Quarta-feira, 23/05/2001

EXPEDICIONÁRIO DA ROTA BRASIL OESTE NÃO TEME ONÇA

Quarta feira, 23 de maio.

Ficou marcado para irmos para a aldeia Yawalapiti, cerca de sete quilômetros do Posto Indígena Leonardo. Na saída, por algum mal entendido, o motorista da Toyota saiu e não levou o Fábio, que ainda tinha ido arrumar seus apetrechos de desbravador (cantil, faca, etc). Inconformado, não entendendo porque não o esperaram, chegou a dizer:

– Não me esperaram, mas eu queria ir, não sei porque não me esperaram. Mas eu vou de qualquer maneira, nem que tenha que enfrentar onça (…)não aguento ficar mais aqui sem fazer nada!!!!

– É assim mesmo…, pode ir, mas toma cuidado (…)

Não vi mais o Fábio.

Na noite caindo, ainda claro, em frente à casa do Posto Indígena, a mesma que Orlando Villas Boas residiu durante anos, um índio Aweti, Tucumã, começou a contar:

Cadê aquele maluco? Nós vinha de carro, voltando da aldeia Yawalapiti, já lá pertinho das roças, naquela reta, e o motorista disse: – quem é aquele doido? E quando ele olhou, lá vinha o Fábio, com um pau (burduna) no ombro e uma faca na mão, andando.

E os índios riram, o que ele está fazendo? Será que está doido?

Chegando perto pararam, e riram muito.

O Fábio tinha encontrado pegadas de onça pelo caminho e, na dúvida, sem saber se voltava ou continuava, prá que lado corria, acabou seguindo, valente, com burduna e faca na mão, para enfrentar a onça, caso aparecesse.

Os índios riram. Mas o valente Fábio, mesmo com medo, enfrentou o perigo de sua própria ignorância ou será teimosia!!!

É isso aí Fábio. Coragem, para seguir seu caminho…

Mas tomar cuidado é bom, não esqueça.

Guilherme Carrano

Terça-feira, 22/05/2001

Noite passada, uma onça andou passeando aqui pelo Posto Leonardo. Logo após uma apresentação de uns índios Guaranis, de São Paulo, que vieram conhecer o Xingu, ficamos conversando com o pessoal que trabalha aqui no posto. Às 11h e pouco, desligaram o gerador, nossas únicas fontes de luz ficaram sendo um lampião e uma lanterna com as pilhas fracas, ou seja, não dava pra enxergar muito longe. Bem, não sei se a escuridão deu asas à imaginação, mas o Fernando e uma colega, a Danuzia Maria, garantiram que ouviram um esturro perto de onde estávamos. Na dúvida, cada um pegou o rumo de suas respectivas casas. No caminho, o Pedro apontou a lanterna pro mato e viu uns olhos brilhando. Na hora ele duvidou que fosse alguma coisa, mas hoje de manhã o assunto não foi outro. Ficamos sabendo que encontraram pegadas de uma onça perto dos alojamentos e que, de manhã bem cedo, uma indiazinha viu o bichano à beira do rio, que não fica a 20 metros de onde estamos dormindo.

Por aqui, onça é um perigo real. Ninguém tem medo de piranha, jacaré ou cobra, mas a onça todos respeitam. Já ouvimos mil histórias e os índios do posto dizem que já apareceu onça na porta de casa, às 10h30 da noite e com o gerador ligado, para tentar comer um cachorro. Sair pra pescar ou caçar a noite desarmado é loucura. Por aqui, o apagar do gerador é um toque de recolher.

Outro perigo de verdade é sucuri. Não faz um mês que uma indiazinha foi pega por uma perto da aldeia Waurá. Por sorte um menino estava por perto e teve coragem pra dar uma paulada na cabeça da cobra, que largou a garotinha e fugiu. A proximidade da sucuri faz parte do cotidiano das aldeias. Nos Yawalapiti, por exemplo, os jovens mais corajosos atiçam a cobra para que ela os morda e cortam seu rabo, que é um símbolo de coragem e usado em vários rituais da tribo.

Pedro e Fábio

Segunda-feira, 21/05/2001

Aproveitamos o dia de hoje para fazer uma pequena viagem, fomos conhecer o Narro na aldeia Kuikuro. Com mais de 90 anos de idade, ele foi o primeiro índio xinguano a falar português, servindo de intérprete logo que a Expedição Roncador-Xingu chegou aqui. Muito velhinho, porém lúcido, ele tem sérios problemas de audição.

