de muitas belezas e problemas, de riqueza e pobreza, de histórias e lendas. E dentro da imensidão de vidas ligadas às águas, uma, especialmente, merece ser contada. É a de Maria de Lurdes Gonçalves Lopes, 60 anos, ou dona Lurdes, como é conhecida em Pirapora-MG, habilidosa carranqueira, cantora, poetisa, escritora e amante das águas.

donalurdes_1.jpgAs aventuras de dona Lurdes começaram aos 12 anos, quando um circo passou por sua cidade natal, Serrinha, perto de Salvador, na Bahia. “Eu fui lá, cantei, e o dono do circo gostou. Me chamavam de Cigarra Boêmia de Serrinha”, relembra. Para cantar, ela saía escondida de casa, pois sua família não aceitava a vida de artista, coisa imprópria para uma moça de família. A aventura durou um mês, até quando seu pai assistiu a um espetáculo. Embora tenha gostado da apresentação, ele e sua mãe a obrigaram a largar a recém começada carreira com uma surra de uma dúzia de palmatórias.

"Barroso era homem de verdade, era companheiro, pai, marido e amante", diz, com saudades do capitão (Pirapora-MG). Foto: Bruno Radicchi

Mas dona Lurdes não era moça que aceitava ordens ou desistia de suas vontades. Por isso, continuou fugindo de casa até os 16 anos, para cantar, até conseguir mudar para Salvador, estudar música e participar como corista da Orquestra Azevedo. Nessa época, ela chegou até a cantar na Rádio Excelsior, da Bahia.

Apresentando-se em boates e festas, a moça destemida conheceu várias pessoas, muitas importantes e influentes. Uma delas era o político baiano Waldir Pires, opositor à revolução e ao governo militar recém outorgado, uma influência nas idéias dela própria. Essa ligação com a esquerda, em uma época de violentas perseguições políticas, mudou sua vida: ela decidiu voltar escondida para Serrinha. “Eu tinha muito medo, principalmente pelo meu pai, que sustentava uma casa com tantos filhos. Tinha uns dois vizinhos na minha rua que sumiram e nunca mais voltaram”, conta, ainda assustada.

Logo depois da fuga, ela recebeu um telegrama anônimo, com instruções para se juntar a uma certa companhia teatral e seguir até Juazeiro. No caminho, o grupo embarcou em uma antiga barca a vapor que fazia o trajeto Pirapora-MG a Petrolina-PE, navegando pelo Rio São Francisco. Entretanto, todos os passos de dona Lurdes foram seguidos por um misterioso homem, sujeito desconhecido, sempre calado, carregando uma maleta preta.

donalurdes_2.jpgPara a sorte de dona Lurdes, a barca, chamada São Francisco, tinha no comando um homem decidido e corajoso, o capitão Francisco Barroso, um antigo namorado. Quando o homem misterioso, ainda dentro do vapor, deu voz de prisão à contra-revolucionária, o capitão saiu em sua defesa.

Ninguém me mandou não, eu fiquei foi por medo de ser presa”, diz dona Lurdes, ao explicar porquê permaneceu cinco anos escondida nas barcas a vapor do São Francisco (Pirapora-MG). Foto: Bruno Radicchi

“Barroso disse para ele: ‘Eu sou o capitão e daqui ela não sai. Quem vai se retirar é o senhor’. E então eu fiquei dentro do barco por mais cinco anos, com medo de ser presa”, conta dona Lurdes, que sofre até hoje de depressão e toma remédios controlados, devido ao pavor que sente dos tempos de repressão da ditadura.

Então, por cinco anos, ela ficou embarcada em barcos a vapor, cruzando para cima e para baixo o Velho Chico, levando mercadorias de Minas Gerais para Bahia e Pernambuco e vice-versa, descendo a terra sempre às escondidas, sempre ao lado de seu protetor, o comandante Barroso.

“Foi o tempo todo vendo as mesmas coisas. De olhos fechados, eu conhecia todas as curvas do rio”, conta, melancólica. Mas mesmo restrita às embarcações, dona Lurdes continuou cantando – se apresentava como Lurdinha Barroso -, aprendeu os rudimentos da arte da carranca e casou-se com o amor de sua vida, o capitão Barroso.

