Preconceito ao índio

O preconceito contra o índio é um dos modos de descriminação mais fortes e agressivos do Brasil.

Nas cidades próximas às reservas, é um problema ainda mais acentuado. Os xinguanos, que se mantêm mais afastados não sofrem tão diretamente com o problema. Os Xavante, no entanto, tem suas terras mais próximas. Além disso, a etnia conseguiu reconquistar boa parte de seu território depois de um processo de luta que existe ainda hoje contra forças políticas e grandes proprietários locais.

Na década de 1970, os caciques da região de Pimentel Barbosa se uniram para expulsar os fazendeiros e demarcar sua reserva. Em resposta a tiros e assassinatos, os índios começaram a atacar e incendiar fazendas até ocupar uma área de 328mil hectares de extensão que mais tarde foi reconhecida pelo governo e Funai.

Em 2004 os Xavante viveram outro conflito, quando posseiros se recusavam a desocupar a reserva de Marãwatsede. Três crianças morreram e outras oito foram internadas com pneumonia e subnutrição por causa das condições de vida da comunidade que vagava à beira da rodovia esperando permissão para voltar à sua terra. Resultado de 40 anos de luta, a área foi reconhecida e homologada como terra indígena em 1995 e mesmo assim uma batalha judicial não permitia o acesso dos índios à terra. Somente agora, depois de mortes, ameaças e brigas, os índios conseguiram ocupar de novo a região.

Sereburã, ancião da aldeia de Pimentel Barbosa, próximo a Marãwatsede, dá sua visão dos acontecimentos. “Nós mesmos tocamos os fazendeiros. Por isso que temos este espaço (reserva de Pimentel Barbosa) pequenininho hoje. Para branco é grande, para nós é pequeno. Fizemos isso sem a ajuda de ninguém. Agora vivemos aqui, espero que vocês respeitem a gente e nossos direitos. Espero que vocês passem essa informação ao seu povo. O povo Xavante é assim: usa pulseira, tem cordão no pescoço e brinco pra arrumar mulher nova. Nossa identidade é essa. Sou do tempo em que os homens andavam pelados e estou aqui, vivo.”

[box]

Continue lendo:

[/box]

A história segundo os índios

Nesta terça-feira, dia 29, fomos conhecer a aldeia Xavante de Pimentel Barbosa – a cerca de 100kms de Canarana, sendo 60km de terra – para conversar com o cacique Supitó e com velhos que viveram os primeiros contatos com o não-índio.

Chegando lá, fomos recebidos no Waitá, lugar de reunião no centro da aldeia. Um a um, todos os homens foram chegando e nos cumprimentando. Supitó já havia explicado à tribo o objetivo da entrevista: ouvir a versão indígena da colonização da região. O vice-cacique Paulo nos ajudou como intérprete.

rupawe.jpgO primeiro a falar foi Rupawe. De pé e apoiado numa bengala, conforme o estilo de oratória xavante, ele nos contou sua história: “Antigamente, quando eu era pequeno, não tinha branco. Era só índio Xavante, a gente era uma nação única. Quando eu era adolescente, eu comecei a ouvir sobre o branco. O pessoal sabia que tinha outro povo por causa do jeito diferente da queimada, da fumaça. Eu tinha medo. Quando eu era rapaz, comecei a entender que tinha outro povo querendo se aproximar. Naquela época, a tribo tinha rastreadores, que rondavam e fiscalizavam a terra. Eles começaram a trazer notícia do branco. Só aí comecei a acreditar que existia outro povo.

"Antigamente, quando eu era pequeno, não tinha branco. Era só índio Xavante, a gente era uma nação única." conta Rupawe. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Teve até um grupo de rastreadores que entrou em conflito com os brancos. Cada tiro, foguete, dava medo. Me chamaram para tentar entrar em contato. Um dia eu ouvi tiro e um rastreador me avisou de onde veio. Aí eu fui lá e vi as pessoas. Eu pensava que eles estavam todos pintados, por causa do pêlo na cara e no corpo. Eles jogaram presente e só uma pessoa entregou duas facas na minha mão. Depois, eles foram embora.”

serezabdi.jpgApós a tradução de Paulo, o próximo a se levantar foi Serezabdi. Ele começou a nos responder sobre quem teriam sido responsável por esta aproximação: “Foi o Francisco Meireles. Ele trouxe sua equipe e foi a única pessoa que se interessou em entrar em contato com os Xavante. Tinha um índio xerente que ajudava a rastrear a gente. Aí o povo se aproximou.

Mas tem muita história do tempo dos meus pais. Meu avô pedia para não matar o branco, mas havia outros que não queriam isso. Os jovens se escondiam para matar os brancos e provar que tinham coragem. Tinha muita coisa.

Na abertura da estrada (BR-158), os índios tentavam seguir os trabalhadores, mas eles estavam a cavalo e iam mais rápido. Eles deixaram presentes, mas a gente não encontrou ninguém.”

