Não podemos infligir uma segunda derrota a eles

Para Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da UFRJ, os conflitos na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, são a prova do insuperável estranhamento que ainda temos em relação aos índios

Flávio Pinheiro e Laura Greenhalgh

Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é considerado “o” antropólogo da atualidade. Dele diz Claude Lévi-Strauss, seu colega e mentor, seguramente um dos maiores pensadores do século 20: “Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual”. Quem há de questionar o mestre frânces que, nos anos 50, sacudiu os pilares das ciências sociais com a publicação de Tristes Trópicos, relato de experiências com os índios brasileiros nos anos 30?

Pois muitos questionam Viveiros de Castro. E muitos o criticarão por esta entrevista ao caderno Aliás. Numa semana em que os conflitos entre índios e rizicultores (informalmente tratados de “arrozeiros”), lá na distante reserva Raposa Serra do Sol (Roraima), ganharam estridência e manchetes de jornais, o professor sai em defesa dos macuxis, wapixanas e outros grupos indígenas que habitam uma faixa de terra contínua de 1,7 milhão de hectares, palco de discórdias que sintetizam 500 anos de Brasil. A estridência ficou por conta de uma palestra do general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, feita no Clube Militar do Rio de Janeiro. O general foi contundente: disse que a política indigenista é lamentável e caótica, ganhando imediata adesão de seus pares. Augusto Heleno, que chefiou a missão brasileira no Haiti, também bateu pesado ao reagir contra a decisão da Justiça que determina a saída dos não-índios da reserva: “Como um brasileiro está impedido de entrar numa terra porque ela é indígena? Isso não entra na minha cabeça.”

Também não entra na cabeça de Viveiros de Castro que os indígenas possam ser vistos como ameaça à soberania nacional. Ao contrário, entende que eles contribuem com a soberania. Atribui tanta polêmica ao alto grau de desinformação em torno das reservas existentes no País e, em particular, da Raposa Serra do Sol. “As terras não são dos índios, mas da União. Eles têm o usufruto, o que é bem diferente. Já os arrozeiros querem a propriedade.” O entrevistado contesta números, analisa o modelo de colonização da Amazônia e tenta desfazer discursos que, na sua opinião, são alarmistas. Mas é condescendente com o general: “Ele está sendo usado neste conflito. É claro que o Exército tem de atuar lá, defendendo nossas fronteiras. Mas o que está em jogo são os interesses em torno de uma questão fundiária”.

Ex-professor da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, da Universidade de Chicago e da Universidade de Cambridge, Viveiros de Castro é autor de vários livros, entre eles, Arawete, os Deuses Canibais (Zahar), que resulta de pesquisa de campo com índios do Pará, e A Inconstância da Alma Selvagem (Cosac & Naify), uma coletânea de ensaios que revela sua principal contribuição para a antropologia. Trata-se do “perspectivismo amazônico”, a proposição teórica que guia todas as suas formulações.

Leia a entrevista no site do jornal O Estado de S.Paulo >

Washington Novaes : Os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo

Para Washington Novaes, jovens e velhos vivem conflito latente no Xingu. O jornalista destaca a circulação de dinheiro nas comunidades como o grande fator de perturbação no cotidiano do Parque Indígena do Xingu e diz que existe um conflito enunciado, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações.

Novaes retratou o Xingu numa série de 11 documentários, gravada em 1984. Voltou à região em 2005 para documentar as mudanças nos grupos de cinco povos que havia visitado – Kuikuro, Kayapó (no caso, os Metuktire), Panará (antes conhecidos como Kren-Akrore), Waurá e Yawalapiti. No último fim de semana, os Kuikuro da Aldeia Ipatse e fizeram uma festa para, entre outros motivos, celebrar o lançamento de seu novo vídeo, com estréia na TV marcada para domingo (29).

Em entrevista à Agência Brasil, o jornalista aponta as razões pelas quais diz que os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo. 

O que mudou no Xingu nessas duas décadas?
Eles ainda têm aquele tempo que escorre mais devagar, mas com muitas transformações. Praticamente todas as casas, em várias aldeias, têm antena parabólica, então, quando têm combustível para o gerador, eles vêem Jornal Nacional, novela, jogos de futebol… Os jovens gostam muito de dançar forró, jogar futebol. Agora, talvez a transformação mais funda seja que antigamente não havia dinheiro nas aldeias, não tinha monetarização na cultura. E, a partir desse desejo de ter as nossas tecnologias, de ter televisão, de ter DVD, de ter gravador, de ter câmara de filmagem, trator, barco com motor, foi preciso que passassem a produzir dinheiro. Seja pelas associações de cada aldeia fazendo apresentações de suas danças e cantos fora, seja recebendo de direitos de imagem em filmagens… Também há, em várias aldeias, muitos velhos recebendo aposentadoria. E um salário mínimo é uma renda grande nesses lugares.
Outras pessoas tentam com a produção de artesanato. Os velhos dizem que os jovens não querem mais viver do modo tradicional, querem comprar tudo. Querem ter roupa, tênis, óculos escuros. E aí querem passar o tempo inteiro fazendo artesanato, e não vão se dedicar às atividades tradicionais, como cultivar as roças para produzir comida. Outro ângulo, muito mais complicado, é que os jovens não querem aprender os cantos, as danças, que estão todos relacionados ao mundo dos espíritos.

A presença dos espíritos era uma das origens dessa imagem que o senhor usou, “terra mágica”, não?

Sim. No mundo dos índios a questão do espiritual é decisiva, esse lado é profundamente ligado ao cotidiano, porque tudo tem um espírito que é dono. Se o culto aos espíritos não acontece a vida social começa a perder sentido. Além disso, os jovens não querem ser pajés, que é um caminho cheio de sacrifícios e de perigos, um longo processo. Os Waurá, que em 1984 tinham 13 pajés, hoje têm três; os Kuikuro tinham mais de dez e hoje têm cinco. Os Yawalapiti só têm Sapaim, que está com mais de 70 anos. Já há discussão entre os Waurá sobre um curso para isso. Mas no caminho tradicional o pajé não escolhe, é escolhido. Pode ser por meio de uma picada de cobra, de um rodamoinho que entra na casa, ou de uma doença, ou nascer enrolado no cordão umbilical.

Antes da projeção na Aldeia Ipatse, o senhor disse que os índios alteraram para sempre sua maneira de ver o mundo. Como foi isso?

A nossa cultura, em geral, enxerga-os de uma forma muito limitada. E não olha as culturas indígenas pelo que elas têm de mais importante. Por exemplo: a organização social e política. Entre os índios que vivem ainda na força de sua tradição, o chefe não manda em ninguém. Ele é a pessoa que conhece a história, conhece a cultura, as tradições, e transmite isso para seu povo em cada situação. É o grande mediador de conflitos, o que fala melhor, e, por isso tudo, o que mais sofre. E não dá ordens porque não há delegação de poder, e sem delegação de poder não pode haver repressão, e sem isso não pode haver repressão de um grupo por outro grupo, ou de um indivíduo por outro. Isso aponta na direção das utopias, uma sociedade que não precisa ter poder. E proporciona uma vivência para nós quase inimagináveis: alguém nascer e morrer sem receber uma ordem sequer.