O caminho até lá foi bem cansativo, navegamos cerca de duas horas, aportamos, e andamos mais uma hora até a aldeia. Chegando lá, atravessamos um pântano com água até a cintura. Sem enxergar o chão, fomos tropeçando em paus e pedras. Enquanto tentávamos afastar o pensamento no que mais poderia estar nadando ali embaixo, ficamos apreciando um pouco da natureza do lugar, em especial as plantas aquáticas. Na volta, o Pedro até viu um pouco da fauna local, uma cobrinha que passou à nossa frente nadando.

Fomos recebidos na casa do cacique Kuikuro, chamado Afukaká. Explicamos nosso trabalho e conversamos um pouco com ele sobre a chegada dos não-índios e a situação atual da comunidade. Depois, seguimos para nos encontrar com o Narro. Por causa do problema de audição, não foi possível conversar com ele como queríamos. Mesmo assim, batemos um longo papo com seu filho, Jakalo.

Voltamos ao barco por volta das 15h, atravessando o mesmo caminho num sol ainda mais quente. Chegamos ao Posto Leonardo só no início da noite. Por isso mesmo, decidimos publicar hoje apenas este diário de viagem.

Fernando Zarur

PS – Ontem o Pedro Ivo foi, sozinho, visitar a aldeia Kamaiurá. Voltou besuntado de urucum, com a pele ridiculamente vermelha. Por falar em rubro e negro, o papo na aldeia Yawalapiti foi que o Parú (colega flamenguista) teve uma premunição espiritual do final do jogo e ficou triste ainda no primeiro tempo. Eu faço minhas previsões otimistas para semana que vem, Flamengo 3 X 0 Vasco.

Domingo, 20/05/2001

Leitores,

Hoje vou escrever para todos os que conheço, mas principalmente para os colegas da Comunicação, professores e alunos.

Primeiro queria contar que – não sei se já escreveram antes – a estadia aqui no parque é muito interessante, reveladora. Só para ter uma idéia: para chegar na aldeia Iaualapiti, nós pegamos carona no barco do cacique Aritana, dirigido pelo seu filho, Ualá, de 14 anos. Até aí, tudo bem, mas existe algo que, para mim, é extraordinário: o garoto dirigiu o barco à noite, sem nenhuma iluminação, por quase seis horas. E conseguiu a proeza de não bater em nenhuma pedra ou galho. Imagino como está São Paulo sem luz ou se eu tivesse de dirigir para casa só com a luz das estrelas, sem nem mesmo o clarão da lua. Algo bucólico e desastroso…

Outra lembrança interessante: conversei um tempo com o pai do Aritana, o rezador e raizeiro Parú. Novamente: até aí, nada demais. Mas o velho já vivia aqui antes de qualquer contato com o branco, e já se virava muito bem no mato, sem machado de metal, espingarda ou lanterna. ‘Ora, índios vivem no mato, sem nenhum problema, já há muito tempo’, muitos devem pensar. É, mas já escrevi, ele é raizeiro, e para conseguir raiz, tem de se embrenhar no mato por dias, muitas vezes sozinho. Complicou um pouco… Ainda mais se acrescentar um perigo que parece distante, mas aqui é real e incomodamente comum: ataque de onças. Bem, para encurtar a história: Parú, que já foi também Tapiruatá e Okanato (abandonou os nomes para passar aos netos primogênitos de cada filho), nunca foi atacado, pois faz reza que afasta onça. Difícil de acreditar, não é, mas como explicar?

Também têm as crianças (que merecem muito mais do que um parágrafo, mas, infelizmente, é só o que posso dar hoje). Resumindo: elas são completamente independentes, sempre – não sei como, se descobrir, aviso – risonhas e alegres, e têm um senso de união, de coletivo, que dá inveja a qualquer político ou governo.

Mas não é sobre isso que queria escrever, e sim sobre a experiência que tive esta noite, junto com o Fernando. Fomos à casa do chefe do Posto Leonardo, o Kokoti Aweti, e lá tinha uma TV (embora passe a idéia de um lugar distante e inóspito, o que não deixa de ser verdade, em todo o Parque do Xingu você encontra energia elétrica, seja de gerador ou célula solar). E ela estava ligada na Globo, que transmitia o principal veículo de informação do nosso país, o mais acessível em cerca de 97% do território brasileiro, o esperado Jornal Nacional.

