A tarefa de levar aos brasileiros a realidade indígena

Cid Furtado, carta de abertura da 1ª edição da revista Brasileiros de Raiz

Em pleno século 21, o Brasil, tão reconhecido na aldeia global antevista pelo grande teórico da comunicação, Marshal Macluhan, tem dificuldades para reconhecer sua cultura original. Sua identidade mais pura. Permite assim, que a sociedade desconheça os habitantes da terra que existiam antes de a chamarmos Brasil. Milhões de índios tiveram suas vidas ceifadas pelo conquistador português e, ainda hoje, este País moderno permite a continuidade deste massacre, ensinando em suas escolas a história contada pelo vencedor, tratando-os com descaso e tornando-os invisíveis aos olhos da sociedade e governos.

Os indígenas só ganham visibilidade quando decidem lutar por seus direitos, enfrentando nossos preconceitos, ou quando surge um conflito com a sociedade não-índia. Essa situação, causada pela combinação de falta de informação e de iniciativa em mudá-la, foi o ponto de partida de nossa proposta de criar a revista Brasileiros de Raiz. Em suas páginas, vamos nos impor, permanentemente, a tarefa de levar ao cidadão brasileiro, informações sobre a realidade das comunidades indígenas de todo o País. Casualmente, enquanto preparávamos sua primeira edição, duas histórias nos chamaram a atenção para a importância do trabalho que pretendemos fazer.

Meu filho de 15 anos, cursando o 2º ano do ensino médio, numa das escolas consideradas de melhor nível de Brasília, explicou-me, conforme ouvira de seus professores, porque os indígenas teriam sido massacrados pelos colonizadores: “porque os portugueses presenciaram atos de antropofagia e teriam sido levados a crer que as comunidades indígenas brasileiras, de forma geral, tinham esta prática”. Esta seria a justificativa para os massacres.

O segundo relato aconteceu durante uma conversa recente com um ex-presidente da Funai. Ele me disse que seu filho, na 3ª série do ensino fundamental, também havia recebido informações, no mínimo distorcidas, estampadas em livro adotado por parte da rede de ensino da Capital Federal. Diz o livro que a chegada de escravos negros no Brasil deve-se ao fato de o índio não aceitar trabalhar.

Na verdade, na grande maioria das sociedades indígenas, homens e mulheres têm diferentes atribuições na comunidade. O indígena brasileiro não se adaptava a diversas práticas dos colonizadores, por diferenças culturais e muitos outros fatores como abrir mão de seu modo de vida, de sua liberdade e independência ou cumprir funções, tradicionalmente exercidas por mulheres nas comunidades indígenas. Detalhes culturais que fizeram e fazem toda a diferença na hora de analisar as questões indígenas.

Assim como muitos simpatizantes das causas indígenas, acreditamos que recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre os legítimos Brasileiros de Raiz, é uma importante contribuição para contarmos a verdadeira história dos povos indígenas.

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Revista Brasileiros de Raiz

A revista Brasileiros de Raiz surgiu como uma publicação dedicada exclusivamente à questão indígena com o intuito de trazer informações sem preconceitos sobre a realidade indígena brasileira. Para saber mais, entre em contato com redacao@brasileirosderaiz.com.br ou ligue para (61) 3202 30 92.
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Acelerando na contramão

Por Raul Silva Telles do Valle

Na noite da última quarta-feira (25/10), o Senado Federal aprovou, por 49 votos a favor e sete contrários, o PLC 01/2010, que regulamenta o art.23 da Constituição Federal. Originalmente, o projeto foi pensado para regulamentar a forma de atuação conjunta entre os entes federativos na proteção do meio ambiente, que por definição constitucional é de competência comum, ou seja, cabe igualmente à União, Estados e Municípios. Apesar disso, ele foi desvirtuado durante a tramitação na Câmara dos Deputados e passou a tratar, não da cooperação, mas da divisão de competências.

O ponto que mais interessava ao Governo Federal é o que trata do licenciamento ambiental. Quando do lançamento do primeiro Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, incluiu o projeto como uma das medidas legislativas necessárias para “destravar” a instalação de obras de infraestrutura no país. O pressuposto – equivocado – era que o licenciamento ambiental demora muito porque haveria uma indefinição na legislação aplicável com relação a quem deve dar a autorização.

Com base nisso, a bancada governista da Câmara modificou o projeto para deixar bem claro quem cuida do quê. Cada um na sua caixinha. Atuar em sinergia tornou-se algo secundário. Mas não foi só isso. Aproveitando-se do interesse do governo em aprovar a medida, que precisava de quórum qualificado por se tratar de lei complementar, a bancada ruralista barganhou seu apoio em troca de duas coisas: acabar com a competência do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para definir regras em matéria ambiental e diminuir o poder do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Sustentáveis (Ibama) em fiscalizar e autuar desmatamento ilegal. O objetivo dos ruralistas foi alcançado. O projeto aprovado na Câmara proibia o Ibama de embargar desmatamentos ilegais, já que essa competência seria exclusivamente dos Estados.

O projeto aprovado no Senado, no entanto, modificou esse ponto. Define que qualquer órgão que tiver conhecimento de uma ilegalidade pode atuar imediatamente para fazer cessar o dano ambiental. Se o órgão originalmente competente por fiscalizar resolver atuar e aplicar outra sanção administrativa, vale esta. Ou seja, se o Ibama aplicar uma multa por desmatamento ilegal e depois o órgão estadual vier e aplicar uma multa diferente, vale esta. Mas ele terá que explicar o porquê.

Apesar dessa melhoria, a lei aprovada está muito aquém daquilo que poderia ser. Não cria mecanismos para a ação conjunta entre União, Estados e Municípios e não estimula o federalismo cooperativo. E ainda traz regras de sentido duvidoso. Diz, por exemplo, que cabe à União licenciar empreendimentos em Terras Indígenas, mas nada fala sobre obras que, mesmo que localizadas fora de seus territórios, têm impactos sobre elas. Deixa a entender que caberá aos Estados ou Municípios cuidarem do assunto, o que, muitas vezes, pode ser problemático pelo histórico de preconceitos locais em relação aos povos indígenas. Imaginem o governo do Mato Grosso do Sul ou de Roraima licenciando uma obra que afeta uma terra Guarani ou Wapichana. Se eles tiverem órgão ambiental, mesmo que cometam irregularidades, não há a previsão de ação supletiva da União.