“Ele era 30 anos mais velho que eu, mas homem igual aquele não existe mais. Ele era pai, protetor, amante e marido”, lembra saudosa do companheiro, mas forte, sem derramar uma lágrima. Dona Lurdes conta que o velho capitão era um homem de muitas mulheres, com namorada ou família em cada porto que passava, mas abdicou de todos os outros amores por ela. “Antes de mim, tudo bem, mas depois que nós casamos, era só eu. Eu brigava com ele, e acabou largando todas as outras, vivia para mim, me enchia de presentes, me dava lingerie de renda e de seda”, afirma.

Barroso também foi o principal mecenas de dona Lurdes. Presenteou a esposa com os primeiros instrumentos para ela começar a esculpir carrancas e incentivou-a a aprimorar sua técnica. Levou para conhecer o mestre carranqueiro Guarani, que ao ver a novata esbravejou “não vou ensinar nada, não”. Mas Dona Lurdes aprendeu as técnicas do velho professor só de olhar.

Em 1997, capitão Barroso morreu, já com 86 anos, e dona Lurdes “quase foi também”. Mas hoje, para espantar a tristeza e a dor da perda, ela recorre a várias atividades sociais em que participa na comunidade, ao carinho dos filhos que teve com o marido – Francisco Walber, Francyslady, Charles, Teodoro Pereira Neto e Luana Lara Janaína – e ao artesanato de carrancas. Além disso, ainda ocupa seu tempo escrevendo suas memórias, mesmo “não sendo uma mulher de muita escrita”.

Reservatório de Três Marias: regulador do São Francisco

A conservação do lago de Três Marias é uma tarefa que envolve diversos órgãos públicos e setores da sociedade. Entretanto, a manutenção da vida aquática na região tem como maior especialista o professor Yoshimi Sato. Doutor em Ecologia e Recursos Naturais, ele acompanha a vida dos peixes da lagoa desde a inauguração da Estação de Hidrobiologia e Piscicultura de Três Marias, em 1976.

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Tanque para reprodução de peixes na Estação de Hidrobiologia e Piscicultura da Codevasf. Foto: Bruno Radicchi.

Sato chegou à região no momento em que ganhava força o movimento ecológico, e os problemas para a manutenção da vida aquática local chamaram sua atenção. Como chefe da estação mantida pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), ele desenvolveu, em mais de 25 anos de trabalho, diversos projetos de estudo de impacto ambiental, mortandade e repopulação dos peixes no lago.

Mesmo com os trabalhos desenvolvidos por Sato e outros ambientalistas, a degradação do ecossistema do reservatório continua preocupante. “O trecho que vai da nascente até Pirapora e inclui a barragem de Três Marias é o mais importante do vale. É o nascedouro e maior reduto de peixes do São Francisco, e a região que mais contribui com águas para o rio. Se isso não for preservado, nós vamos deixar pouca coisa para as gerações futuras”, explica.

professorsato.jpgUm desses problemas é a destruição das lagoas marginais, melhor lugar para reprodução dos peixes. Segundo dados da Codevasf, na região de Iguatama-MG, em 1982, existiam cerca de 80 lagoas, sendo 28 permanentes. Atualmente, o total não chega a 20. "Temos que recuperar estes berçários naturais. As lavouras de cana e pastagens estão dominando e acabando com as lagoas", afirma Sato.

Outro fator de desequilíbrio é a introdução de espécies exóticas ao rio. Entre elas estão o tucunaré e o bagre africano, predadores que não existiam na região e foram trazidos por pesque-pagues e, principalmente, por projetos do governo. Estes peixes se adaptaram bem na região e passaram a devorar filhotes e peixes nativos.

Para o professor Yoshimi Sato, embora já em estado adiantado, a degradação do São francisco ainda é recuperável. Foto: Fernando Zarur

Sato explica que existem poucas alternativas para a manutenção do meio-ambiente regional. “A degradação do baixo São Francisco é irrecuperável”, afirma, para logo depois dizer que o Velho Chico ainda tem salvação. Parte dessa solução viria com a reintrodução de espécies nativas – trabalho apenas paliativo – e a preservação das lagoas marginais.

Entre as soluções propostas, Sato descarta as “escadas” e “elevadores” para peixes. Em sua opinião, muitos peixes não conseguem subir os níveis, e os que conseguirem encontrarão condições desfavoráveis para reprodução e não poderão voltar. A água no reservatório está parada, é transparente, tem temperatura diferente da ideal, falta de oxigênio, entre outros problemas apontados por ele.

“Precisamos conhecer os interesses por trás dessas ações”, alerta Sato. “Se você perguntar para qualquer morador das cidades da região, todos serão a favor das tais escadas, mas não conhecem a real situação”. Sato explica também que as autoridades optam por este tipo de obra porque querem dar uma resposta à população. “Acho que as escadas são um pretexto para dar dinheiro para as empreiteiras”, conclui Sato.