A matéria que passava era sobre o efeito negativo do racionamento de energia na indústria da construção civil, segmento da economia com faturamento de bilhões todos os anos, grande empregadora da massa ignorante que habita esta terra abençoada por Deus. No meio da reportagem aparecia o depoimento de um empresário que havia investido R$ 500 mil na obra de um conjunto de lojas, mas estava impedido de negociar seu investimento enquanto durar o racionamento, pois novas ligações elétricas estão proibidas.

Logo depois, começaram os comerciais e vimos uma loira bem formada nos oferecer uma Skol gelada, seguida por uma galera-jovem-muito-divertida-que-agita-todas-e-se-diverte-a-valer-bebendo-um-(também)-gelado-e-saboroso Guaraná Antarctica.

Somente um comentário: absurdo.

Estranho, mas a alteridade (papo chato e academicista espalhado como panacéia no Departamento de Antropologia) e toda a crítica a cultura de massas (praga na Comunicação…) pode adquirir algum sentido prático.

Bem, era isso.

Bruno Rocha Radicchi

PS: o Fernando assistiu um pedacinho da novela das seis e se recusa a escrever, pois só comentaria o assunto em porta de banheiro.

Xingu 40 Anos

O Parque Indígena do Xingu é considerada a maior e uma das mais famosas reservas do gênero no mundo. Criado em 1961, durante o governo de Jânio Quadros, foi resultado de vários anos de trabalho e luta política, envolvendo os irmãos Villas Bôas, ao lado de personalidades como Marechal Rondon, Darcy Ribeiro, Noel Nutels, Café Filho e muitos outros.

Localizado ao norte do Mato Grosso, numa área com cerca de 30 mil quilômetros quadrados, seu território abriga mais de uma dezena de etnias, entre elas: Waurá, Kayabi, Ikpeng, Yudja, Trumai, Suiá, Matipu, Nahukwa, Kamaiurás, Yawalapitis, Mehinakos, Kalapalos, Aweti, Kuikuro.

Sobre a idéia original do Parque, Orlando Villas Bôas conta que a intenção era conservar os povos e a natureza da região. “O governo brasileiro, ao criar o Parque, procurou cumprir dois importantes objetivos: constituir uma reserva natural para a fauna, flora e, sobretudo, fazer chegar diretamente às tribos sua ação protetora”, explica o sertanista.

futebolxingu.jpgEm 40 anos de existência, o Xingu passou por diversas mudanças que coincidem com a história da questão indígena nas últimas décadas. No início, a filosofia aplicada pelos Villas Bôas visava proteger o índio do contato com a cultura dos grandes centros urbanos. Na época, por exemplo, não era permitido nem usar chinelos ou andar de bicicleta, para que nada mudasse no cotidiano tribal.

Cada vez mais popular no Xingu, o esporte é praticado por quase todas as aldeias, em campos improvisados no pátio central. Foto: Bruno Radicchi

Com a saída de Orlando e Cláudio Villas Bôas da direção do Parque, em 1973, este pensamento começou a mudar. O administrador seguinte, Olímpio Serra, começou a contratação dos primeiros funcionários indígenas da Funai, dando o primeiro passo para uma maior representação das comunidades.

Em 1982, o Xingu teve seu primeiro diretor índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó. Desde então, outros começaram a se preparar e assumir diversos cargos dentro do Parque. Atualmente, eles detêm a maioria dos postos administrativos, protegendo suas próprias fronteiras e prestando assistência à comunidade.

Hoje, o caminho buscado pelas comunidades é a fundação de sociedades indígenas e Organizações Não Governamentais (ONG). O próprio Parque Indígena do Xingu conta com cinco dessas associações. Desse total, a mais abrangente é a Associação Terra Indígena Xingu (Atix), criada em 1994, que tem a pretensão de alcançar uma grande abrangência política dentro do Parque.

O indigenista Guilherme Carrano, que acompanhou a formação de diversas organizações indígenas, explica que uma das principais vantagens deste tipo de iniciativa é a autogestão da comunidade. “A criação de uma associação ou ONG possibilita que os índios busquem apoio para seus projetos sem intermediários”, afirma Carrano.