Consulta express

Mais grave do que esse projeto é o conjunto de medidas publicadas na sexta (28/10) para “acelerar” o licenciamento ambiental federal. A título de desburocratizar o processo, o que é desejável, elas reduzem o espaço para manifestação de populações indígenas e quilombolas afetadas por grandes obras, tornando a consulta prévia mera formalidade, na contramão do que vem sendo demandado pela sociedade (saiba mais).

Segundo a Portaria Interministerial 419, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares terão 90 dias para se manifestar a respeito da possibilidade de se conceder a licença ambiental para determinada obra. Se não se manifestarem nesse prazo, será considerado que autorizam a obra. No pacote de medidas, no entanto, não está nenhum edital de abertura de concurso público para contratar profissionais qualificados para que esses dois órgãos possam cumprir, com responsabilidade, o prazo estipulado.

A manifestação desses órgãos não pode se basear apenas no parecer técnico de alguns de seus funcionários. Segundo a Convenção 169 da OIT – e a própria Constituição brasileira – os indígenas e quilombolas devem ser consultados antes dessa decisão, para poderem influenciá-la. É improvável que 90 dias sejam suficientes para se realizar uma consulta adequada em grande parte dos casos, sobretudo porque é necessário antes ler o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima), organizar as reuniões e, sobretudo, combinar com os povos afetados como fazer esse debate, que é um processo, e não um evento. Como diz Luiz Brazão, indígena Baré do Rio Negro: se a consulta não ocorrer num prazo adequado, que permita aos indígenas entender e refletir sobre o assunto, “é como deixar a gente falando sozinho”.

Pelas novas regras, boa parte dos povos indígenas e quilombolas ficarão de fato falando sozinhos. Sobretudo porque nessa mesma portaria há uma tabelinha que define, segundo a distância, quando uma obra impacta ou não uma Terra Indígena ou quilombola. Uma rodovia só impacta terra indígena se estiver a menos de 40 km de distância. Isso se ela estiver na Amazônia, pois se estiver em outra parte do país a distância tem que ser de até 15 km. De acordo com as novas normas, pressupõe-se que um oleoduto que passe a seis quilômetros de distância de uma comunidade quilombola que não cause impacto sobre ela, mesmo que cruze o rio que a abastece com água e comida. Nesse caso, não haverá qualquer estudo sobre os impactos que um eventual – e possível – vazamento de óleo terá sobre essa comunidade e tampouco haverá qualquer plano de contingência. Os quilombolas nada poderão dizer sobre a existência de um oleoduto nas cabeceiras do rio que banha suas terras. Belo Monte, por exemplo, não afetaria terras indígenas pelo critério constante da normativa e a Funai não teria nada a dizer.

Há, no entanto, uma exceção. Pode-se, de acordo com o caso concreto, alterar a distância para caracterizar que determinada obra impacta uma comunidade indígena ou quilombola, mesmo que mais distante do que diz a portaria. Desde que, no entanto, o empreendedor esteja de acordo. Isso diz tudo.

50 anos da "República dos Villas Bôas"

Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, 14/04/2011 

O Parque Indígena do Xingu foi criado depois de uma luta de quase dez anos. O primeiro anteprojeto de criação do parque foi apresentado em 1952, no governo Vargas.
Três eram seus objetivos principais: preparar as comunidades indígenas para o contato inevitável com a nossa sociedade; amenizar a pressão que a sociedade exercia sobre essas comunidades, evitando um contato brusco, com consequências desastrosas (como, mais tarde, foi confirmado em outras regiões); e preservar as condições necessárias de fauna e flora, garantindo que as comunidades xinguanas seguissem mantendo seu modo de vida, indissociável da terra.
O anteprojeto foi formalmente apresentado ao presidente Getulio Vargas pela comitiva liderada pelo vice-presidente Café Filho. Dela participaram grandes nomes, que foram fundamentais para o projeto e que meu pai, Orlando Villas Bôas, sempre fazia questão de mencionar: Noel Nutels, médico sanitarista; José Maria da Gama Malcher, presidente do Serviço de Proteção ao Índio (SPI); brigadeiro Raimundo Vasconcelos Aboim; dra. Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional; o jornalista Jorge Ferreira e os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro.
No entanto, o parque não sensibilizou Vargas. Meu pai contava assim esse episódio: "Sua excelência, de mãos às costas, cenho cerrado, ouviu a proposta e só não se tornou mais sisudo porque foi obrigado a abrir um largo sorriso diante de uma irreverência inteligente "desafogadora" do Noel Nutels".
Juscelino Kubitschek também se mostrou sensível à ideia de criação do parque, mais até do que Getulio Vargas, mas teria confessado que não teria força política para criá-lo.
Em 1961, por decreto, Jânio Quadros, em sua breve passagem pela Presidência, criou, num de seus primeiros atos, o Parque do Xingu, convencido da importância da criação de uma reserva para abrigar as populações indígenas. Por que por decreto? Porque o projeto jamais passaria pelo Congresso Nacional, já que contrariava interesses econômicos, principalmente, claro, do Estado do Mato Grosso.
A criação do parque não foi um fato isolado: a política indigenista brasileira tomou outro rumo, diferente daquele da política do marechal Rondon, "pai" do indigenismo brasileiro. Ficou claro, com a criação do parque, que, para garantir a sobrevivência dos indígenas, seria preciso garantir suas terras, de forma que o índio seguisse vivendo em sua cultura e organização social, em equilíbrio com a natureza.
Para os irmãos Villas Bôas, a política indigenista deveria se apoiar em duas máximas, simples e concretas: primeiro, o índio só sobrevive na própria cultura; segundo, não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje… como também não havia meio século atrás.
No parque, a política indigenista dos Villas Bôas pode ser implantada tal como a conceberam, proporcionando ao índio a proteção necessária que o preparasse para o choque inevitável com a nossa sociedade. Cumpriu a sua função.
As ameaças que o índio, não só o xinguano, enfrenta não são novas, como provam políticas indigenistas de governos passados. O famoso Plano de Integração Nacional, do presidente Médici, por exemplo, tinha duas diretrizes em relação ao índio: integrá-los o mais rápido possível à economia de mercado e impedir que constituíssem um obstáculo ao desenvolvimento do país.
Mas o Parque Indígena do Xingu, que celebra 50 anos hoje, como dizia o imortal Antonio Callado, é criação amorosa e, portanto, dura muito, ou talvez nunca acabe; assim é "a República dos Irmãos Villas Bôas", a mais importante reserva indígena do continente americano e o mais belo mosaico linguístico-cultural do mundo de acordo com a Unesco.
NOEL VILLAS BÔAS, 35, formado em direito e filosofia, é filho do sertanista Orlando Villas Bôas, um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Foi membro do conselho indigenista da Funai por dois mandatos (de 2000 a 2004).