Nascentes

A área das nascentes que a Expedição Américo Vespúcio visitou em São Roque de Minas ainda é razoavelmente preservada. Dentro do Parque Nacional da Serra da Canastra, o Parcanastra, o São Francisco nasce em meio a uma área de visitação fiscalizada pelo Ibama, e os únicos perigos que enfrenta são o lixo e o descuido de turistas.

A serra e suas formações rochosas abraçam o imenso alagadiço de onde saem as águas, que formam um pequeno córrego de águas ainda cristalinas. No centro, um altar ao santo que emprestou seu nome ao Velho Chico demarca as trilhas de visitação.

Para fugir do abraço da serra, o São Francisco se derrama em uma pequena cascata, a menos de 5km da nascente. Dali até a Casca D’anta, maior cachoeira da região, com mais de 180 metros, são 28km de rio, percurso todo preservado pelo parque e pelos donos das terras que o margeiam.

Entretanto, nos próximos 100km a história é bem diferente. Podem ser vistos trechos intermináveis de matas ciliares devastadas, barrancos desmoronados, trechos assoreados, lagoas naturais drenadas para a pecuária, esgoto não tratado despejado no rio.

Mesmo assim, ao chegar em Iguatama, já um rio caudaloso, o São Francisco resiste aos maus-tratos e continua sua jornada.

Ecoturismo em São Roque de Minas

O município de São Roque de Minas tem um patrimônio ambiental invejável. Dentro de seus limites está localizado o Parque Nacional da Serra da Canastra (Parcanastra), uma das formações mais típicas de Minas Gerais, além de mais de 30 cachoeiras que passam dos 40 metros de altura. Isso sem falar que São Roque abriga as nascentes do rio São Francisco.

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Abraço às nascentes do rio São Francisco, em São Roque de Minas – MG. Foto: Marcello Larcher

Mas toda essa abundância pode estar ameaçada, não por indústrias poluidoras ou desastres ambientais, mas pela exploração desorientada do turismo na região. Foi o que contou à equipe da Expedição Américo Vespúcio o secretário de Indústria, Comércio e Turismo, Edílson Romer de Faria.

“Nosso potencial turístico é único, mas o que existe hoje é um turismo espontâneo, que não sustenta um desenvolvimento econômico”, explica Edílson, relatando dados de que a cidade conta com mais de 700 leitos em hotéis e pousadas, além de áreas para camping. Mas mesmo com tanto movimento, segundo o secretário, os negócios de turismo não se sustentam com apenas picos durante feriados prolongados. “Que dono de pousada vai contratar pessoas se ele não sabe quando vai haver movimento novamente? São Roque precisa de um projeto de ecoturismo racional.”

ecoturismo_2.jpgAs dificuldades são muitas. A arrecadação de São Roque, embora seja um município extenso, depende quase que exclusivamente de repasses da União. Até mesmo o levantamento de potencial turístico, que depende da contratação de técnicos, não pôde ser feito, e o prazo para conseguir verbas para o Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT) encerra-se em abril. “Nem mesmo verbas para que eu participasse do encontro preliminar do PNMT semana passada conseguimos levantar no município”, contou Edílson.

Imagem de São Francisco colocada na nascente do rio, no alto da Serra da canastra. Foto: Fernando Zarur

Enquanto isso o prazo vai se fechando também para o patrimônio natural. Nos próximos meses a estrada até São Roque deve ser asfaltada e espera-se um aumento desenfreado de visitantes. Edílson teme que aconteçam cenas como as que foram vistas quando um grupo de motoqueiros organizou uma rota pelo meio da nascente do São Francisco, um terreno frágil, que mal pode ser pisado. Outro problema são os incêndios, cada vez mais freqüentes. O último, que destruiu 30% do Parcanastra, deixou um saldo de 20 tamanduás mortos. “Eu convido vocês em agosto do ano que vem para assistirem a outro grande incêndio”, indigna-se Edílson.

Chico Chagas, artesão bom de histórias

Além de exímio carpinteiro, fazendeiro, tocador de sanfona e ótimo contador de casos, seo Francisco Chagas é o primeiro artesão a fabricar carrancas já na nascente do rio São Francisco.