Se formos comparar…
Nossa cultura tenta promover a democracia da maioria e raramente consegue, enquanto eles têm no dia-a-dia a democracia do consenso. O índio, na força de sua cultura, é um ser absolutamente auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisa para viver – plantar, caçar, pescar, sabe fazer sua casa, fazer seu instrumento, fazer seus objetos de adorno, sua rede, sua esteira, sua canoa. Nasce e morre sem depender de ninguém para nada. Me impressionou ver crianças que não apanham por nada, ver o carinho para com elas, a liberdade e a alegria delas. E, por fim, a informação é aberta. O que um sabe todos podem saber. Ninguém se apropria da informação para transformar em poder. Conviver com isso, ver que é concreto, mudou minha visão: eu sei que outras coisas são possíveis. É preciso que a nossa sociedade aprenda a ver essas coisas.

E as duas outras características – a ausência de informação restrita e a autonomia? Mantêm-se?
Eles [os xinguanos] estão no ápice de um conflito entre os mais velhos e os mais novos que é já enunciado, mas não tem ainda desfecho. Os velhos vêem com enorme temor o que está acontecendo e sabem que a cultura não vai sobreviver se os jovens não tomarem outro caminho. Isso ainda não se traduz em mudanças práticas, por exemplo, na organização social. Os chefes são instituídos pelo caminho tradicional. Em quase todas essa culturas, são escolhidos pela hereditariedade. E isso não é questão de privilégio: um chefe precisa ser educado desde muito pequeno, precisa de convívio permanente com o pai. Quando acontece alguma perturbação nesse caminho, é complicado. Quando os Villas-Boas [indigenistas que fizeram contato com vários povos] se aproximaram dos Kuikuro, nenhum Kuikuro falava português. Eles conheciam o Nahu, de pai nahukwá e mãe kuikuro. Quando morreu o pai do Tabata e do Afukaká, que ainda eram meninos, os Villas-Boas nomearam, entre aspas, o Nahu chefe. Isso gerou conflitos quando Tabata e Afukaká foram chegando à idade adulta, porque eles eram herdeiros tradicionais. Isso seguiu até que o Nahu morreu. O filho dele, Jakalo, que é kuikuro, é cacique hoje.

E quanto à auto-suficiência?
Logo, logo, vai começar a ter [implicações concretas]. Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens. Eles vão perdendo a autonomia e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra. Uma esperança deles é que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos, das lendas, dos formatos tradicionais.

Além das questões culturais, o subtítulo de sua nova série de documentários, A Terra Ameaçada, tem a ver com o entorno do parque.
O Xingu, você vê, é uma ilha de vegetação e de rios limpos, cercado pelo desmatamento da soja, da agropecuária, por hidrelétricas, por garimpeiro, por madeireiro. Já está sendo fortemente afetado pelas mudanças. Há um aquecimento evidente, causado pelo desmatamento no entorno. Alguns dos rios já chegam com agrotóxico, com sedimentos resultantes da erosão nessas atividades, que não respeitam mata ciliar [às margens dos cursos dágua, e cuja conservação é obrigatória], não respeitam nada. Os peixes podem ser afetados pelas hidrelétricas, e peixe é um dos alimentos fundamentais ali, com a mandioca.

O Brasil tinha que ter visão estratégica. Dar-se conta nas suas políticas de que que é detentor do fator mais escasso no mundo, recursos e serviços natu

rais, e de que o índio é guardião deles. Estamos consumindo, no mundo, acima da capacidade de reposição da biosfera, e mudanças climáticas são o segundo problema crucial. Um país que tem uma dimensão continental, tem 12% da água superficial, tem um terço da biodiversidade, tem possibilidade de uma matriz energética limpa e continua atado a um modelo que vigora há 500 anos, de exportar baratinho produtos primários e grãos para os países centrais…

Nesse contexto, como o senhor vê a expansão do biodiesel e do etanol?
As biomassas para produzir energia limpa, que podem ser uma das soluções [no combate ao aquecimento], ameaçam se tornar um grave problema. O álcool, por exemplo: é evidente que precisa haver um zoneamento para saber onde você pode plantar sem danos. É preciso também estabelecer regras, como alternação de culturas, para não ter monoculturas extensas. Juntar isso com a agricultura familiar, para ela não ser despejada dos lugares que ocupa, como já aconteceu no estado de São Paulo. Criar cooperativas para fornecerem cana, ou soja, ou pinhão-manso, ou a matéria-prima que for, para as usinas centrais, mas não transformá-los em fornecedores com preços aviltados. É preciso impedir as queimadas. Criar regras para remuneração dos trabalhadores, que hoje são quase escravos. E não deve ser essa a única alternativa. O Brasil tem altas possibilidades na energia eólica, na energia das marés, na solar. Um estudo mostra que se você ocupasse um quarto da Usina de Itaipu com placas de energia solar produziria o mesmo que a usina. E o Xingu não escapa a essa regra. O entorno precisa ser preservado, ele é uma preciosidade. São mais de 20 mil quilômetros quadrados praticamente intactos. Isso é quase uma Bélgica. Minha tese é que o Xingu deveria ser reconhecido como patrimônio histórico, ambiental e cultural da humanidade.
Levantamento do ano passado mostra bem isso – o baixo índice de desmatamento em boa parte da terras indígenas. Por outro lado, pesquisadores têm alertado para a insustentabilidade de algumas atividades indígenas, como a a caça para arte plumária, em muitos locais. É possível pensar numa limitação, algum tipo de manejo?
De fato, diversos estudos mostram que o formato mais eficaz para a conservação da biodiversidade está nas áreas indígenas. Não está nem nos parques, nas áreas fechadas, nem nas áreas de proteção permanente. As áreas indígenas significam hoje 23% da Amazônia. Mas é preciso pensar nessas questões. No Xingu mesmo, com o uso de caramujos em colares para a venda, eles já estão escasseando. Os Kuikuro estão fazendo intercâmbio com os Pataxó, fornecendo penas para eles. É evidente que isso vai levar a um uso excessivo tanto de caramujos como de aves. Os mais velhos dizem que o centro de preocupação deles está na educação. Desde que se implantou nas aldeias a educação bilíngüe, as crianças e os jovens passaram a aprender a língua portuguesa. A televisão se tornou uma presença muito forte, e eles vão incorporando novos valores e formatos de viver. Esse assunto não está em discussão ainda no Ministério da Educação, nem na Funai, em lugar nenhum. Não sei se se deve interromper [o ensino de português], mas acho que se deve discutir. É possível também que se pense uma política estabelecendo uma uma compensação para não haver um uso excessivo de recursos. Isso tudo precisa ser discutido com urgência.

Como o senhor mesmo apontou, os índios mais jovens, especialmente, manifestam desejo de ter produtos da sociedade de consumo e integrar-se mais aos brancos. Como lidar com isso? É possível um processo mais equilibrado?
Não sei. Eu tenho minhas dúvidas de que simplesmente pela apropriação da tecnologia de documentação em vídeo ou em áudio isso aconteça. Há algumas outras coisas sendo feitas, como o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais dos Yaualapiti, com apoio de uma historiadora e uma lingüista. Os antropólogos dizem que as sociedades indígenas são sempre capazes de absorver muitas coisas das outras culturas sem perder a sua natureza. Eu torço para que seja assim, mas, acompanhando há mais de 20 anos o processo no Xingu, fico com o coração apertado, me perguntando se elas vão ser capazes de resistir.

Que papel, a seu ver, o governo deve ter diante dessas questões?
Acho, em primeiro lugar, o país ter uma estratégia que valorize essas coisas que existem no Xingu. Isso precisa ter desdobramentos na educação, na demarcação de terras, na proteção das áreas. Pelo que vejo, praticamente nada nesse sentido está sendo feito. A área que tenho visto atuar é a da saúde. A Funasa [Fundação Nacional de Saúde] tem tido uma atuação muito forte com vacinação, e isso reduziu muito a mortalidade infantil, e com outras ações que eu me pergunto se são um bom caminho ou não, como colocar poços artesianos e água em cada casa, o que muda também o modo de viver.