Impactos das mudanças climáticas na Amazônia podem inviabilizar Belo Monte

Belo Monte, um empreendimento hidrelétrico que consumirá mais de R$ 20 bilhões para sua construção, poderá no mais drástico dos cenários de alterações climáticas perder mais de 80% de sua receita anual até 2050, como resultado de uma diminuição da vazão do Rio Xingu.

É isso que apontam dados preliminares de um estudo em desenvolvimento pelo WWF-Brasil, em parceria HSBC Climate Partnership. Técnicos especialistas em hidrologia e mudanças climáticas estão analisando a vulnerabilidade climática da produção de eletricidade na região Norte do país com enfoque em alguns grandes empreendimentos como a usina hidrelétrica de Belo Monte.

"As prováveis mudanças na vazão do rio Xingu, provocadas pelas alterações climáticas, colocarão em risco a viabilidade da usina de Belo Monte", afirmou Carlos Rittl, coordenador do Programa de Mudanças Climáticas e Energia do WWF-Brasil. "Belo Monte pode gerar muito menos energia do que o previsto e muito menos receitas do que o esperado, tornando-se um fracasso financeiro", acrescentou.

"Os altos custos sociais e ambientais, aliados aos riscos financeiros, deveriam levar o Governo Brasileiro a uma ampla reflexão sobre a viabilidade da obra", concluiu Rittl.

O estudo, a ser lançado ainda este ano, considerou 4 cenários de emissões futuras estabelecidos pelo IPCC – A1, A2, B1 e B2 – cada qual descrevendo um futuro possível para a humanidade e a curva de emissões globais resultantes. A aplicação de modelos climáticos dentre os mais robustos existentes, como o HadCM3 do Hadley Centre (Reino Unido) ou o ECHam4 do Max-Planck-Institute für Meteorologie (Alemanha), aos quatro cenários permite identificar a possibilidade de uma diminuição significativa na vazão da bacia do rio Xingu até 2050.

Apesar de certa variabilidade nos resultados – alguns poucos mostram ganhos de receita que chegam a 4% até 2050, enquanto outros mostram uma queda bruta na receita chegando a quase 90% -, uma forte tendência é evidente: as perdas podem variar entre 4 e 10% da receita anual da usina até 2050.   

De acordo com Carlos Alberto de Mattos Scaramuzza, superintendente de Conservação do WWF-Brasil, as variações climáticas futuras não estão sendo incorporadas da forma devida no planejamento energético e na análise de viabilidade de projetos hidrelétricos na Amazônia Brasileira.

"Tivemos duas secas muito severas na Amazônia em menos de 10 anos, em 2005 e 2010. Temos de tirar lições destes eventos climáticos extremos e, de uma vez por todas, inserir a variável climática no planejamento da expansão da produção de energia no país. Com isso, ficaria ainda mais clara a atratividade da eficiência energética e de outras energias renováveis não-convencionais, como a energia eólica, a solar e a de biomassa. Havendo investimentos, estas alternativas podem gerar energia suficiente para atender as necessidades de crescimento econômico do Brasil, minimizando os riscos climáticos dos empreendimentos hidrelétricos", concluiu Scaramuzza.

"O governo tende a considerar os projetos hidrelétricos um a um, o que é ineficiente sob aspectos econômicos, sociais e ambientais", afirmou Denise Hamú, Secretária-Geral do WWF-Brasil.

"Para viabilizar a Usina de Belo Monte, os riscos da obra foram socializadas para atrair investidores. Os dados preliminares deste estudo indicam que os riscos financeiros podem ser ainda maiores do que aqueles originalmente previstos e isto torna evidente a necessidade de um olhar macro sobre o potencial, as vantagens e os riscos sociais e ambientais associados à expansão da produção de energia", conclui Hamú.

O WWF-Brasil considera fundamental que a expansão da produção de energia hidrelétrica seja feita a partir de um olhar sobre toda a bacia Amazônica. É necessária uma análise integrada de cada bacia hidrográfica, considerando-se os riscos sociais e ambientais em toda a extensão dos rios – que são sistemas naturais contínuos – e não apenas das áreas de entorno dos projetos hidrelétricos. 

Nota sobre os cenários climáticos do IPCC

O cenário A1 descreve um mundo de rápido crescimento econômico com uma população que atinge seu pico na metade do século e a introdução de tecnologias novas e mais eficientes. Nele, existe uma convergência substancial entre regiões evidenciada por uma crescente interação social e cultural, redução das diferenças regionais e das rendas per capita.

O cenário A2 descreve um mundo muito heterogêneo onde a renda per capita e o desenvolvimento tecnológico convergem de maneira mais fragmentada e lenta. Com identidades regionais mais fortes, as taxas de fecundidade diminuem mais lentamente, o que resulta em crescimento contínuo da população.

O cenário B1 descreve um mundo mais integrado e ambientalmente correto. O crescimento econômico é tão forte quanto no cenário A1, mas caracterizado por uma transição mais profunda em direção a uma economia baseada em serviços e informação. O foco para a estabilidade econômica, social e ambiental é global.

O cenário B2 descreve um mundo mais heterogêneo, porém mais sustentável. É um cenário intermediário com crescimento contínuo da população, crescimento econômico médio, mudanças tecnológicas menos rápidas e mais fragmentadas e foco em soluções locais para a estabilidade econômica, social e ambiental.

Jirau de hoje pode ser Belo Monte de amanhã


Esta semana, o canteiro de obras da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, virou um campo de batalhas; depois um inferno em chamas; depois um deserto de cinzas e aço retorcido.