"Meu avô pedia para não matar o branco, mas havia outros que não queriam isso. Os jovens se escondiam para matar os brancos e provar que tinham coragem." explica Serezabdi. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Depois disso, comentamos um pouco mais o assunto. Naquele tempo, a Expedição Roncador-Xingu saiu de Xavantina e passou por território xavante, onde sofreu um ataque dos índios. Eles explicam que, naquela época, a etnia havia se espalhado por toda a região. A picada dos irmãos Villas Bôas teria passado por outra tribo, atualmente localizada na Reserva Indígena de Areões.

Com a colonização da área pela Fundação Brasil Central, cidades e fazendas começaram a invadir terras indígenas. Sob a pressão do não-índio, os Xavante perderam boa parte de seu território original. Na década de 70, porém, os caciques da região de Pimentel Barbosa se uniram e começaram a expulsar os fazendeiros para demarcar sua reserva.

serebura.jpgSegurando uma pequena borduna, Sereburã se levantou para nos contar como isso aconteceu: “Eu vou contar essa história porque vocês não conhecem, ainda são muito novos. Vocês ainda estavam dentro do saco do seu pai quando isso aconteceu.

Antigamente a terra era muito pouca. Não sei o ano, começaram a enxergar que o branco estava se aproximando demais da aldeia. Achamos melhor tocar eles daqui e começamos a fazer um trabalho para botar medo neles.

Primeiro fomos à fazenda Santa Vitória porque o dono de lá ameaçava os índios de morte. A gente atirava no branco não pra machucar, só para tocar embora. Pegamos as coisas deles e botamos fogo na casa. A gente fazia isso para eles não poderem voltar. Assim foi, também, com a Caçula e todas as fazendas perto da aldeia.

"O povo Xavante é assim: usa pulseira, tem cordão no pescoço e brinco pra arrumar mulher nova. Nossa identidade é essa." afirma Sereburã Foto: Pedro Ivo Alcântara

Nós mesmos tocamos os fazendeiros. Por isso que temos este espaço (reserva de Pimentel Barbosa) pequenininho hoje. Pra branco é grande, pra nós é pequeno. Fizemos isso sem a ajuda de ninguém.

Agora vivemos aqui, espero que vocês (não-índios) respeitem a gente e nossos direitos. Espero que vocês passem essa informação ao seu povo.

O povo Xavante é assim: usa pulseira, tem cordão no pescoço e brinco pra arrumar mulher nova. Nossa identidade é essa. Sou do tempo em que os homens andavam pelados e estou aí, vivo.”

Xavantes – um povo guerreiro

Espalhados pela região da Serra do Roncador e do Vale do Araguaia, os Xavantes já dominaram grande parte da região Centro-Oeste brasileira. Originários de Goiás, migraram para o Mato Grosso no século XIX fugindo dos aldeamentos de colonização no interior do estado.

A migração durou alguns anos e, após atravessarem o Rio Araguaia, entraram em conflitos com os índios Karajá que ocupavam a região da Ilha do Bananal. Posteriormente, brigas internas causaram a divisão da etnia em várias aldeias, que se espalharam e povoaram o vale do Rio das Mortes, iniciando os primeiros contatos com o não-índio.

Tentativas de Catequização

Na região do rio Garças, no início do século XX, alguns grupos Xavante encontraram as missões salesianas de Merúri, no Mato Grosso, que catequizavam os Bororos. Esta aproximação motivou a fundação da missão de São Marcos, às margens do Rio das Mortes, com o intuito de atrair os xavantes. Durante anos os padres buscaram inutilmente contatar os índios, que resistiram se escondendo e atacando quem adentrasse seu território. Em 1932, por exemplo, dois padres foram mortos quando abordaram um grupo de índios.

As missões salesianas, interessadas na conversão e na terra dos índios, se tornaram parceiras do governo Getúlio Vargas na empreitada. Em trecho de carta enviada ao presidente Getúlio Vargas no ano de 1938, o Padre Hipólito Chovelon, diretor da missão salesiana, deixa claro as intenções da Igreja: “O Rio das Mortes percorre uma zona riquíssima de campinas e matas, próprias para lavoura e criação de gado. O povoamento depende tão só da pacificação dos índios xavante que até agora fazem o terror dos moradores das vizinhanças pelas suas correrias e ataques traiçoeiros. Daí percorre a necessidade urgente de amparar a missão salesiana (…), abrindo assim essa imensa zona entre os rios Xingu e Araguaia aos progressos da nossa civilização”.

O indigenista Guilherme Carrano, com mais de 20 anos de trabalho entre os Xavantes, acredita que a ideologia catequizadora e progressista da Igreja contribuiu para a destruição da cultura da etnia. “Os salesianos colocavam os índios em regime de internato, separando pais e filhos, obrigando-os a usarem roupas e tentando proibir festas e a língua indígena”, afirma Carrano.