Uma das principais lideranças xinguanas, o cacique Aritana, da tribo Yawalapiti, acredita que o movimento indígena precisa lutar para garantir sua autonomia total, sem depender do não-índio. “O Orlando já fez coisa demais para nós, agora é nossa vez de cuidar daqui. Nós não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente, queremos que os próprios índios se relacionem com o governo, mandem documentos, contratem médicos e professores”, afirma o cacique.

Entrevista: Dr. Roberto Baruzzi – Saúde no Parque

Atendendo em todo o Parque Indígena Xingu, a Escola Paulista de Medicina (EPM) tem um importante papel na saúde dos índios da região. Trabalhando a quase trinta anos na reserva, atualmente a EPM, em convênio com o Ministério da Saúde, é responsável pelo distrito especial indígena do Xingu.

O médico Roberto Baruzzi foi o principal responsável pelo o início desta parceria, “O Orlando (Villas Bôas) já conhecia nosso currículo, havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício”.

Grupo – Como começou o envolvimento da Escola Paulista de Medicina no Xingu?

Dr. Baruzzi – Nós já tínhamos iniciado um trabalho conjunto no vale do Araguaia, com médico, enfermeiros e alunos. Por acaso em 1964, eu vinha lá do Araguaia, no Sul do Pará, e o avião desviou da rota e posou no Parque para deixar um piloto da FAB na base do Jacaré. Aí eu desci no Posto Leonardo e veio o Orlando trazendo um doente. Eu fui ver este doente e fiquei interessado, né. Voltei pra São Paulo e fiquei querendo encontrar os Villas Bôas, eu percebi que era uma política diferente lá.

dentistasxingu.jpgEntão, acontece que eu li no Jornal que o Cláudio ia ser operado no (hospital) Santa Catarina e fui lá vê-lo. Mas eu titubiei um pouco, quando cheguei, ele tinha tido alta. Então, perdi a oportunidade. Depois li no Jornal que o Orlando ia fazer uma palestra e fui lá, eu já conhecia o Orlando mesmo. Mas quando entrei no corredor, cruzei com ele, nos cumprimentamos e ficou por isso mesmo.

Mantendo equipes permanentes dentro do Parque, a Escola Paulista de Medicina presta atendimento médico e odontológico aos índios do Xingu. Foto: Fábio Pili

Depois de uns tempos aconteceu do Orlando vir trazer um doente. Quem atendeu a porta foi um residente meu que havia estado comigo no Araguaia, então ele me chamou. Aí recebi um convite para fazer uma avaliação das condições de saúde do Parque. O Orlando já conhecia nosso currículo, tinha visto no jornal, já havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício.

Então fomos, e vimos que era preciso uma ação regular de saúde. O Parque foi criado em 61 e estávamos em 65, precisávamos de um plano regular de vacinação, um plano regular de assistência e uma retaguarda hospitalar. Então, a cidade mais próxima do Xingu, na verdade, era São Paulo. Que todos os centros urbanos eram muitos distantes, mas São Paulo tinha a linha da FAB semanal. O avião saía daqui, o DC3, da época da Segunda Guerra, banco lateral, desconfortável, mas levava vinte pessoas para onde você queria.

Daí foi ótimo, muito bom porque o hospital daqui funcionou como retaguarda hospitalar. Então estabelecemos que iriam quatro equipes periódicas no ano. Cada aldeia, graças à ficha médica, começou a ter um plano de vacinação e chamávamos o índio pelo nome e, ao mesmo tempo, em caso de emergência, tínhamos a retaguarda hospitalar. Este foi o plano, íamos quatro vezes por ano: janeiro, abril, julho e setembro.

Grupo – De que maneira vocês faziam o trabalho de prevenção de epidemias na época?

Dr. Baruzzi – Em 1965 houve um grande risco de doenças que poderiam ser evitadas por vacinas. O sarampo era uma grande ameaça. Tinha havido, onze anos antes, em 54, uma epidemia que pegou 600 índios e morreram 114. Isto está descrito nos relatórios do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e tem até um livro do José Mauro Vasconcelos, o romancista, onde ele conta um episódio deste. Então, tínhamos esta memória muito triste. E a malária tinha uma incidência muito grande, era a principal causa no momento de mortalidade e doenças.