Jirau concentra todos os problemas possíveis: em ritmo descontrolado, trouxe à região o “desenvolvimento” da prostituição, do uso de drogas entre jovens pescadores e ribeirinhos, da especulação imobiliária, da elevação dos preços dos alimentos, das doenças sem atendimento, e de violências de todos os tipos.

Em Julho de 2010, as populações atingidas pela obra já protestavam contra o não cumprimento de condicionantes, desrespeito e irregularidades no processo de desapropriação/expulsão de suas áreas, fraudes nas indenizações, etc.

Em outubro, mais de um ano após o início das obras, os ministérios públicos Federal e Estadual de Rondônia impetraram uma ação civil pública contra o Estado, o município de Porto Velho, a União, o Ibama, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Energia Sustentável do Brasil (ESBR, empresa responsável pelas obras), por descumprimento de condicionantes nas áreas de saúde, educação, transporte e segurança.

Até hoje, 70% não saíram do papel.

Trabalho escravo

Sobre as condições dos trabalhadores no canteiro de obras, em 2009 trinta e oito pessoas foram libertadas de trabalho análogo à escravidão em uma prestadora de serviço da usina.

Em 2010, uma nova fiscalização em Jirau produziu 330 autos de infração por crimes trabalhistas.

Nos distúrbios ocorridos esta semana, pipocaram denúncias contra a construtora Camargo Correia: maus tratos, irregularidades no pagamento, não-pagamento de horas extra, ameaças, etc. Foi o combustível que fez a bomba explodir.

Depois, o que se viu foram milhares de trabalhadores vagando perdidos, esfomeados, desamparados e desesperados, sem dinheiro, roupas, sem ter pra onde ir ou onde dormir.

Por que?

Porque mais de 70% dos barrageiros de Jirau são de outros estados, de acordo com a Assembléia Legislativa de RO. Os empregos prometidos para a região viraram fumaça.

Desenvolvimento econômico?

Este mesmo “desenvolvimento” imposto ao rio Madeira ameaça agora as bacias do Xingu, do Tapajós e do Teles Pires no Pará e no Mato Grosso.

O projeto de Belo Monte, o mais avançado nestes rios, segue com assustadora semelhança os passos de Jirau: licença de instalação parcial ilegal, autorizações de desmatamento, descumprimento acintoso das condicionantes, ameaças a ribeirinhos e pequenos agricultores para que vendam suas terras, desrespeito absoluto aos direitos constitucionais das populações indígenas, e migração acelerada e desordenada de trabalhadores de fora.

Em fevereiro, representantes das bacias do Madeira, Xingu, Tapajós e Teles Pires, que compõem a Aliança dos Rios da Amazônia, se reuniram com o governo, que prometeu abrir o diálogo com os movimentos.

Nenhuma sinalização de que este diálogo realmente ocorrerá foi dada até agora, mais de um mês depois.

Nos solidarizamos profundamente com todos que sofreram e ainda sofrerão com as violências de Jirau.

Nos solidarizamos com os trabalhadores, com as populações atingidas, com as populações das comunidades e das cidades da região.

Mas Jirau é um sinal de alerta ao governo – principal responsável, em última instância, por tudo que acontece nas obras do PAC – e seus empresários: as violações sistemáticas de direitos das populações mais cedo ou mais tarde levam à reação.

Não há desmandos que ficam impunes, nem ameaças que permaneçam sem respostas

  • Aliança dos Rios da Amazônia
  • Movimento Xingu Vivo para Sempre
  • Aliança Tapajós Vivo
  • Movimento Rio Madeiro Vivo
  • Movimento Teles Pires Vivo

O que vale, para este governo, a palavra dada?

No dia 8 de fevereiro de 2011, dez lideranças e caciques da Bacia do Xingu fomos recebidos no Palácio do Planalto em audiência oficial.

Em nome de centenas de indígenas e ribeirinhos que aguardavam do lado de fora, e de 604.317 cidadãos e cidadãs brasileiros e do mundo, que declararam publicamente, em abaixo-assinados, seu repúdio à hidrelétrica de Belo Monte, entregamos ao governo um documento (veja o PDF) com denúncias sobre as múltiplas ilegalidades do processo de licenciamento da usina, e apresentamos as nossas propostas para uma nova política energética para o Brasil.

Ao nos receber em nome da presidente Dilma Rousseff, Rogério Sotilli, secretário executivo – e, naquele momento, ministro interino – da Secretaria Geral da Presidência, afirmou textualmente:

“Eu vou levar à presidente Dilma o relato deste encontro com vocês, que eu prezo talvez como um dos mais importantes da minha relação política no governo, onde estou desde o início do governo Lula. Eu vou levar esta carta, este manifesto de vocês (…). O que eu posso adiantar é que a Secretaria Geral da Presidência da República tem essa permissão de dialogar com a sociedade civil. E isso nós vamos assumir: que a partir de hoje esse diálogo vai existir. (…) Então nós vamos fazer esse debate interno, nós vamos dar o retorno para vocês do que a gente pode construir a partir de agora, para fazer esse debate com uma participação muito maior, em cima daquilo que vocês esperam”.

(confira o vídeo com o depoimento completo)

Passado quase um mês – período em que perdemos a conta das vezes que ligamos para a Secretaria Geral da Presidência para perguntar sobre os encaminhamentos -, não houve nenhuma sinalização de que o governo pretende cumprir o compromisso de se manifestar sobre o documento recebido.

Pelo contrario, neste período os Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente reafirmaram os planos de breve início dos desmatamentos para as obras de Belo Monte, e deram novas autorizações neste sentido.

Pior: no dia 25 de fevereiro, a Justiça Federal confirmou, através de uma liminar, a nossa denúncia de que o licenciamento das obras de Belo Monte é ilegal.

Mas nem este fato fez com que o governo mostrasse a dignidade de cumprir a promessa de diálogo conosco. Lançando mão da Advocacia Geral da União (AGU), recorreu da liminar, derrubada no dia 3 de março, e impôs sua vontade “na marra”.

Qual é, afinal, a concepção de “diálogo” deste governo?

E a concepção de palavra dada, compromisso assumido, qual é?

Depende do volume da carteira e das contas bancárias?