Ligado ao rio até pelo nome, seo Chico Chagas, como é conhecido, mora num sítio no sopé da Serra da Canastra. Natural de São Roque de Minas, ele ficou conhecido nas redondezas quando começou a fazer carrancas, atividade que era apenas um passatempo quando esteve proibido de sair de casa depois uma operação de hérnia.

chicochagas.jpgA extrema habilidade para trabalhar a madeira é uma herança do avô carpinteiro, e deu facilidade ás primeiras caretas esculpidas, usando como molde apenas suas lembranças. Ele explica didaticamente que a carranca é usada para afastar o mau. Ao lado de cada explicação, segue uma pequena história:

“Meu avô sempre ia pescar com meu tio-avô, nuns rios que tinham aí pra cima. Meu tio sempre falava pra tomar cuidado com o caboclo d´água, uma mistura de homem e macaco que vira a canoa para comer as pessoas. Meu avô num acreditava em nada disso. Mas um dia ele tava pescando, a canoa começou a bambear. Quando ele viu uma mão agarrada na borda, ele tirou o facão e cortou. Era a mão do caboclo d´água, ela era preta com umas coisas assim no dedo que nem pato. Ele guardou isso até as vésperas de sua morte. A carranca é pra isso, o caboclo d´água vê aquela cara mais feia que ele e vai embora”.

Seu Chico Chagas conta seus causos ao redor de sua sanfona. Foto: Fernando Zarur.

Além dos causos, seo Chico também é conhecedor dos problemas que a região enfrenta atualmente. Reclama da degradação ambiental no Parque da Serra da Canastra, do rio São Francisco e de que as autoridades deviam pensar mais sério sobre o meio ambiente. Ele sugere, por exemplo, a construção de pequenas usinas para aproveitar a queda natural das dezenas de cachoeiras da região.

Chico defende que em locais onde não há tratamento de esgoto, as pessoas deveriam usar mais o banheiro ao ar livre. “Eu acho que as pessoas tinham que usar mais o campo para defecar. Poderia até ser construída uma fossa comunitária. Aí, deixava encher e doava tudo como adubo para os fazendeiros”.

Congos e Moçambiques

Uma das mais tradicionais manifestações populares brasileiras, a congada é realizada em todo o interior, principalmente de Goiás e Minas, incluindo regiões banhadas pelo São Francisco. A festa acontece anualmente entre os meses de outubro e novembro como parte das comemorações em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e Santo Expedito.

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Foto: Fernando Zarur

A festa reafirma a religiosidade de seus participantes e é um dos exemplos mais claros do sincretismo brasileiro. Elementos católicos e de religiões africanas ancestrais se misturam e tornam-se indissociáveis. Assim, as imagens de santos e terços misturam-se a tambores, conchas e bengalas, enquanto hinos são entoados com ritmo africano.

Com trajes festivos, bandeiras, tambores e guizos, os congados representam personagens que imitam cortes européias, com reis, rainhas, princesas e capitães. Antigamente era conhecida como “festa dos pretos”, devido a suas origens africanas, mas hoje participam pessoas de várias comunidades. Há dois grupos principais, os congos, com roupas coloridas, e os moçambiques, de roupas brancas.

A tradição passa de pai para filho, como atesta seo Espedito Francisco Martins (foto), que tem toda a família envolvida nas festividades. Ele é capitão do moçambique e condutor dos reis e rainhas, que no coletivo formam o reizado. Também o pescador Clotário Pinheiro viu a tradição seguir em sua família: herdou do pai o título de Rei Perpétuo. “A primeira vez em que brinquei o congado, estava nos braços de minha mãe”, conta Clotário, hoje com 67 anos.

Rio São Francisco – Meio Ambiente

A exploração dos recursos hídricos, minerais, vegetais e humanos de toda a bacia do Rio São Francisco durante 500 anos trouxeram danos, alguns irreparáveis, a toda a região. Assoreamento, desmatamento, erosão e poluição são problemas enfrentados pela população do vale há anos, e o tipo de impacto ambiental está diretamente ligado à atividade econômica desenvolvida em cada região.

O uso indiscriminado dos recursos naturais é, atualmente, o maior perigo à sobrevivência do rio. Certas análises apontam que esses abusos podem resultar em um desgaste e até mesmo esgotamento dessas fontes.

erosaorio.jpgNo Alto São Francisco, a concentração demográfica, as atividades econômicas do quadrilátero ferrífero e as indústrias de transformação da Grande Belo Horizonte respondem pela degradação ambiental daquele trecho. Além destes, o garimpo de diamantes desfigura o leito do rio com grandes dragas, lançando depois o material retirado em suas margens que voltam ao rio nas enxurradas.