Por outro lado, encontramos também índios chamados de cultura pura. Que estavam ainda em relativo isolamento com a sociedade brasileira. O acesso ao Parque era só por avião e era controlado e os índios também não tinha facilidade pra sair. Isto me chamou a atenção também pela diversidade dos índios lá dentro. Na época eram 14 tribos, completamente diversas e pertencentes aos quatro maiores troncos linguísticos: Aruak, karibi, jê e o tupi.

Este foi o panorama que encontramos. Fomos muito bem aceitos porque havia o preparo também do Orlando e do Cláudio, explicando o que nós fomos fazer, o que era a vacina. Não houve grandes problemáticas.

Grupo – E como era a relação de vocês com os Pajés?

Dr. Baruzzi – Nós levamos conosco o compromisso de respeitar ao máximo a cultura dos índios e respeitar a prática dos Pajés. Quer dizer, desde o começo tivemos um bom relacionamento com eles. As coisas quase se complementam, eles têm o sistema deles e a lógica deles. O teoria das doenças deles obedece a outro mecanismo que não o nosso. Para nós é o agente, o vírus, para eles tem outras explicações. Mas os dois se congregam em benefício da saúde.

Muitas vezes chegávamos numa casa e o Pajé estava fazendo o trabalho dele, os cânticos, a fumaça, enfim, a pajelança. A gente assistia a pajelança e vice-versa, as vezes, chegávamos antes e o Pajé esperava. Às vezes a gente dizia, "essa criança tem que sair, tem que ir pra São Paulo" e o Pajé, "ah, não sei, vou pensar". Porque o Pajé faz toda aquela proteção, né. O trabalho do Pajé é tão interessante que, por exemplo: uma vez nós fizemos os curso do agente e saúde no Diauarum e levávamos os índios do Alto Xingu. Eles só iam depois que o Pajé os preparasse para que eles fossem, para enfrentar as entidades malígnas da parte norte.

Então, nós sempre tivemos um bom relacionamento com os Pajés. Como diz o Orlando: "O médico ajuda a curar, o Pajé leva a fama e cobra". E cobra em espécie (geralmente colar de caramujo) faz parte, né.

Grupo – E como você acha que o Pajé entendia a ação do médico?

Dr. Baruzzi – Eu acho o seguinte, eles viam mais um reforço, "chegou mais alguém para me ajudar na saúde". É muito difícil para nós dizermos que entendemos o mecanismo do Pajé e ele dizer que entende o nosso trabalho. São linhas diferentes de compreensão.

Grupo – Atualmente, a atuação da Escola Paulista de Medicina continua do mesmo jeito?

Dr. Baruzzi – No ano passado (1999) foram criados os distritos sanitários indígenas, que ficam ligados ao Ministério da Saúde, à Fundação Nacional da Saúde. Lá tem o setor de saúde indígena, esta é a nova política. São 34 distritos em todo o país, divididos por critérios geográficos, étnicos e epidemológicos. Para fazer estes distritos, o Ministério da Saúde faz um convênio com entidades que atuam na área, no caso do Xingu – como nós estamos há muito tempo lá – o convênio é com a Escola Paulista de Medicina. Somos responsáveis pelo distrito especial indígena do Xingu.

Nossa sede é Canarana, uma cidade de mais ou menos 26 anos, fundada por gaúchos. Lá tem hospital, temos casa, tem a casa do índio, funciona na nossa base. Ela fica no sul do Parque. Para chegar lá a gente pega um avião pequeno em Goiânia e tem gente que vai por terra mesmo.

Grupo – A Escola Paulista de Medicina mantém equipes permanentes dentro do Parque?

Dr. Baruzzi – Mantemos. Tem médico, enfermeira e hoje trabalhamos também com a formação do agente indígena de saúde. Isto é uma coisa dos últimos anos, a comunidade escolhe quem vai fazer os cursos. É um curso de capacitação e formação. Isto tudo é muito complexo. E o índio tem, por exemplo, a dificuldade da alfabetização, uns escrevem bem e outros não.

O curso aborda todas as condições de saúde, como acontece a doença… Quer dizer, a idéia

é preparar pessoas para fazer o primeiro atendimento, as coisas mais simples. Porque na aldeia ele está trabalhando com a sua comunidade e ele tem a facilidade de comunicar com o posto. Comunicando com o posto, o pessoal de saúde vai e busca o paciente. O posto comunica com Canarana onde tem o hospital e Canarana comunica com a gente.