Movimento Xingu Vivo para Sempre
Aliança dos Rios da Amazônia

Sentença Absolutória Imutável: Segurança Jurídica ou Perpetuação de Injustiças?

O covarde assassinato no dia 12 de fevereiro de 2005 da Irmã Dorothy Mae Stang, 73 anos, missionária americana naturalizada brasileira, ganhou repercussão internacional, provocando uma mobilização popular para clamar por medidas mais efetivas do governo federal e do estado do Pará na cessação da violência e para a proteção da Amazônia e seus habitantes, que dependem dela para sobreviver e, principalmente, garantir a segurança das pessoas que trabalham contra a destruição que assola as matas e contra os fazendeiros da região que a provocam.

Dorothy atuava há 20 anos no trabalho com camponeses e na defesa dos direitos humanos. Naquele dia 12 de fevereiro, nas proximidades do município de Anapu, interior do Pará, após ser abordada por dois pistoleiros e questionada se portava alguma arma, irmã Dorothy leu uma passagem da Bíblia e em seguida foi executada com seis tiros que lhe tiraram a vida.

A justiça condenou os executores, Rayfran das Neves Sales, o "Fogoió", e Clodoaldo Carlos Batista, o "Eduardo", a 27 e 17 anos de prisão, respectivamente, pelo assassinato da missionária. Amair Feijoli da Cunha, o "Tato", foi condenado a 27 anos de prisão como intermediário do assassinato, mas teve a pena reduzida por colaborar com o processo.

Em maio de 2007, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, foi condenado a 30 anos de reclusão em regime fechado, pela acusação de ser o mandante do crime.

Como previa a legislação brasileira, por terem sido condenados a mais de 20 anos de reclusão, Rayfran e Vitalmiro foram submetidos a um novo julgamento. O acusado de executar a irmã foi condenado novamente, com a pena acrescida de mais um ano, porém durante seu depoimento procurou inocentar o fazendeiro Bida de ser o mandante do crime, alegando que se sentia “ameaçado” pela missionária, assumindo sozinho a autoria do crime.

O Júri, baseado apenas neste depoimento testemunhal (gif), inocentou o fazendeiro por cinco votos a dois, colocando-o imediatamente em liberdade.

A absolvição de Bida surpreendeu o país inteiro. A constatação da impunidade percorreu o país, causando manifestações de revolta em diversas esferas e principalmente da família.

O promotor Edson Souza, que atuou na acusação pelo Ministério Público, impetrou uma apelação pedindo novo julgamento, com a fundamentação de que a decisão dos jurados foi contrária às provas dos autos. A apelação deverá ser apreciada até o final do ano.

No primeiro julgamento o fazendeiro Bida foi condenado a 30 anos de reclusão em regime fechado e no segundo julgamento, absolvido. O duplo julgamento em um mesmo tribunal tornou-se incoerente com o princípio que está expresso no Código de Processo Penal,  de que a decisão do júri é soberana,  e com a completa inversão de veredicto, era necessário uma reforma na ordem jurídica que disciplina o procedimento do Tribunal do Júri. No dia 09 de junho de 2008, através da Lei 11.689, foi abolido o protesto por novo júri, corrigindo essa distorção. Essa lei,  além de regular o procedimento, torna mais acessíveis aos jurados os quesitos formulados, permitindo uma melhor decisão. Corrigida essa falha, voltamos ao caso da irmã Dorothy.

A apelação impetrada pelo promotor Edson Souza, segundo o Código, só pode versar sobre nulidades processuais após a pronúncia, quais sejam: se o juiz sentenciar contrariamente a lei ou decisão dos jurados e se for essa decisão contrária às provas dos autos. Se a apelação da acusação for acolhida, o julgamento de Bida será anulado e ele deverá ser submetido a novo julgamento. Mas, se a apelação não for acolhida ? Se o tribunal superior entender que os jurados agiram de acordo com a prova testemunhal? A sentença transitará em julgado, confirmando a decisão e tornando-a imutável. E se daqui a algum tempo surgirem provas irrefutáveis da participação de Vitalmiro Bastos na “encomenda” da morte da irmã Dorothy? O que poderá ser feito então?

A coisa julgada material torna-se definitiva fora do processo em que foi proferida para impedir uma nova persecutio criminis sobre o mesmo fato delituoso que constituiu objeto da decisão tornada preclusa e imutável em virtude da coisa julgada formal. Ao tornar imutável os efeitos da sentença, impossibilita o reexame do mérito da questão decidida.

É vedada a interposição de revisão criminal para desconstituir a sentença penal absolutória (revisão pro societate), sob pena de ofensa ao princípio da irretratabilidade dessas decisões, confirmadas pelo próprio art. 621 do CPP, que elenca somente “sentenças condenatórias”. É defeso também na revisão criminal impetrada pelo condenado agravar sua situação, proibindo a reformatio in pejus. Neste caso, a revisão criminal feita pelo condenado deve basear-se na existência de uma pretensão objetiva razoável. Após o processo findo (coisa julgada transitada em julgado), deve haver algum prejuízo ao condenado – erro in judicando ou erro in procedendo – que justifique o processo impugnativo. Quanto a possibilidade jurídica do pedido, por exemplo, existência de sentença condenatória e existência de alguma hipótese legal de cabimento, elencadas no art. 621 do CPP. Ampliando o conceito, deve haver sentença condenatória, transitada em julgado, insuscetível de recurso, que esteja impregnada de vícios (erro ou injustiça).

O impedimento de ação revisional pro societate e a principal razão que norteia aqueles que são contrários à possibilidade de cabimento desta revisão, é a preservação da segurança jurídica, da imutabilidade da sentença, que não pode estar, a cada momento, sob reexame, a ponto de tornar-se assunto ad eternum, afirmando que somente caberia quando em jogo a própria liberdade humana.

De toda a sorte não se pode negar que é possível a revisão, não só quando interessa ao acusado, mas também quando é favorável aos interesses da justiça, ou seja, quando, após o trânsito em julgado da sentença absolutória, descobrirem-se provas da responsabilidade criminal do condenado, ou então, que as provas produzidas em seu benefício e que fundamentaram a absolvição ou a extinção da punibilidade, revelaram-se falsas, como também quando pessoas arroladas como testemunhas prestarem falso testemunho, mesmo de livre vontade, e principalmente quando sob coação.
Nestes casos os interesses da coletividade devem prevalecer sobre os direitos individuais para preservar a paz social.