O senhor pagou às aldeias por direitos de imagem. Acha que essa deveria ser a prática sempre?

Em 1984, quando consegui autorização da Funai [Fundação Nacional do Índio] para visitar todas essas áreas, uma parte da legislação a cumprir era uma portaria da Funai que estabelecia pagamento para qualquer documentação em área indígena. Só que isso nunca havia sido cumprido. Foi conversado com eles e com a Funai sobre o que seria justo. Foi depositado antes de irmos para lá, e criou um precedente principalmente para televisões do exterior. Agora houve negociação prévia, com participação da Funai, e eles estabeleceram R$ 30 mil por aldeia. Os Kuikuro me mostraram um caminhão e disseram que foi comprado com esse dinheiro. Eu sei que isso é uma contradição, um formato de entrada de dinheiro. Eu tento fazer com que o problema não seja maior fazendo que esse dinheiro vá para a associação da aldeia, e seja usado para acomunidade toda. Numa conversa com índios sobre essa questão, um deles brincou: “Você que ensinou o caminho…”

A série original, Xingu – A Terra Mágica, chegou a ter 20 pontos de audiência. O senhor acha que ajudou a mudar, ainda que seja um pouquinho, o que os brasileiros pensam sobre os índios?

Eu quis mostrar o índio do nascimento à morte – como nasce, como é educado, adolescência, organização social e política, arte, relação homem-mulher… Cada um vai enxergar de uma forma, mas eu espero dar, com isso, alguma contribuição. Em 1986 encontrei o Darcy Ribeiro [um dos mais importantes antropólogos que o país já teve] na escada de um avião e ele me disse: “Você está contribuindo fortemente para mudar a imagem do índio brasileiro”. Agora, quando fui gravar na aldeia kuikuro, me chamaram na frente da casa dos homens [espaço simbólico de muitas aldeias] e falaram, Jakalo e Afukaká, coisas que me emocionaram muito. Jakalo disse que, antes, quando ia ao Aeroporto Santos Dumont, as pessoas batiam na boca, fazendo “U! U! U! U!” [de forma jocosa] e que hoje isso mudou. Talvez a televisão possa dar a sua grande contribuição mostrando o que essas culturas têm de fundamental. Nós não vamos voltar a ser índios, não temos competência para isso, mas essas sociedades podem apontar rumos.

Xingu enfrenta avanço de DSTs, diabetes e obesidade

De acordo com o médico sanitarista Douglas Rodrigues, o atendimento prestado pela Unifesp – iniciado em 1965 – faz do Xingu uma exceção positiva em relação ao panorama da saúde indígena no Brasil, mas não consegue avançar em ações de prevenção e promoção de saúde, e fica "correndo o tempo todo atrás das doenças". Ele afirma ainda que o convênio da universidade com a Funasa também sofre com atrasos nos repasses de recursos e que a fundação ainda não conseguiu adequar o modelo de atendimento às especificidades dos povos indígenas. Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Qual sua avaliação do sistema de saúde indígena atual?

Douglas Rodrigues – Eu vivi o tempo em que a Fundação Nacional de Índio (Funai) era a responsável pela saúde indígena e acompanhei a entrada em cena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a mudança a partir de 1999, com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os Dseis. Essa mudança foi boa, pois melhorou o acesso dos índios aos serviços de saúde. Os indicadores mostram isso, a mortalidade infantil diminuiu, ainda que a Funasa não tenha um sistema de informação confiável. O Sistema Único de Saúde (SUS) ter incluído a saúde indígena dentro de seu escopo foi também um grande avanço. Isso é inquestionável. Hoje existem propostas para a Funai reassumir o sistema. Acho que isso vai ser uma catástrofe, pois a Funai não tem estrutura nem quadros para isso e já mostrou ao longo dos anos que não consegue fazer. Quando o Ministério da Saúde assumiu o sistema, o orçamento da saúde indígena cresceu muito. Mas ter dinheiro, é importante dizer, é apenas o começo.

O que mais deve acontecer?

A Funasa não adequou sua cultura institucional, eles continuam trabalhando com os índios como no tempo que em que controlavam malária no meio do mato. Às vezes o pessoal da Funasa me pergunta quantos índios têm no Xingu para mandar cesta básica, e eu digo que não é assim que funciona. O refinamento do modelo, adequar o atendimento a cada área, isso não foi feito. Não dá para pasteurizar ações desde Brasília. E isso talvez implique mais pessoal preparado, formado para isso de forma multidisciplinar. E isso a Funasa não consegue fazer. Por que não consegue fazer? Primeiro porque a fundação não tem quadro, ela terceiriza tudo. E terceiriza do jeito que dá, meio assim: ‘com quem tiver eu faço’. Há poucas ONGs preparadas com experiência acumulada. E tem que capacitar as outras parceiras, como as associações indígenas. Senão não se cria competência técnica.

O que você quer dizer com adequar a cultura institucional?

Eles precisam entender que o trabalho de saúde indígena é muito complexo. São 400 mil índios aldeados no Brasil, mas cada mil são diferentes dos outros mil e estes dos outros 500 e por aí vai. As situações são muito distintas. Então os critérios comuns de saúde pública, como um médico para dois mil habitantes – que valem para cidades como São Paulo -, não servem ao Xingu, nem para o Dsei Yanomami, onde talvez seja necessário um médico para 500, 300 habitantes. Os índios são muito vulneráveis, estão em locais distantes e de difícil acesso.

Qual a mudança mais urgente?

O Estado brasileiro tem que possibilitar a gestão indígena do sistema. Como isso (a capacitação das associações indígenas) nunca foi feito, muitas associações simplesmente quebraram. Outra coisa é que as associações indígenas existem para defender os direitos dos índios, para brigar com o Estado por estes direitos. E o modelo atual as torna dependentes do Estado, do financiamento, e elas ficam com o rabo preso. Hoje o que você encontra nas coordenações regionais são ‘consultores’, muitas vezes apadrinhados políticos, e isso aumentou muito neste atual governo. O processo seletivo não é claro, falta transparência e os cargos são totalmente loteados. E com muita rotatividade, o que impede a criação de lastro e entendimento do trabalho. Cada um que entra quer reinventar a roda. Isso ocorre em todos os lugares, com raras exceções. O Xingu é uma delas, graças à presença da Unifesp, pela qual a gente tem como capacitar as pessoas, oferecer perspectivas de estudo e aprimoramento profissional.

A crise da saúde indígena também atinge o trabalho da Unifesp no Xingu?

A parte administrativa e financeira da Funasa está dissociada da gestão do sistema de saúde, então a burocracia é muito grande e impede que os recursos cheguem a tempo. Temos recorrentes pendências de pagamento, normalmente pendências burocráticas. No ano passado estávamos para fazer uma campanha de vacinação – o que fazemos 4 vezes por ano – e não tinha dinheiro. Quando reclamamos pela imprensa, a Funasa disse que tinha problema na prestação de conta. Mas eles não tinham nos avisado que problema era esse. Assim não ia resolver nunca. Três dias depois da nossa reclamação, saiu o dinheiro. Então quem tem poder fogo, espaço na mídia para pressionar, passa por umas dificuldades, mas acaba realizando o trabalho. Mas nossos problemas são insignificantes perto do que companheiros de outros lugares passam. O panorama do atendimento de saúde indígena no Brasil é muito desigual.

Qual a diferença?