Ainda no Alto São Francisco, mas já entrando no Médio e Sub-Médio, a principal fonte de poluição é a agricultura, praticada sem preocupações com a preservação dos recursos hídricos. Os projetos de irrigação e a agricultura provocam o desmatamento da mata ciliar e, conseqüentemente, carregam sedimentos para o leito do Rio. A vegetação nativa, que em 1970 cobria 85% dos 12 milhões de hectares do norte de Minas Gerais, em 1990 estava reduzida a 35%. E a cada ano, mais de 400 mil hectares de cerrado são desmatados na bacia, o equivalente a mais de mil hectares por dia.

O desmatamento das margens do lago da represa de Três Marias, assim como de vários trechos das margens do Velho Chico, provoca processos violentos de erosão, como a voçoroca acima. Foto: Fernando Zarur

A construção de hidrelétricas ao longo do rio também é um grave problema, que põe em risco sua própria existência. Além das transformações significativas que obras como barragens e usinas provocam na área onde são instaladas, com reflexos diretos na vegetação e vida animal, o regime das águas também é afetado. No Baixo São Francisco, uma preocupação de cientistas e ambientalistas é a regularização do fluxo de água, prejudicado e tornado irregular com todas as mudanças feitas no percurso e pelo uso excessivo do recurso.

As sucessivas barragens feitas ao longo do rio provocam um processo quase irreversível de assoreamento, pois diminuem a correnteza natural, formam bancos de areia e transformam os drenos naturais de água em áreas pantanosas. Além disso, a regularização dessas usinas tem provocado efeitos também na atividade pesqueira e na cultura do arroz feitas pela população da área. A extinção de lagoas e várzeas naturais onde ocorria a reprodução e captura dos peixes, e onde tradicionalmente se fazia a plantação do arroz, ameaça a sobrevivência de espécies naturais e da própria população local.

História do Rio São Francisco

Cerca de um ano após a descoberta de Pedro Alvarez Cabral, o navegador Américo Vespúcio chegou à foz de um enorme rio que desaguava no mar. A data era 04 de outubro de 1501, dia de São Francisco, santo em cuja homenagem os navegadores europeus batizaram o rio. Para as diversas nações indígenas que habitavam aquela região, aquelas águas tinham um nome antigo: Opará, que significa algo como “rio-mar”.

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Desde então, o São Francisco passou a ser visitado regularmente pelas naus européias e, mais tarde, seria o principal pavimento para a colonização dos sertões goianos, o chamado Brasil-Central. No primeiro momento, porém, o terreno desconhecido e a resistência dos índios dificultaram o domínio da região.

Duas décadas depois de seu descobrimento, em 1522, o primeiro donatário da capitania de Pernambuco, o português Duarte Coelho, funda a cidade de Penedo, em Alagoas. Com a autorização da coroa portuguesa, em 1543 começa a criação de gado na região, atividade econômica que marca a história do vale do São Francisco que chegou a ser chamado de “ Rio-dos-Currais”. Estes foram os primeiros passos para o início da colonização.

Mesmo assim, a exploração estava limitada ao litoral, principalmente por causa das tribos indígenas que defendiam seus territórios no interior. Os Pankararu, Atikum, Kimbiwa, Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare, são alguns dos remanescentes atuais das populações que originalmente ocupavam o local.

Apesar disso, lendas sobre pedras preciosas e riquezas inacreditáveis atraíam diversos aventureiros para a região. Guiados pela cobiça, estes colonizadores foram dizimando os índios, que fugiam dali para o planalto central. Assim, ergueram-se os primeiros e pequenos arraiais, iniciando o domínio da região, onde o ouro e as pedras preciosas.

Em 1553, o rei D. João III, ordenou ao Governador Geral Tomé de Souza a exploração das margens interiores do rio. A organização da empreitada ficou a cargo de Bruza Espinosa, que teve em seu lado o Padre Aspilcueta Navarro para formar a primeira companhia de penetração. O roteiro dessa viagem e uma carta do Padre Navarro são os primeiros documentos descritivos sobre o São Francisco.

A partir daí, as águas do rio foram navegadas por dúzias de expedicionários que, aos poucos, consolidaram o domínio sobre a exploração do São Francisco. A ocupação, entretanto, ocorreu principalmente através das sesmarias, tendo sido o São Francisco ocupado parte pela Casa da Torre de Garcia DÁvila e parte pela Casa da Ponte, de Antônio Guedes de Brito. O primeiro, Garcia DÁvila, apossa-se das terras em 1573, sendo mais de 70 léguas entre o Rio São Francisco e o Parnaíba no Piauí.