Não se pode duvidar que o objetivo do processo penal é de oferecer à sociedade a devida e esperada segurança e confiança na preservação da mesma. A supremacia do interesse público sobre o privado, que constitui um dos princípios da Administração Pública, também deve ser observada nas questões processuais penais. A justiça diz respeito a todos e, portanto, é crucial que ela esteja presente no dia a dia da coletividade. Nem sempre os conceitos contidos na Constituição, como dignidade de pessoa humana e outros, devem perpetuar situações que se tornem insustentáveis no meio social, provocando a sensação de impunidade.

A revisão pro societate, dentro deste contexto, seria necessária para que se alcançasse a verdadeira justiça e a almejada segurança de todos. É de suma importância que tenhamos em mente a verdadeira abrangência do termo "justiça", para podermos avaliar a importância da revisão de sentenças absolutórias, a fim de que haja, inclusive, um equilíbrio saudável para a vida social dos diversos direitos e garantias constitucionais, os quais, a propósito, não são absolutos.

Se a sentença condenatória pode ser revista em favor do condenado, porque não poderia ser, também, quando o interesse em jogo é da sociedade e da própria justiça? Se, por exemplo, o réu falsifica sua própria certidão de óbito visando a extinção da punibilidade, ou ainda, falsifica provas para obter sua absolvição, por que a s

entença que lhe foi favorável no processo não pode ser desconstituída através da revisão criminal?  No âmbito do Tribunal do Júri, poderia o condenado coagir testemunhas, financeira ou moralmente, para inocentá-lo? Esta sentença não deveria ser atacada por revisão criminal pelos parentes da vítima que sentiram traídos pelo Estado?

Desta forma, respeitando inúmeras opiniões em contrário, e com a prudência de que dentro da revisão criminal pro societate, também sejam exigidos os requisitos de admissibilidade, exatamente como para o condenado, principalmente nos casos excepcionais, naqueles crimes que provoquem verdadeira comoção social, em homenagem a justa retribuição pelo crime cometido, e em prol do fim da impunidade.

Somente o Ministério Público pode ser dotado de legitimidade, nos mesmos casos de liberdade de ação incondicionada, ou sendo legitimo que somente os familiares da vítima ou quem se sentir prejudicado diretamente pela absolvição do condenado, poderiam representar.

A sentença no processo de revisão nestes casos, deverá ser submetida ao Supremo Tribunal de Justiça, por tratar-se de matéria excepcional, e somente por voto unânime. Fato novo ou não apreciado no julgado é indispensável para propor a revisão.

Se assim não for possível, percebe-se também afronta a dignidade humana, estimula a impunidade e aumenta ainda mais a descrença nos valores de paz, justiça e esperança. O respeito à dignidade humana não significa deixar impune os culpados. É estarrecedor constatar, como no triste episódio da missionária, a impunidade que ainda ocorre nos limites nacionais.

É imprescindível que haja nova reforma no processo penal, para regular o procedimento da revisão em prol da sociedade, para que o Poder Judiciário seja visto como instituição comprometida com a verdade, elevando os índices de confiança da sociedade na segurança pública e na justiça.

Márcia Cruz Heofacker 
Acadêmica de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Bibliografia

CERONI, Carlos Roberto Barros. Revisão Criminal. Características, conseqüências e abrangência. 1ª ed. Ed. Juarez de Oliveira Ltda. São Paulo, 2005

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. III, 2ª ed. Ed. Millennium. Campinas/SP, 2003.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. Ed. Atlas. São Paulo, 2006.
Revistas e jornais sobre o assunto. Caso da Irmã Dorothy. 2005 a 2008.

— As opiniões e informações deste artigo são de inteira responsabilidade de seu autor(a) —

Raposa Serra do Sol: um lugar de direito

Texto originalmente publicado no site Terra Magazine.terra.com.br

Como ministra do Meio Ambiente enfrentei, ao lado dos ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Agrário, uma situação no Pará em que um grande grileiro apossou-se de 5 milhões de hectares na Terra do Meio. Conseguimos criar nessa área a maior estação ecológica do país, com 3 milhões e 800 mil hectares.

Vi a Polícia Federal implodir 86 pistas clandestinas usadas para tráfico de drogas e roubo de madeira. E nunca ninguém disse que aquele grileiro era ameaça à soberania nacional.

Mas os 18 mil índios de Roraima são assim considerados por alguns e muitas vezes tratados como se fossem mais estrangeiros do que os estrangeiros, porque sequer são reconhecidos como seres humanos em pé de igualdade com os demais.

Também é especial por acontecer num momento novo, no Brasil e no mundo, que exige conhecimento, sensibilidade e intuição para identificar, na massa impressionante de informações que nos chega, a profundidade dos fatos e processos, a conexão entre passado e futuro, enfim, o nosso espaço de escolhas reais, sejam individuais ou coletivas.

Faz parte desse espaço uma interpelação ética da qual não podem fugir nem os países desenvolvidos nem os em desenvolvimento, entre eles o Brasil. A Amazônia, com sua incomparável floresta tropical, sua biodiversidade e sua diversidade social, talvez seja o maior símbolo dessa interpelação.

Para os países desenvolvidos, a pergunta que se faz é sobre seu passado. Destruíram sua biodiversidade, arrasaram os povos originários dos lugares conquistados e provocaram, a partir da revolução industrial, alterações ambientais tão extensas que levaram à atual crise ambiental global, em cujo centro estão as mudanças climáticas.

Embora pareça paradoxal, nossa situação é bem melhor porque somos questionados sobre o futuro. Quando somos perguntados sobre o passado, estamos diante do quase irremediável.

Sobre o futuro, temos a chance de projetá-lo. Isso implica dizer o que vamos fazer com nossa biodiversidade, porque temos 20% das espécies vivas do planeta; com nossos recursos hídricos, porque temos 11% da água doce disponível, 80% dos quais na Amazônia; com a maior floresta tropical e com a maior diversidade cultural do mundo. O Brasil ainda tem cerca de 220 povos indígenas que falam mais de 200 línguas.