O diferencial no Xingu é que tem uma universidade por trás, que atua na região há mais de 40 anos e que acumulou muito conhecimento sobre aquela população. Temos registros epidemiológicos desde 1965. E o atendimento sanitário no Xingu, além de ter por trás uma instituição forte e um programa consolidado em quatro décadas de trabalho, é apoiado diretamente pelos índios. Agora sei que em outras áreas, ONGs e associações indígenas ficam seis meses sem receber e não têm como trabalhar. E quando não tem dinheiro para salário, não tem também para gasolina, para motor, para remédio. E isso são as ações que chamamos de curativas. As de promoção de saúde, que são as que deveriam ser priorizadas neste modelo, nem chegam perto de acontecer.

O Xingu tem o melhor atendimento de saúde indígena no Brasil?

Em termos de modelo de atenção e de indicadores de saúde, o Xingu está entre os primeiros. O Xingu é parte da Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. O que fazemos lá eu nunca vi em outras áreas: damos cobertura de 97%, índice superior aos de muitas cidade brasileiras. Na verdade não temos muita informação das outras áreas, mas sei que no Rio Negro, por exemplo, as condições são muito piores do que no Xingu. Os Guarani de São Paulo, mesmo estando no estado mais rico e desenvolvido da União, estão em péssima situação. Por isso conseguimos olhar para frente, planejar ações, e não apenas apagar incêndios.

Qual deveria ser a prioridade, prevenção ou cura?

Tem que ter recurso para as duas coisas. A prevenção é fundamental para termos menos doenças lá na frente, mas em muitos momentos você precisa de recursos, humanos e financeiros, para cuidar das doenças que estão acontecendo na hora. Com o passar do tempo, as ações de promoção vão diminuindo este componente de doenças, até o momento ideal em que este componente fica pequeno e trabalhamos basicamente com prevenção. Mas na situação atual isso nunca vai acontecer, pois não há recursos para a promoção da saúde indígena. Então ficamos sempre apagando incêndio, correndo atrás da doença. E ainda tendo que escolher quais doenças tratar, pois muitas vezes só dá para atacar as que oferecem risco de vida.

Quais são os principais problemas de saúde na população xinguana?

O que vemos é que no Xingu há uma epidemia de câncer de colo de útero. Em abril deste ano operamos 21 mulheres xinguanas, com lesões graves, sendo que o número de mulheres sexualmente ativas no parque, que é
o grupo de risco para o HPV (vírus causador das lesões) não passa de 900. E já perdemos duas mulheres no Xingu por causa disso, pela demora nos diagnósticos, nas operações. E estamos para perder mais uma paciente. O câncer de colo de útero é uma doença emergente introduzida há uns quinze anos no parque, o que em termos de saúde pública é uma introdução recente. Quando eu comecei a trabalhar no Xingu, há 25 anos, uma gripe colocava um indivíduo adulto e forte na rede, com 39 graus de febre, o pulmão chiando. Era um agente agressor novo. Com o passar do tempo, os organismos vão ser adaptando às infecções e as manifestações clínicas deixam ser tão floridas, como falamos no jargão médico. Talvez isso esteja ocorrendo com o HPV. Por ser uma doença recente as mulheres indígenas estão tendo uma reação de defesa mais exacerbada, em um processo inflamatório que gera alterações celulares e que pode levar à lesão cancerosa. Daqui a 40 ou 50 anos a convivência da população com este agente infeccioso vai fazer com que mecanismos secundários de defesa atuem e não provoquem tantos casos de câncer. Queremos fazer uma pesquisa para confirmar essa impressão.

Ou seja, os índios do Xingu estão mais ameaçados por doenças, digamos, modernas, do que por enfermidades que prevaleciam há duas, três décadas, como tuberculose, gripe e malária?

Sim. O Xingu não é mais um lugar isolado, as pessoas entram e saem o tempo todo, o povo de lá está em permanente contato com a sociedade branca, e junto com o contato vem o contágio. Antes só se chegava lá de avião, os índios ficavam restritos à área. Hoje vai todo mundo de carro para todos os lados. Outra mudança importante é a monetarização das relações dentro do parque. Hoje há muitos índios assalariados no Xingu, seja pela Funai ou por outras instituições e projetos. Então diminuímos a incidência das doenças chamadas tradicionais, mas têm novas doenças surgindo, muitas ligadas a um estilo de vida mais sedentário e à alimentação. Antes a malária matava terrivelmente. Hoje você tem 30, 40 casos por ano. Até a década de oitenta essa quantidade acontecia a cada semana. Ao mesmo tempo, naquela época não havia praticamente casos de hipertensão arterial ou obesidade no Xingu, nem diabetes. Isso não é mais verdade. Só na área da aldeia NGoyvere e dos postos indígenas Pavuru e Diauarum temos quase 40 pessoas hipertensas, tendo que tomar remédios. Tivemos dois óbitos por acidente vascular cerebral, os primeiros da história do Xingu. Já temos dois ou três índios usando marca-passos, devido a cardiopatias conseqüentes de hipertensão arterial.

Quais os outros impactos desta mudança no estilo de vida dos índios do Xingu?

A mudança de hábito leva também a dois extremos: obesidade e desnutrição, principalmente nas grávidas, nas crianças e nos idosos. E a desnutrição em crianças simplesmente praticamente não existia. Hoje temos 15 a 20% das crianças menores de cinco anos com algum grau de desnutrição. No Xingu não temos casos graves, tirando uma ou outra exceção. Mas isso está avançando. E é intrigante. Como em aldeias cheias de alimentos tem um monte de criança desnutrida? A conclusão a que estamos chegando, a partir dos relatos dos próprios índios, é que isso tem a ver com mudança de hábitos relativos aos cuidados com as crianças. Por exemplo, uma comida especial. No Xingu, uma criança pequena não come uma série de coisas, é só um ou outro peixe que pode comer, ela se alimenta basicamente de caldos. Isso vem se perdendo. Os antigos Kaiabi nos contaram que antigamente as crianças andavam com uma cuiazinha cheia de farinha de peixe, para cima e para baixo, isso não tem mais. Além do mais, as roças estão diminuindo, a rapaziada está mais interessada nas coisas da cidade do que em abrir roça. Quer mais arrumar trabalho para poder comprar arroz e feijão.

Outra coisa que está diminuindo ou mesmo acabando no Xingu é o intervalo interpartal, o que chamamos de ‘couvade’. O período durante o qual o casal não mantém relações sexuais, que entre os índios é de um a dois anos. Exatamente para evitar que venha um filho atrás do outro. O conhecimento tradicional diz que o sujeito não pode mexer com a mulher até o filho começar a andar. Por isso que muitos têm duas ou três mulheres. Mas agora ninguém respeita mais isso. E dizem que é ‘porque é assim que os brancos fazem’. Então, agora, há uma mulher grávida e amamentando, que em algum tempo vai ter sete, oito meninos para dar de comer, a roça vai ter que aumentar, e ela acaba cuidando mais de uns, menos de outros. Portanto, há uma conjunção de causas, mas não é falta de alimento, de disponibilidade de comida. Lá as pessoas plantam, o que está acontecendo é que a comida não está chegando na boca das crianças da forma adequada, da forma tradicional. Diferente da aldeia Guarani aqui em São Paulo, por exemplo, onde não tem espaço para plantar um pé de milho.

E a obesidade?