Então, este curso está caminhando. Caminhando tão bem, que alguns já estão passando pra próxima fase: o auxiliar indígena de enfermagem. Conseguimos que o governo reconhecesse essa figura. Esta é uma coisa nova também no país.

Entrevista: cacique Aritana Yawalapiti

O cacique Aritana, 51 anos, é hoje a mais respeitada liderança do Alto Xingu. Desde quando assumiu a chefia dos Yawalapiti, há cerca de 20 anos, ele luta pela preservação da cultura e dos hábitos dos índios xinguanos. “É muito difícil mostrar aos jovens a importância de manter nossos costumes, mas com conversa eles estão vendo que é melhor sermos o que a gente é: índio”, explica o cacique.

Preparado desde cedo para ser cacique, Aritana conheceu os irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas ainda criança, no final da década de 1950. “Aprendi muito com eles sobre a importância de se preservar os hábitos antigos”, conta o chefe. Sob estas influências, ele se tornou um grande líder da causa indígena dentro e fora do Xingu.

Grupo – A educação indígena, desde a época que os Villas Bôas estavam no parque, era uma questão polêmica. Eles defendiam que o índio deveria ter o mínimo possível de contato com a cultura do branco. Como está isso hoje?

aritanaentrevista.jpgAritana – É triste, mas eu acho que alguns projetos de educação estão acabando com a cultura do Alto Xingu. Já vejo que os jovens não gostam mais tanto de falar sua língua, preferem usar roupa e estão mais interessados nas coisas do branco. O problema é que os professores ensinam os valores dos brancos e os jovens param de respeitar as tradições. O Kuarup, por exemplo, é uma festa muito séria e importante pra gente. É a festa dos mortos. E no último Kuarup eu percebi que alguns jovens achavam que isso é brincadeira.

Na época do Orlando (Villas Bôas), por exemplo, havia preocupação em manter a cultura e a educação do jeito do índio. Eu era pequeno e ficava chateado, perguntando porque o Orlando não dava chinelo e bicicleta. Depois é que eu fui entender que era pra gente manter a força na perna. Se a criança anda de chinelo o dia todo ela não consegue mais subir em árvore.

"É o índio que tem que falar seu direito, que tem que preparar documento. A saúde, é o branco que está mandando, a mesma coisa a educação. Mas eu quero é que o índio contrate o médico, o professor, e manda pra cá". Foto: Fernando Zarur

Grupo – Existem propostas de geração de renda para as aldeias, principalmente por meio do turismo. Como você vê essa situação?

Aritana – Estão sempre procurando a gente para fazer projetos. Nossa aldeia aqui é o primeiro lugar em que eles passam, mas eu sempre digo que não. A primeira proposta que recebi era pra colocar lanchas de luxo e um avião trazendo gente de uma fazenda perto do parque para a aldeia. Recebemos propostas quase todo dia. Recusamos porque não queremos nem precisamos do dinheiro de branco para viver bem aqui.

Outras tribos já aceitaram porque querem dinheiro. O problema aqui é que as tribos que aceitam visitas de turistas deviam reunir as lideranças do Xingu para conversar sobre a questão, mas isso não acontece. Tivemos uma reunião em Brasília para discutir o problema, e foi uma discussão brava, mas nós não abrimos mão da nossa posição contra turismo aqui. Tem que ser firme. No final, todo mundo que aceita turista se arrepende.

Grupo – E você acha que o índio está bem representado politicamente pela Funai e pelas ONGs que trabalham por aqui?

Aritana – Não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente. A gente quer que os próprios índios se relacionem direto com o governo e mandem documentos falando dos problemas. A saúde é o branco que está mandando. A mesma coisa com a educação. Mas eu quero que o índio contrate o médico, o professor e mande pra cá. É só assim que a gente vai poder cuidar bem de verdade dos nossos interesses.

Grupo – E no futuro, quando os novos estiverem no comando das aldeias, como vai ser?

Aritana – Nós ensinamos aos jovens que é bom aprender a língua do branco para não ser enganado. O que tem que acontecer é aprender o que o branco tem de bom, mas não perder nossa cultura. Hoje a gente já usa barco a motor para as viagens longas e tem televisão na aldeia pra saber das notícias, mas eu não deixo as crianças verem televisão muito tempo.