Essa é uma poderosa interpelação porque permite escolhas e, portanto, exige que estejamos à altura da oportunidade de optar. A discussão é de caráter civilizatório, não se esgota em circunstâncias ou polêmicas pontuais.

O Brasil é uma potência ambiental e humana e não pode se conformar em querer, séculos depois, a mesma trajetória que fez dos países desenvolvidos, ricos, porém com graves desequilíbrios ambientais. Nossa meta deve ser: desenvolvidos, porém por meio de caminhos diferentes.

A diferença está, em primeiro lugar, em aceitar a interpelação ética a que me referi, sem tentar lhe dar respostas banais e evasivas. A falsa polêmica em torno da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, resume a radicalidade exigida por essa interpelação.

Um exemplo: o mundo ocidental tem em Jerusalém um ponto de referência do sagrado para inúmeras religiões de matriz judaico-cristã. Ficaríamos chocados se alguém quisesse destruí-la e a defenderíamos como algo que é constituinte essencial de nossa cosmovisão. No entanto, em relação à cosmovisão dos índios, acha-se pouco relevante considerarem o Monte Roraima o lugar da origem do mundo.

Pode parecer, para quem acompanha o caso de Raposa Serra do Sol, que a criação da reserva indígena foi um procedimento autoritário e injusto, que desconsiderou direitos dos não-índios. Não é verdade.

A legislação brasileira define detalhadamente critérios para demarcação. O contraditório é garantido por decreto, exigindo que sejam anexados, ouvidos e examinados os argumentos contrários.

Manifestam-se proprietários de terra, grileiros, associações, sindicatos de trabalhadores ou patronais, prefeituras, órgãos públicos estaduais e federais, apresentando tudo o que considerem relevante. Por isso, a demarcação física das áreas leva, em geral, muitos anos, o que elimina quaisquer possibilidades de açodamento.

Roraima tem cerca de 400 mil habitantes num território de cerca de 225 mil quilômetros quadrados. A população rural não chega a 90 mil pessoas, das quais 46 mil são indígenas, ou seja, 52% do total, ocupando 47% das terras. Raposa Serra do Sol ocupa 7,7% da área do Estado e abriga 18 mil índios.

Por outro lado, seis rizicultores ocupam 14 mil hectares em terras da União. Em maio último, o Ibama autuou a fazenda Depósito, do prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, por ter aterrado duas lagoas e nascentes, além de margens de rios, e por ter desmatado áreas destinadas à preservação permanente e à reserva natural legal.

Em 1992, quando foi homologada a reserva Ianomami, seis vezes maior do que a Raposa Serra do Sol, houve muito estardalhaço, alimentado pela acusação de que isso representaria ameaça à soberania nacional e grave risco de internacionalização da Amazônia.

Passados 16 anos, a reserva abriga 15 mil índios em área de fronteira e não se tem notícia de que tenham causado qualquer dano à nossa soberania e muito menos que pretendam ser uma "nação indígena" separada do território brasileiro, como diziam à época os opositores da homologação.

Estamos perto da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação contínua de Raposa Serra do Sol. Será um grande desafio para a instituição e para todo o País, num momento que o mestre Boaventura de Souza Santos chama de bifurcação histórica. Diz ele que as decisões do STF condicionarão decisivamente o futuro do país, para o bem ou para o mal. Que esta decisão seja parte da resposta que devemos dar à interpelação ética sobre nosso futuro.

Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Por que a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol virou debate no STF?

Há mais de 30 anos os povos Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingaricó lutam pela demarcação de suas terras. A reivindicação destes povos está amparada pela Constituição Federal, em seu Artigo 231. Nesta terra, ao longo de mais três décadas, ocorreram dezenas de conflitos, onde lideranças indígenas foram assassinadas, torturadas, comunidades agredidas, malocas incendiadas, pessoas seqüestradas e terras devastadas por garimpos ilegais e pela ação predatória de centenas de invasores.

Em 2005, o governo federal decidiu pela homologação desta terra. Este ato do presidente brasileiro não foi uma concessão e nem atitude de benevolência. Foi o cumprimento de uma determinação constitucional, orientada e delimitada pelos resultados de longos anos de estudos e comprovações antropológicas, históricas, arqueológicas e sociológicas da ocupação tradicional dos povos indígenas naquele território. Também foi conseqüência de décadas de mobilizações e campanhas de solidariedade em âmbito nacional e internacional pela defesa dos direitos indígenas.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender a operação que finalmente retiraria os invasores das terras indígenas dos povos de Roraima, mostra que a “Suprema Corte Brasileira”, os considera uma ameaça à soberania nacional, ou, como disse o próprio presidente da República, “entraves ao desenvolvimento”. Estes povos que sistematicamente defenderam o território brasileiro, ali construíram suas histórias, enfrentaram as mais terríveis adversidades, os mais poderosos inimigos, inclusive da Pátria, para defender o Brasil de invasores clandestinos, de contrabandistas, narcotraficantes, mineradores, garimpeiros, de colonizadores genocidas, de gente sem pátria.

Quando se pensava que a demarcação de suas terras, trariam às comunidades indígenas, paz para continuar vivendo com dignidade de acordo com seus costumes e suas culturas específicas, o STF volta a debater a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. São preocupantes algumas declarações de importantes ministros daquele Corte:

“A demarcação desta terra trará problemas a soberania nacional” (ministro Celso de Mello).

“O que não pode é você criar um estado e depois criar uma reserva que tenha 50%, 60% do seu tamanho” (ministro Gilmar Mendes).

Por que só agora os ilustres ministros resolverem considerar que a demarcação da referida terra indígena traz perigo a soberania do país? Por que meia dúzia de arrozeiros, invasores da terra indígena, poderão produzir arroz se sobrepondo aos direitos constitucionais de mais de 18 mil indígenas? E ainda, por que os seis arrozeiros produzirão riquezas ao Estado e os povos indígenas, legítimos ocupantes daquela região, produzirão apenas prejuízos?

Quais os fundamentos legais para que ministros do STF qualifiquem os indígenas como entraves ao desenvolvimento e a soberania nacional, enquanto os invasores, praticantes de inúmeras ilegalidades constitucionais porque ocupam indevidamente e de má fé propriedade da União, além de praticarem crimes contra as comunidades indígenas e à sociedade de Roraima com a destruição de patrimônio público, como a queima de pontes, são considerados, pelos ilustres ministros, agentes do desenvolvimento econômico?