Esse é outro problema. Antes todo mundo remava seus barcos para cima e para baixo. Agora é só barco a motor. Cortava madeira no machado, agora com motossera. E tem também o aumento da ingestão de sal e de açúcar. Para a gente entender isso, temos que lembrar da teoria do gene econômico, que diz que populações que tem acesso a alimentos de forma sazonal, ou seja, de forma irregular ao longo do ano, com períodos de fartura alternados com períodos de escassez, como os povos indígenas, tem metabolismo diferente. Estas pessoas teriam em sua estrutura genética um ou mais pares de genes que fazem com que os indivíduos absorvam muito para poder armazenar nos períodos de escassez. São os tais genes econômicos. Agora, com a sedentarização fazendo com que se gaste menos energia nas atividades diárias, e a contínua oferta de alimento, o cara fica obeso e pode desenvolver diabetes. Esse problema atinge os índios norte-americanos desde a década de sessenta. Isso agora está acontecendo no Brasil. No Xingu tivemos até hoje dois casos de diabetes, ambos de mulheres de grandes caciques. E os índios, por terem o gene econômico, têm essa tendência de desenvolver a obesidade e diabetes. Estes problemas são ameaças importantes, atuais, e a Funasa não está nem pensando em tratar, o problema deles é conseguir vacinar, controlar a diarréia.

Estudo do IBGE torna público fenômeno do auto-reconhecimento da descendência indígena

A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo colaboradora do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental, e coordenadora do Comitê de Demografia dos Povos Indígenas da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, acompanhou a elaboração do estudo divulgado pelo IBGE, em 13/12, denominado “Tendências Demográficas: Uma análise dos indígenas”, que avalia detalhadamente os números dos autodeclarados indígenas nos censos de 1991 e 2000. A população indígena em 2000 teve um crescimento de 150% em relação a 1991, o que provocou surpresa entre especialistas e pesquisadores. Marta Azevedo explica nesta entrevista o que há de novo e o que significa esta publicação para os estudos demográficos dos povos indígenas e para o Brasil.

ISA – Quais as novidades que a publicação do IBGE apresenta?

Marta Azevedo – A primeira delas é que o IBGE teve a iniciativa de publicar um volume específico da série Tendências Demográficas sobre a população que se auto-declarou indígena nos censos de 1991 e 2000. O fato de o IBGE ter publicado um estudo específico disponibilizando informações, tabelas, gráficos e análises sob vários aspectos é super importante. É a primeira vez que a instituição oficial de estatísticas populacionais brasileiras publica um exemplar sobre o assunto. Isso quer dizer que o Estado brasileiro está dando importância a essa população que tanto está em aldeias e em territórios demarcados, como fora deles. Engloba pessoas que também se identificam com um determinado povo indígena que moram em zonas rurais, em cidades, fora de territórios demarcados. Os autodeclarados indígenas incluem todos. As análises são espacializadas por município, por situação de domicílio rural ou urbano, por situação de domicilio rural específico (os que se situam em áreas rurais de municípios que têm terras indígenas).

O que quer dizer situação de domicílio rural específico?

Os que estão nessa situação são provavelmente os autodeclarados indígenas residentes em domicílios das áreas rurais de municípios que têm Terras Indígenas em seus territórios. Então, a partir destas análises espacializadas é que é possível, sim, influenciar políticas públicas direcionadas a esta população indígena no Brasil. Além disso, o estudo vem tornar público um fenômeno sociológico e político da sociedade brasileira, que é o auto-reconhecimento da descendência indígena de inúmeras pessoas que tinham essa identidade “apagada”, mas não esquecida.

Em 2002, quando o IBGE divulgou o expressivo crescimento da população que se auto-declarou indígena, em relação a 1991, levantou-se a questão de que seria importante perguntar também a que etnia as pessoas pertenciam.

De fato, isso já foi levantado junto ao IBGE, de incluir no quesito raça/cor da pele a questão das etnias específicas, das línguas faladas. Mas o IBGE pondera que isso ficaria extremamente caro por conta do tamanho do Censo Demográfico Brasileiro e que isso deveria ser feito em convênio com a Funai, órgão responsável pelas questões indígenas no Brasil. Muitos países fazem pesquisas sobre os povos autóctones, a partir das línguas faladas, a partir de censos específicos, a partir de perguntas sobre pertencimento a etnias específicas.

O que mais você destacaria entre as diferentes análises que o IBGE apresenta nesta publicação?

Considero um grande ganho as análises espacializadas por município, às quais não se tinha acesso e que agora tornaram-se públicas. São apresentadas análises dos microdados do questionário da amostra, por município, por situação do domicílio dentro do município, rural ou urbano. Dá para saber a proporção de pessoas que se autodeclararam indígenas por município e como se deu o crescimento da população por região. Um mapa mostra municípios em que cerca de 90% da população se auto-declarou indígena, ou que a região Sudeste foi a que registrou um aumento maior de pessoas auto-declaradas indígenas de 1991 para 2000. Se fizermos um cálculo de crescimento da população indígena na região Sudeste, vamos ter uma taxa de 10% ao ano. Claro que isso não significa um crescimento vegetativo, mas uma mudança de auto-declaração. Já a região Norte registra o menor crescimento no número da população auto-declarada indígena.

O que o estudo revelou sobre fecundidade e mortalidade infantil indígenas?

Se analisarmos a população indígena da área rural de todas as regiões do Brasil, verificamos que em 1991, a fecundidade da população que se declarava indígena nas áreas rurais era de 6,4 e em 2000, caiu um pouco, para 6,2. E a população que se auto-declarava indígena nas áreas urbanas, que apresentava taxa de fecundidade de 3,6 em 1991, caiu para 2,7 em 2000. Isso quer dizer que a fecundidade dessa população urbana se aproxima mais da taxa de fecundidade da população brasileira em geral.

Já a taxa de mortalidade infantil se refere só ao censo de 2000. É alta se compararmos com a taxa de mortalidade infantil do Brasil, que no ano 2000 era de 30 por mil habitantes. Nesse mesmo ano, a taxa entre a população auto-declarada indígena era de 51,4 por mil habitantes. Para os que se autodeclararam pretos e pardos, ou seja a população negra, a taxa foi de 34. Mais baixa que os que se autodeclararam indígenas. As análises sobre mortalidade infantil da publicação recém-lançada pelo IBGE vêm reforçar a necessidade de melhorar as informações sobre estes povos, e enfocar de maneira mais contundente o atendimento à saúde indígena.

Entrevista Orlando Villas Bôas

Em 1944, Orlando, Cláudio e Leonardo já haviam deixado São Paulo e integravam o quadro da "Marcha para o Oeste" se passando por sertanejos analfabetos. Pouco tempo depois, quando foram desmascarados, passaram a comandar certas atividades nas bases de apoio. Com a descoberta dos índios no caminho e a desistência do chefe oficial, coronel Vanique, de acompanhar a vanguarda da expedição, os três irmãos assumiram o comando da equipe que iria desbravar o oeste brasileiro.

Rota:Como você vê, hoje, a expedição?

Orlando: A expedição foi um movimento de interiorização criado pelo Getúlio. O Brasil Central era uma área vazia. Você vê, por exemplo, a Serra do Roncador, hoje, deve ter umas quinze cidades. Tudo isso foi idéia do Getúlio, ele queria provocar o processo de interiorização.

Rota: E a região central brasileira era totalmente desconhecida?