Os índios aqui do Alto (Xingu) são mais preservados, mas os do Baixo tiveram mais contato com os brancos, então eles ficaram dependentes das coisas de branco. Os Caiabis, por exemplo, vieram da região de Rio Peixoto, que foi estragada por seringueiros e garimpeiros. Eles gostam muito daqui do Xingu, mas ainda precisam muito das coisas do branco, como roupa, sabonete e sal. Aqui a gente tem tudo que precisa.

Posto Leonardo Villas Bôas

Leonardo Villas Bôas, ao lado de Orlando, Cláudio e personalidades como Marechal Rondon, Noel Nutels e Darcy Ribeiro, foi um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Infelizmente, no mesmo ano da criação da reserva, 1961, Leonardo morreu de problemas cardíacos. Como homenagem ao seu trabalho desde o início da Expedição, o antigo posto indígena Capitão Vasconcelos, principal base do Alto Xingu, foi renomeado Leonardo Villas Bôas.

Localizado às margens do rio Tuatuari, o posto atende a mais de oito etnias, como Kuikuros, Kalapalos, Iaualapiti, Kamaiurá, Waurá e Aweti. O local foi escolhido ainda na época do avanço da Expedição Roncador Xingu, pois era necessária a construção de uma ampla pista de pouso, com capacidade para receber aviões maiores, melhorando a capacidade de abastecimento do grupo.

casapostoleonardo.jpgDepois de procurar em diversas praias, finalmente foi encontrado um local ligeiramente elevado e plano, com terreno firme, banhado por um rio de águas limpas e com peixe em abundância. O índio Parú, rezador e raizeiro dos iualapiti, acompanhou Orlando na busca e lembra que os expedicionários sofriam muito com falta de abastecimento, comendo apenas mel e peixe.

Antiga casa de Orlando (esq.) ao lado da casa onde morou Marina Villas Bôas. Os prédios continuam sendo utilizados como alojamento. Foto: Fernando Zarur

O trabalho de apenas cinco índios Iualapiti, conta Parú, conseguiu abrir e inaugurar em pouco tempo o campo de pouso. Utilizando aeronaves, especialmente do CAN (Correio Aéreo Nacional, serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), foi possível trazer material e pessoal, especialmente médicos e enfermeiros, para atender aos indígenas. A base rapidamente tornou-se um dos principais pontos de apoio à Expedição.

Foi no posto Leonardo que Orlando Villas Bôas conheceu sua mulher, Marina, trabalhou e morou até 1973. Após anos dentro do parque, o sertanista foi substituído por Olímpio Serra, administrador do Xingu por três anos. Olímpio foi responsável pela contratação dos primeiros índios como funcionários da recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai).

O posto continuou administrado por não-índios até 1981, quando assumiu a chefia do parque o indigenista Cláudio Romero. Ele foi um dos principais articulistas para, finalmente em 1982, transferir a administração do Xingu a um índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó.

Uma das primeiras medidas de Megaron foi transferir para índios o controle dos postos indígenas e de vigilância do parque. Assim, a administração do Leonardo ficou a cargo do índio Piracumã, da tribo Iaualapiti, irmão do cacique Aritana e atual diretor do Parque Indígena do Xingu.

Atualmente chefiado por Kokoti Aweti, o posto continua sendo um dos pontos mais movimentados do Xingu. Além de receber visitantes e pesquisadores durante o ano inteiro, a unidade presta atendimento médico, odontológico e abastece toda a região do Alto Xingu.

Xingu: Primeiras Impressões II

Acordamos com o movimento ao raiar do dia. No meio da aldeia encontramos alguns homens, inclusive Ualá e seu tio avô Aiupu, que conhecemos em Brasília. Acompanhando o resto da aldeia, seguimos para tomar nosso banho matinal. O que impressionou no Tuatuari, afluente do Xingu, foram a água inacreditavelmente morna e a quantidade de peixes que pulavam.

Conversando com o pessoal descobrimos um fato curioso: a maior parte dos Yawalapiti é vascaína. Entre os mais de duzentos índios da tribo, existem apenas cinco flamenguistas e o Ualá, que é fluminense. Depois disso, fomos convidados para ver a pesca com timbó.