É preciso chamar a atenção dos ministros do STF para o fato de 3,1 milhões de hectares de terras na Amazônia Legal estarem nas mãos de estrangeiros. A informação é do próprio presidente do Incra, Rolf Hackbart. A área corresponde a 39 mil imóveis rurais, mas pode ser ainda maior. O avanço do agronegócio e os altos preços dos grãos têm chamado a atenção dos estrangeiros, o que tem aumentado a especulação imobiliária na região. Terras estariam sendo vendidas até pela internet. As terras indígenas, ao contrário, quando reconhecidas tornam-se patrimônio da União, cabendo aos índios apenas o seu usufruto.

Cabe ainda questionar, se por trás do debate instalado no STF sobre a demarcação de Raposa Serra do Sol, não há questões políticas envolvidas. Os direitos dos povos indígenas não estariam mais uma vez servindo de “moeda de troca” no jogo político nacional?

O caso Raposa Serra do Sol evidencia para quais dos lados penderão as análises e as interpretações de nossas autoridades. Ou aos Povos Indígenas portadores de direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e que a Constituição Federal lhes assegura, ou para os invasores, que apenas pretendem obter o lucro fácil em terras alheias, como é o caso dos invasores arrozeiros da terra Raposa Serra do Sol.

Porto Alegre (RS), 16 de abril de 2008.

Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi

Terra Indígena Raposa Serra do Sol: retirada dos invasores deve continuar

"O governo federal deu início, finalmente, ao processo de retirada definitiva dos invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, através da Operação Upatakon 3, da Polícia Federal.

Esta terra foi declarada como tradicionalmente ocupada pelos índios em 1998, através da Portaria MJ 820/98 e homologada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, em abril de 2005. Desde então, todos os ocupantes não-índios deveriam ter deixado aquela área.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), desde 2005, vem viabilizando a saída de dezenas de famílias, pequenos e médios ocupantes de boa fé, oferecendo áreas alternativas para cultivo em Roraima, com indenização por benfeitorias, créditos e apoio técnico para sua realocação e continuidade na produção, na própria região rural do estado.

Ocorre que um pequeno grupo de invasores, estes de má fé, cinco plantadores de arroz comandados por Paulo César Quartiero, nunca aceitou deixar a área. São de má fé desde o início, pois entraram na região, invadindo grandes extensões de terra, quando esta já estava em procedimento demarcatório como terra indígena. O governo federal chegou, recentemente, a oferecer a transferência de terras da União ao governo de Roraima, para que este procedesse a realocação que melhor conviesse aos arrozeiros, mas estes não aceitaram a negociação, desejando permanecer invadindo a terra indígena, como tal, também propriedade da União.

Os arrozeiros e seu líder ignoram a Constituição Federal, ignoram as leis, ignoram a demarcação e a homologação da terra indígena; ignoram todas as decisões que não lhes interessam, seja da presidência da República, seja do Supremo Tribunal Federal; ignoraram a Funai e os prazos dados por esta para sua saída da Raposa Serra do Sol; ignoram a Polícia Federal em Roraima.

Quando da homologação, em 2005, os arrozeiros criaram um bando para-militar, composto por jagunços armados, que aterrorizaram as comunidades indígenas; queimaram pontes, casas, salas de aula, equipamentos e carros; espancaram professores e alunos; ameaçaram de morte religiosos, comunidades inteiras e lideranças indígenas; destruíram patrimônio dos indígenas; seqüestraram funcionários públicos e seguiram impunes. Nos últimos anos, muitos indígenas foram espancados e ameaçados de morte pela quadrilha armada e financiada pelos arrozeiros, sem que ninguém fosse punido.

Paulo César Quartiero tem um tom racista e fascista em suas declarações públicas. Quando da homologação, chegou a pregar a “resistência armada” contra o governo Lula, em programas da Rádio Equatorial, de Boa Vista, aliás fundada pelo ex-membro do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), ex-deputado federal, já falecido, Moisés Lipnick. Este, aliás, por sua vez, foi ligado também à União Democrática Ruralista (UDR) e a seus líderes, mentores do famoso “Caso Lubeca” uma farsa eleitoral que contribuiu para inviabilizar a eleição para presidente da República de Lula, em 1989.

Paulo César Quartiero afirma que quer se articular com as Forças Armadas, para que elas “coloquem ordem em Roraima”, acusando a Polícia Federal de “incompetente”. Em declarações recentes disse, com orgulho, que comprou 8.000 estacas de madeira para ampliar sua invasão na terra indígena Raposa Serra do Sol.

Depois de detido pela Polícia Federal na última segunda-feira, dia 31 de março, acusado de quatro crimes, entre estes o de “estimular a desordem pública” e “desacato à autoridade”, foi solto sob fiança e, em liberdade, atacou a Polícia Federal e afirmou que vai continuar convocando a “resistência” contra o governo federal, dentro da área indígena.

Agora, o governador de Roraima, José Anchieta Junior, e políticos locais, afirmam que irão exigir do ministro da Justiça o fim da Operação Upatakon 3. O líder arrozeiro não faz por menos e afirma ao jornal “Folha de Boa Vista”, em 2 de abril, que “tudo deve voltar à estaca zero”, com relação à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, ou seja, exige simplesmente a sua anulação.

O Cimi vem a público exigir do governo federal a continuidade da Operação Upatakon 3, até a retirada completa desses invasores de má fé e, pior, criminosos e com concepções racistas e práticas terroristas, da terra indígena Raposa Serra do Sol. Tais pessoas sempre colocaram – e agora colocam mais ainda – em sério risco de vida as comunidades e lideranças indígenas, além de todos aqueles que prestam serviços àquelas comunidades.

A permanência dos arrozeiros e demais invasores na terra indígena Raposa Serra do Sol, além de ilegal, é uma afronta aos poderes legalmente constituídos, é uma agressão à democracia e aos direitos humanos e se constitui como um palco para demonstrações de apego ao fascismo, que não possui, há muito tempo, espaço no Estado de Direito, felizmente reconquistado pela sociedade brasileira."

Brasília, 02 de abril de 2008
Cimi – Conselho Indigenista Missionário