Orlando: Nós fizemos avançada no rio Maritsauá e não tinha nada, só índio. Que nos deram sustos prá daná. Hoje está cheio de cidades, e era isso que o Getúlio queria. Porque quando ele saiu de vôo e foi até o Araguaia, ele voltou escandalizado. Ele disse: “É o branco do Brasil Central.” Quer dizer, nós estamos em um país vazio. E naquela época, o mundo estava em guerra. Na Europa levataram essa perspectiva do espaço vital. A Europa estava superpovoada, e falava-se de ocupar esses vazios do Brasil Central com as populações excedentes européias. Um cidadão, grande político europeu, não sei se era francês, declarou que já estava na hora de ocupar os vazios do Brasil Central com as populações excedentes da Europa. Aí ele veio aqui e foi muito mal recebido, o presidente do estado não quis recebê-lo. Ele não quis receber a figura do governo francês, por causa das declarações que ele deu lá. E então essa idéia começou a ceder devagarinho, porque não estávamos disposto a ceder terras para a população européia, o Brasil estava demograficamente explodindo. Isso que eu estou falando é 1943, 44, tínhamos 40 milhões de habitantes. Agora, veja você, hoje nós temos 200 milhões! Um salto canalha! Pra você ver uma coisa, em 50, 60 anos, triplicou a população! Daí veio o plano da "Marcha para o Oeste".

Chegando na margem do Rio das Mortes, a expedição tinha de caminhar com Coronel Vanique (primeiro chefe da expedição), mas ele tirou o corpo fora por causa dos índios xavantes. Foi quando o (ministro) João Alberto chegou e disse assim: "Coronel, porque que tu não fazes o seguinte, tchê. Ponha a vanguarda da expedição com estes três rapazes, os três irmãos Villas Bôas, eles são dispostos". Aí, o Vanique ficou no Rio das mortes e nós entramos com a expedição. Quer dizer, o Cláudio e o Leonardo. Fiquei porque o grupo, eram oito sertanejos, teria que ter o abastecimento e eu cuidava da tropa. Toda semana eu, Vergílio e mais outro sertanejo, nós saímos com quatro ou cinco mulas levando a carga pro pessoal da expedição. Nisso nós levamos um ano atravessando a Serra do Roncador até que chegamos nas matas do Rio Kuluene. Pelo caminho nós íamos fazendo ranchos e os índios iam queimando os ranchos. Tinha que ter um cuidado danado, a gente chegava com a tropa amarrava os burros e eles cortavam a corda durante a noite e chegava de manhã e a burrada tinha fugido toda. Aí você precisava procurar burro… putz… era um perigo desgraçado porque tinha índio pra daná naquele tempo mas eles não atacaram a gente nenhuma vez. Só uma vez que eles fizeram uma tocaia muito grande.

Foi uma sorte nossa, os trabalhadores estavam caminhando, eram mais ou menos uns 15 trabalhadores, e o encarregado do rumo era o Cláudio, ele estava com a bússola. Chegou uma hora lá que começou uma gritaria de índio do lado direito da picada, era mulher, criança e homem fazendo barulho e avançando. O Cláudio reuniu todos num lugar só e ficou ali e aquela coisa se aproximando, se aproximando. Por uma sorte danada, tinha um cupim enorme na picada e o Cláudio resolveu subir nele – era um cerrado baixo – para ver se enxergava alguma coisa da gritaria que estava chegando. Só que o Cláudio subiu olhando para cá e a gritaria vinha do outro lado, quando ele subiu foi exatamente na hora que um grupo de uns 40 ou 50 índios xavantes com uma folha de palmeira na frente levantou e saiu correndo, eles iam chegando camuflados. Aí o Cláudio gritou pro pessoal, nossos homens eram todos armados, mandando apontar os mosquetões pra cima e deu uma descarga de tiro pro ar. A gritaria parou e os índios de cá fugiram, eles ficaram com medo daquele tiroteio danado, mas não foi nenhum tiro pro lado deles. Aí os índios passaram a nos vigiar e nos seguir. Há uns 500m, 1km na picada a gente percebia eles nos acompanhando. Até que nós chegamos na mata, lá os índios voltaram. Os xavantes não gostam de mata, eles são índios do cerrado. Ali nós fizemos um campo que hoje é uma cidade chama-se Garapu e no rastro nosso, esses acampamentos todos que fomos fazendo, foram se transformando em cidades: Canarana, Água Boa, Garapu… Hoje tem mais ou menos 18 cidades na Serra do Roncador.

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Documentário

Ouça o documentário produzido para o Rota Brasil Oeste sobre o trabalho dos irmãos Villas Bôas e a Marcha para o Oeste.

Entrevista: Guardião das plantas que curam

Formado em agronomia pela tradicional Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, natural seria que Roberto Fontes Vieira opta-se por estudos com espécies agrícolas como o feijão, o milho, ou mesmo a soja, cultura que despontava com muita promessa, quando de sua graduação, em 1984. Contrariando a regra, ele escolheu as plantas medicinais. Contribuiu fortemente para essa opção, confessa Roberto, o professor da Universidade de Brasília (UnB), Jean Kleber Abreu Mattos, o primeiro agrônomo brasileiro a desenvolver pesquisas com plantas medicinais, com quem trabalhou na Embrapa Recursos Genéticos (Cenargen). Nascido o interesse, teve que contornoar o primeiro entrave, que era o fato de não haver mestrado disponível na área no país. A solução foi realizar parte do mestrado em botânica e parte na farmácia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Como mestre o mineiro Roberto Vieira realizou pesquisas com plantas do Cerrado e com o Jaborandi (Pilocarpus spp.), uma das espécies nacionais mais exploradas. Em seguida foi fazer doutorado nos Estados Unidos, em uma universidade em Indiana, onde desenvolveu sua tese com o manjericão, planta nativa do Mediterrâneo com grande variabilidade genética. Além de pesquisador, hoje acumula a função de curador de plantas medicinais e aromáticas brasileiras da Embrapa; missão considerada por ele quase impossível em função do tamanho do país e da quantidade de espécies..

C&T – É possível relacionar as plantas medicinais brasileiras mais coletadas e o seu respectivo atual estágio de exploração?

Vieira – Coordenei recentemente uma reunião organizada pela Embrapa e pelo Ibama em que o objetivo era justamente esse, elencar as espécies com maior interesse de demanda, verificar que ações estão sendo tomadas com relação a melhoria e conservação dessas plantas e conhecer quais as instituições e pesquisadores estão envolvidos. Nesse evento foram relacionadas 72 espécies com diferentes graus de interesse de demanda. Tentamos fazer um diagnóstico de espécies por região e por bioma – Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica, Cerrado e Plantas Ruderais (ampla distribuição geográfica, cultiváveis e plantas que não se enquadram em uma bioma específico). Para cada um desses grupos foi verificada a demanda das espécies, baseada em critérios predeterminados como espécies bem estudadas do ponto de vista farmacológico e químico; espécies eventualmente ameaçadas; vulneráveis; plantas com forte pressão extrativista; espécies com grande uso popular.

C&T – Com as espécies identificadas qual será a etapa seguinte?

Vieira – Os critérios para seleção das plantas foram definidos com vista a priorizar trabalhos com plantas importantes seja econômica ou ambientalmente falando. Na Amazônia, por exemplo, o grupo relacionou doze espécies e, curiosamente, estas mesmas plantas constam de uma relação de plantas mais utilizadas na região que li em um artigo publicado em um jornal manauense. Sabendo quais plantas priorizar, agora precisamos saber o que fazer com cada uma delas. O que precisa ser feito para que avancemos desse estágio extrativista, com matéria prima sem qualidade, baixa produção, agregando valor e, ainda, pensando em conservação. A Espinheira Santa (Maytenus ilicifólia), por exemplo, foi a planta destacada como prioritária pelo grupo da Mata Atlântica. Isso é o óbvio, mas até então não estava documentado. Para essa espécie, o grupo propõe uma coleta de germoplasma. O que existe está se perdendo e o material que vem do extrativismo precisa ser avaliado. Ainda tem muito a ser feito para que a Espinheira se torne uma planta viável para a produção comercial. Já sabemos bem a parte química e farmacológica, mas não sabemos como cultiva-la e essa é uma das espécies brasileiras mais pesquisadas.