Conflitos

Em 1637, os holandeses invadiram o povoado de Penedo por causa de sua localização estratégica, na foz do São Francisco. Ali construíram um forte batizado Maurício, em homenagem a Maurício de Nassau. O domínio holandês permaneceu forte até 1645, quando os portugueses retomaram a região.

Outro fator importante da ocupação nesta época, foram as missões religiosas, iniciadas por padres capuchinhos bretões a partir de 1641. Com isso, as nações indígenas sumiam do mapa, atacadas por doenças, miscigenação e pela aculturação.

Domingos Jorge Velho by Benedito Calixto
Bandeirante Domingos Jorge Carvalho (via Wikipedia)

Em 1675, jazidas de ouro são encontradas em afluentes do São Francisco pela bandeira de Lourenço de Castanho que assassina os índios cataguáses, habitantes originais da região. Desde então, dezenas de bandeirantes navegaram o rio, entre eles: Matias Cardoso, Domingos Jorge Velho, Domingos Sertão, Fernão Dias Paes, Borba Gato e Domingos Mafrense.

Nesta época, os portugueses também enfrentaram a resistência dos escravos fugitivos. Os quilombos formavam uma verdadeira república negra que desafiou por muito tempo o domínio da Coroa. Em 20 de dezembro de 1695, uma tropa mercenária, contratada por Portugal e os usineiros de açúcar da capitania de Pernambuco, destruiu o último foco da resistência armada dos escravos, ligadas ao famoso Quilombo dos Palmares.

Relevo

O Vale do São Francisco é uma depressão alongada que parte da Serra da Canastra, na parte sul da bacia, sendo formada pela Serra do Espinhaço a leste e a Serra Geral de Goiás a oeste, com altitudes variam de 1.000 a 1.300 metros do nível do mar. Já no Médio São Francisco, o curso d’água encontra-se com a Serra da Tabatinga, ao norte, cujas alturas são de 800 a 1.000 metros, formando o divisor com o vale do Parnaíba, no Piauí.

São Francisco river basin
Bacia do Rio São Francisco (via Wikipedia)

Nesse ponto, o vale toma a direção leste, margeado pela chapada do Araripe, ao norte, com 800 metros de altitude, divisor de águas com o vale do Cariri, no Ceará, sendo ao sul limitado pela Bacia de Tucano e Vaza-Barris, onde se localiza o raso da Catarina.

Dos divisores de águas de suas nascentes, onde as altitudes variam de 1.600 a 600 metros, o Alto São Francisco apresenta topografia levemente ondulada, entalhada em arenitos, ardósias e calcário. No Médio São Francisco, próximo aos limites de Goiás até a divisa de Maranhão e Piauí, os chapadões constituem as feições predominantes, com vertentes sulcadas por vales profundos. As altitudes situam-se entre 800 a 900 metros. No Baixo São Francisco, perto da foz e do nível de base, o rio perde velocidade e dá origem a depósitos sedimentares.

Solos

Há vários tipos de solos na Bacia do São Francisco, desde solos arenosos, até solos argilosos. Muitas áreas dispõem de solos salinos, ou areia pura, ambos inúteis para a agricultura. As margens e ilhas são formadas por solos transportados, que são chamados de aluviões, e sempre foram utilizados pelos ribeirinhos para cultura de subsistência, de feijão, batata, milho ou mandioca, aproveitando as vazantes, ou lameiros.

Vegetação

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A cobertura vegetal da Bacia do São Francisco é bastante variada, sendo formada em sua maior parte pelos cerrados e pela caatinga. Mas em sua extensão encontramos áreas de mata, nas zonas úmidas, e de mata caducifólia, em regiões de boa precipitação com solos profundos e férteis. Como exemplo podemos citar os vales dos rios Carinhanhas, Corrente e Grande, na Bahia, e do Verde Grande, na Bahia e em Minas Gerais. Nessas matas, a vegetação é alta, densa e com espécies da chamada “madeira de lei”. Há também no São Francisco uma formação vegetal própria de terrenos alagadiços, cujas espécies, na grande maioria, têm frutos ou sementes que fazem parte da alimentação dos peixes de água doce.

[tabs slidertype=”top tabs”] [tabcontainer] [tabtext]Conteúdo especial[/tabtext] [/tabcontainer] [tabcontent] [tab]Confira o conteúdo produzido durante a viagem pelo rio São Francisco:

Galeria de imagens da expedição:

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