Parte da tradição xinguana, este tipo de pesca acontece uma vez por ano, quando o rio começa a baixar. Os índios fecham um pequeno canal com redes de pesca e batem n’água com uma planta chamada timbó. A seiva deste cipó entorpece os peixes, deixando-os sem oxigênio. Em desespero eles começam a nadar próximo à superfície, boiar e até pulam pra dentro das canoas, estrategicamente posicionadas.

criancasxingu.jpgDepois de uma reza para que os peixes pulem, o timbó começa a ser batido. Os primeiros a terem direito de pescar são as crianças pequenas, ou aqueles que ainda não se envolveram com mulheres. Aritana explica que isto faz parte do treino de uso do arco e flecha, “nós não podemos ajudar em nada, eles flecham e guardam o que pegam, não tocamos os peixes deles nem com o pé”. Certo tempo depois, a pesca é liberada para todos. Ao final da manhã, as canoas voltaram carregadas de dois Trairões, alguns Tucunarés e centenas de Curimatás. Mesmo assim, muita gente achou a pescaria fraca.

Alguns meninos da tribo Yawalapiti posam para foto. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Esta foi a segunda e última vez que este tipo de pescaria acontece neste ano, saímos frustrados porque não levamos as máquinas fotográficas. Mas eles explicam que isto é necessário, senão o peixe acaba. Parte do produto da pesca foi repartido entre as casas da aldeia e a outra parte foi separada, ela estava reservada para os kamaiurá, tribo que mora longe do rio e havia sido convidada para uma partida de futebol ao final da tarde.

Almoçamos beiju com três Tucunarés escolhidos especialmente por Aritana. Conversamos com o cacique até a chegada do caminhão com o time kamaiurá. Os times entraram em campo devidamente uniformizados, enquanto a platéia assistia saboreando pescado com beiju. Assistimos o início do jogo, mas o cansaço foi batendo. Aritana providenciou redes para todos e cochilamos durante o segundo tempo. O placar final foi Iaulapiti 2 X 7 Kamaiurá.

Por volta das 17h nos reunimos com Aritana, Aiupu e mais alguns homens da aldeia. Explicamos com calma como era nosso projeto e constatamos que teríamos de vir para o Posto Leonardo Villas Bôas, localizado a cerca de 6km da aldeia. Isto foi necessário porque precisamos carregar as baterias dos equipamentos e o posto tem gerador.

Aritana nos levou de caminhonete para o posto da Funai, dirigido por seu irmão Kokoti. Para nossa alegria, fomos alojados na casa que foi do Orlando Villas Bôas na época em que esteve no Xingu. A casa fica em frente ao Tuatuari, limpinho, quente, bom para beber, tomar banho e lavar roupa. Resumindo, estamos num histórico hotel cinco estrelas em pleno Xingu.

Segunda-feira, 14/05/2001

A confusão se instalou de vez e me impede de escrever qualquer coisa para o diário. As dúvidas sobre a relação entre índios e não-índios são muitas, principalmente depois de uma conversa com o Guilherme Carrano, indigenista da Funai que se juntou ao grupo hoje e vai nos acompanhar até o fim do trajeto. É muito complicado até mesmo encarar o conflito, pois a situação mexe com diversas idéias e crenças desde pequeno difundidas, é um exemplo explícito, palpável, da dúvida sobre (a existência do) o certo e o errado, sobre o processo histórico.

Já ouvi reclamações sobre a superficialidade dos assuntos. Tenho defesas: não tenho tempo e, principal, aprendi a resolver meus problemas (no caso, um prazo diário para atualizações) com o que tenho, mesmo sabendo não ser esta a melhor solução.

guilhermecarrano.jpgMas, neste caso específico – o equilíbrio tenso entre índios e não-índios ou entre índios e civilizados, como insistem alguns -, a falta de referencial é uma barreira. Então, acredito que o melhor seja permanecer quieto, sem expressar opiniões, pelo menos até conhecer o outro lado. Espero que no Xingu eu consiga escrever algo. Desculpem a confusão, mas o assunto é confuso.

Guilherme Carrano, indigenista da Funai e novo menbro da expedição. Com quase trinta anos de experiência entre diversas etnias, sua ajuda vai ser fundamental. Foto: Fernando Zarur

Bruno Radicchi