C&T – Algumas dessas espécies estão em estágio crítico de conservação?

Vieira – Há os casos clássicos, bastante citados, com plantas em estágio bem adiantado de desaparecimento, como o Jaborandi. Descoberto no século XIX e pouco explorado no início, o Jaborandi começou a ser coletado em escala industrial na década de 60 para a extração da pilocarpina, usada na produção de um colírio para o tratamento do glaucoma. A princípio usava-se a espécie Pilocarpus jaborandi encontrada em Pernambuco e no Ceará, mas essa foi praticamente extinta pela coleta. Depois a própria empresa que explorava a planta encontrou uma nova espécie com teor maior, a Pilocarpus microfilos e, desde então, a vem explorando de forma extrativista intensa e nada sustentável para a produção desse medicamento. Contudo após a pressão de grupos ambientalistas a empresa começou a ter mais cuidado, primeiro instruindo os coletores para que não retirassem as folhas novas, o que impedia o desenvolvimento da planta, e posteriormente iniciando o processo de domesticação da espécie. A primeira coisa que fizeram foi a coleta em todas as áreas de ocorrência, da espécie para encontrar os melhores materiais para a criação de um banco de germoplasma. Em dez anos e com bastante investimento eles conseguiram dominar a tecnologia e hoje têm 15 milhões de pés de Jaborandi com coleta mecanizada. Tudo isso foi motivado porque essa era uma substância para a qual não se conseguia a síntese. Detalhei esse caso para mostrar que a única forma de evitar a extinção de espécies importantes é a domesticação.

C&T – Essa mudança de atitude, passando do extrativismo para o cultivo, é uma regra entre as indústrias?

Vieira – O manejo sustentável faz parte do discurso das indústrias interessadas. Entretanto, a realidade não é essa. A Fava d´anta (Dimorphandra mollis), espécie que ocorre no Cerrado e na Caatinga, cujo fruto maduro é riquíssimo em rutina (substância utilizada na fabricação de medicamento anti-hemorrágico) é explorada de forma extrativista até hoje porque em cultivo se leva oito anos para começar a colher. É melhor então ter vários pontos de coleta. Apesar de ser uma planta de larga ocorrência, não está imune à extinção porque tirando o fruto a propagação da espécie fica comprometida. Isso já se percebe quando verificamos que num ano determinada região produz muito e no seguinte a produção é baixa. Enquanto eles puderem retirar da natureza vão continuar agindo assim.

C&T – A conservação das 72 espécies relacionadas pelo grupo já está garantida?

Vieira – A criação de bancos de germoplasma para essas espécies é o primeiro desafio proposto pelo grupo. Só para a Ipeca e o Jaborandi, as duas únicas plantas brasileiras para o qual se tem o principio ativo identificado, podemos afirmar haver banco de germoplasma. Um dos projetos propostos no encontro é a formação de uma rede nacional de recursos genéticos que implementaria a criação desses bancos. No país a várias coleções de plantas medicinais mas queremos que essas coleções se tornem bancos de germoplasmas. A diferença é que no banco as espécies são classificadas em relação ao lugar de ocorrência, tolerância a determinada praga, maior teor de princípio ativo, entre outras coisas. O conceito de variabilidade genética dentro das populações é essencial.

C&T – Qual é o principal obstáculo na pesquisa com plantas medicinais?

Vieira – Em geral, quando se fala em plantas medicinais e aromáticas o envolvimento maior é do pessoal da área de química, farmacologia e medicina. Há muitos estudos químicos e farmacológicos, mas faltam dados sobre a produção de matéria prima. É o que a indústria cobra, não há matéria-prima de qualidade. Como fazer uma planta de uso extrativista tornar-se cultivável ou como desenvolver uma forma de exploração sustentável? Essa é a principal questão a ser respondida.

C&T – Para todas as espécies o cultivo é necessário. Algumas plantas podem ser colhidas na natureza?

Vieira – Para a farmacologia e a cosmética industrial isso é inevitável. Em outros casos isso dependerá da escala. Até um certo ponto você ainda consegue manter as populações naturais com controle de manejo sustentável. Mas depois que essa planta se torna matéria-prima para algum medicamento registrado, com produção industrial, a demanda cresce o que leva ao cultivo.

C&T – A transgenia pode ser uma opção para melhorar as espécies e facilitar o cultivo?

Vieira – Há alguma coisa sendo feita nessa linha. Entretanto, processos como a transgenia são longos e caros. Nem sempre envolvem um só composto. A Espinheira Santa, por exemplo, não tem um único princípio ativo e sim um conjunto, com rotas metabólicas distintas, o que torna o processo muito complexo. Acredito que, a curto prazo, seja muito difícil falar em plantas medicinais geneticamente modificadas no Brasil. O atual estágio das pesquisas com plantas medicinais e aromáticas no país está bem aquém disso. Outro exemplo, a Vinca ou Boa-noite (Catharanthus roseus), da qual se retiram duas substâncias importantes para o tratamento do câncer, a vincristina e a vinblastina, não têm até hoje sua reprodução dominada. Já tentamos fazer produção in vitro, uma série de coisas com alta tecnologia, mas ainda o grosso da produção dessa planta é coletado na natureza. Primeiro, temos que resolver esses problemas mais elementares e de maneira menos onerosa possível, sendo assim a transgenia não é a direção ideal.

C&T – O sequenciamento genético também é uma realidade distante?

Vieira – Temos uma quantidade tão grande de espécies com problemas básicos que não vejo oportunidade em falarmos em sequenciamento genético. Mesmo simples, como a germinação de sementes, estes entraves persistem. Já trabalhamos com a Arnica há vários anos, inclusive, há um projeto com a espécie em desenvolvimento pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente, e essa é a primeira coisa em que esbarramos. Colhemos as sementes, botamos para germinar e apenas 10% ou 15% germinam. A situação é dificultada pela falta de literatura sobre as plantas medicinais brasileiras. Isso distancia a pesquisa com fitoterápicos, da realizada com plantas já domesticadas (milho, feijão) cujos problemas exigem soluções com tecnologia mais avançada, como o genoma. Não há como investir pesado em uma planta se você não tem certeza de seu potencial.

C&T – Esse atraso nas pesquisas se reflete na baixa quantidade de patentes brasileiras baseadas em plantas medicinais?

Vieira – Essa é uma questão recente na pesquisa científica. Cada vez mais os pesquisadores da área de farmacologia e de química se preocupam com essa questão. Isso se percebe na cautela que hoje os cientistas têm em divulgar seus experimentos, como forma de proteger aquilo que está sendo feito. A coisa começou a mudar também porque agora temos um arcabouço legal que permite isso. Acho, ainda, que até há pouco tempo o pesquisador brasileiro era um pouco ingênuo e não se preocupava muito com o tipo de parcerias que fazia com instituições internacionais. Um exemplo da mudança de paradigmas é o próprio fato do CNPq ter lançado um edital para fitoterápicos onde uma das exigências é que houvesse um percentual de parceiras entre empresas e pesquisadores com vistas a um desenvolvimento industrial de produtos.

C&T – Como é a procura das indústrias e laboratórios nacionais por pesquisas com plantas medicinais?

Vieira – O interesse é cada vez maior. Inclusive, porque há uma legislação que exige o cumprimento de uma série de quisitos antes que determinado produto seja inscrito na Anvisa como fitoterápico. Com isso as empresas interessadas em registrar seus medicamentos estão investindo em pesquisas. Em muitos casos há um estudo pré-clínico, mas falta a toxicologia. Nesse caso, o mais viável economicamente para a empresa é solicitar o estudo para um laboratório já existente, que criar um para fazer esse trabalho. O importante é que sem o registro na Anvisa nenhum fitoterápico pode ser comercializado.

C&T – A legislação que regula o acesso a biodiversidade, sancionada recentemente, alterou em algum ponto o modelo de exploração dessas espécies?

Vieira – Não, as pessoas continuam explorando da mesma maneira. Se você encomenda 20 quilos de determinada planta a qualquer raizeiro dos mercados de Manaus, ele entrega o pedido rapidamente. No segmento científico sim, a coisa está mais complicada. Claro é que o processo necessitava ser organizado e disciplinado, mas ainda não está fluindo normalmente. A realidade é bem diferente do que se pensa nos gabinetes e quem deveria ser atacado não está sendo.

C&T – Quanto a formação, ainda é necessário sair do país para fazer mestrado ou doutorado em plantas medicinais?

Vieira – Não. Há mestrado nessa área na Universidades Estadual de São Paulo (Unesp), em Botucatu, na Federal de Viçosa (UFV), onde me graduei, e em Fortaleza. Isso tem multiplicando o número de pessoas envolvidas com o estudo das espécies e possibilitará a formação de uma rede sobre plantas medicinais.

C&T – É difícil implementar um projeto com plantas medicinais dentro de uma empresa que prioriza a pesquisa com fins agrícolas, como a Embrapa?

Vieira – Está mais fácil. Hoje, os fármacos ou plantas medicinais constam do plano diretor da Embrapa. É claro que alguns agrônomos tradicionais ainda se sentem intimidados em trabalhar com essas plantas, ainda consideram isso coisa de mateiro. Mas, atualmente a visão e outra; a própria mídia, a cada dia, reforça a necessidade de investimentos nesse tipo de pesquisa. O que tento por princípio é colocar as coisas do ponto de vista científico e econômico na hora de vender minha idéia.

Entrevista: Oswaldo Reis

Jornal do Brasil – Em julho de 1967, o médico Oswaldo Reis chegava à Brasília como um dos fundadores do Departamento de Ciências de Saúde da Universidade de Brasília (UnB). Na época, empolgado com a proposta inovadora do novo curso superior, o jovem doutor de 30 anos deixou seu trabalho com medicina tropical em países da América Central pela Organização Mundial da Saúde para se dedicar ao projeto na Nova Capital.


"O que a gente fez primeiro era evitar que isso não fosse um turismo. (…) Eu não queria isso, então eu criei atividade curricular. Todas as áreas da universidade tinham um estágio rural não obrigatório." Foto: Fábio Pili

Dois anos mais tarde, Reis assumia como Decano de Assuntos Comunitários, cargo que manteve até 1976. Nesse período, montou o campus avançado da UnB em Aragarças, MT. O ponto recebia estudantes que participavam do Projeto Rondon e serviu como uma importante base de apoio para o desbravamento da região localizada próxima ao Parque Indígena do Xingu. Os universitários prestavam assistência para garimpeiros, pioneiros que fundavam novas cidades e aos índios que habitavam uma região ainda pouco conhecida.

O médico conversou com o Jornal do Brasil e Rota Brasil Oeste sobre os desafios e a importância da interiorização da saúde pública no Centro-Oeste.

– Como foi a implantação do Campus Avançado da Universidade de Brasília?

– Em 1969, eu fui para o Chile, logo que retornei, criei o campus avançado da Universidade de Brasília, que era parte do projeto Rondon. Mas eu era crítico da maioria dos outros campi. Tinha um teco-teco na UnB, ganhado na época do Darcy, que foi exatamente para fazer trabalhos antropológicos. E esse teco-teco estava encostado, inclusive tinha um piloto da universidade que não fazia nada. Então a gente recuperou esse teco-teco, que se chamava Espírito de Filadélfia e o piloto era o Custódio, muito conhecido na região. Comecei então a trabalhar, indo de teco-teco para a região todo fim de semana e comecei a montar o campus avançado.

– E como era a preparação para os alunos que ia à região?

– O que a gente fez primeiro era evitar que isso não fosse um turismo. Era muito comum o cara conhecer a região amazônica e bater foto com índio, com papagaio ou com macaco. Eu não queria isso, então eu criei atividade curricular. Todas as áreas da universidade tinham um estágio rural não obrigatório. Quem quisesse aquela disciplina, tinha de ter interesse e supervisão docente. Eles iam para lá por períodos determinados, de acordo com cada estágio, de cada carreira. Eu tinha dois médicos docentes permanentes na área. Eles eram professores assistentes da universidade e ficaram morando lá e coordenavam localmente as atividades.

– O campus era multidisciplinar?

– Sim, todas as áreas da UnB. Por exemplo, o pessoal de pedagogia ia para lá para treinar as professoras leigas, capacitá-las. Então tinha um professor da UnB, que é o Paulo Vicente Guimarães, que era também o que dava suporte na região. O fundamental, para nós, era que eles não substituíssem o pessoal local, que era contrário à filosofia que o Projeto Rondon tinha de levar aluno para substituir os locais. O nosso objetivo era treinar indivíduos, fazer treinamento em serviço. Enfim, todas as áreas da UnB atuaram lá, o pessoal de geologia também, que fazia estudos mineralógicos naquela região toda, e faziam com os alunos.

– Como funcionava a assistência no caso da saúde?

– Nós treinávamos estudantes para ser médicos rurais. Criei um programa de educação continuada, pegando esse aluno formado, interiorizando-o em cidades do Centro-Oeste. Os municípios que tinham o interesse, eu estudava as condições para ver se era viável e fazia um chamado consórcio intermunicipal. Isto é, para reunir recursos de vários pequenos municípios para manter um profissional em tempo integral na região. Isso foi um trabalho de interiorização e de saúde pública. Eram médicos treinados com a patologia, com os problemas de medicina tropical.

– Como era a estrutura?

– Nunca me preocupei em conseguir equipamentos sofisticados para a região. O que eu queria era mostrar como era um hospital rural. Eu podia pegar equipamentos do hospital de Sobradinho, ou do meu laboratório de pesquisas do minhocão e colocar lá. Mas não me interessava. Queria um hospital real, fazer os exames comuns de qualquer cidade do interior. A preocupação nossa era não artificializar. O cirurgião trabalhava lá com as condições de roça.<~/p>

– Quais eram os atendimentos mais comuns?

Aragarças estava dentro do paralelo para ganhar incentivos fiscais, aquelas grandes fazendas iam nascendo. Empresários do sul estavam comprando terras lá e começaram a entrar para fazer a sua exploração. Eu reunia essas pessoas e mostrava que seria um investimento com alto retorno se ajudassem os nossos hospitais. Ali é uma zona de malária, de leshmaniose, de febre amarela. Um indivíduo com malária perde vários dias de trabalho. Isso tem um custo. Nós mostramos que se eles permitissem a gente treinar um capataz da fazenda para as coisas mais elementares. Aí, através de rádio eu dava instruções. E toda vez que precisasse internar um peão de uma fazenda dessas também não era gratuito. Tinha uma lista de soro, de seringas, de gases, de remédios. As vezes, os fazendeiros se reuniam e me davam uma quantia em dinheiro para comprar material.

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Fernando Zarur