Aproximação

serebura2.jpgCom a ação da Fundação Brasil Central e a ocupação da região, tornou-se necessário o contato com os índios. Em 1941, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) fez uma tentativa pioneira de aproximação. Porém, esta primeira iniciativa fracassou. A equipe comandada pelo sertanista Pimentel Barbosa foi massacrada. Apenas no final da década de 1940, o SPI conseguiu estabelecer relações regulares com os Xavante.

Sereburã, um dos líderes da reserva de Pimentel Barbosa, é um remanescente dos tempos quando os Xavantes da região de Água Boa ainda não tinham contato com o “branco”.- Foto: Fábio Pili

Nesta época, passou pela região a Expedição Roncador-Xingu. O sertanista Orlando Villas Bôas conta que os trabalhadores foram cercados pelos xavantes perto do Rio das Mortes. “Ouvimos uma gritaria vindo do lado direito da picada e o Cláudio (Villas Bôas) reuniu todos num lugar só. Por uma sorte danada, tinha um cupim enorme e o Cláudio resolveu subir nele. Exatamente na hora que ele subiu, avistou um grupo de uns 40 ou 50 índios xavantes avançando camuflados com folha de palmeira”, conta o sertanista. Este ataque foi impedido com tiros para o alto. Os expedicionários continuaram sendo seguidos e vigiados enquanto cruzaram a região de cerrado habitada pelos Xavante.

Demarcação

Após anos de dominação, teve início a luta pela demarcação das reservas. Na década de 1970, os principais caciques xavantes se uniram à Funai e a indigenistas para retomar o território ocupado pelas fazendas que se instalaram na região. Foi um processo tenso, repleto de incidentes entre índios e fazendeiros.

Hoje os Xavantes reconquistaram parte de seu território. As aldeias, somando cerca de 10.000 habitantes, estão localizadas dentro de reservas demarcada, como a de Pimental Barbosa, com 328mil hectares de extensão.

Invasão Branca

No pouco tempo que estivemos no Alto Xingu, foi possível perceber a dimensão, complexidade e o pouco interesse da mídia sobre a questão indígena. Seria necessário um trabalho maior e mais aprofundado para mostrar a situação atual da reserva, porém, nestes dez dias que passamos entre as aldeias e Posto Indígena Leonardo Villas Bôas conhecemos alguns dos problemas da comunidade xinguana.

Enfrentando cada uma destas questões há várias décadas, o índio está cada vez mais preparado para encará-las com seus próprios recursos. No livro “Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingu”, publicado no ano de 1975, o antropólogo George Zarur aborda este tema: “o ideal é que a Funai possa se limitar a uma assistência básica e garantir a terra e que os xinguanos tenham a consciência de uma realidade que lhes permita entender o valor de sua cultura nativa(…), é importante que seja transferido aos índios os instrumentos ideológicos para uma interação simétrica e com dignidade com a sociedade nacional”. Vinte e seis anos depois, o movimento indígena continua lutando contra o excesso de interferência de instituições externas como o Instituto Sócio-Ambiental, a Funasa e a própria Funai.

riokuluene.jpgDiferente de outras áreas índigenas do Brasil, que foram praticamente dizimadas, o Xingu foi privilegiado pelo bem sucedido trabalho político e de preservação realizado pelos irmãos Villas Bôas. Atualmente, esta responsabilidade recai sobre os ombros de lideranças esclarecidas, como o cacique Aritana. Sofrendo pressões das mais diversas formas, ele continua firme na defesa dos interesses xinguanos: “O Orlando já fez coisa demais para nós, agora é nossa vez de cuidar daqui. Nós não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente, queremos que os próprios índios se relacionem com o governo, mandem documentos, contratem médicos e professores”, afirma o cacique.

Rio Kuluene, um dos ameaçados pela devastação das nascentes fora da área indígena do Xingu. Foto: Fernando Zarur

Preservação Cultural

Em primeiro lugar, é preciso lembrar a heterogeneidade entre as etnias, que varia muito com a liderança. Os Yawalapiti, liderados pelo cacique Aritana, são um exemplo de consciência ambiental e cultural. A aldeia, assim como todas as outras, tem diversas interferências do mundo externo, como televisão, barco a motor e rádio. No entanto, os Yawalapiti ainda obedecem a um cotidiano tipicamente indígena: não há horário para comer, o trabalho é coletivo e os rituais religiosos são muito respeitados.

Manter este estilo de vida, aparentemente simples, depois de mais de meio século de contato com o não-índio pode ser considerado uma façanha. Esta luta teve início na década de 1950, quando os irmãos Villas Bôas começaram a conversar e a preparar alguns índios para reagir ao inevitável processo de devastação cultural vindo dos grandes centros urbanos. Parú, pai de Aritana, conta que Orlando o ensinava a lidar com os brancos, explicando como muitas coisas aconteciam lá fora. “Ele (Orlando) falava pra mim: ‘Estou ensinando você, e você precisa passar isso para os seus filhos e netos’. Foi isso que fiz”, conta Parú.

Por outro lado, nem todas as tribos do Alto Xingu compartilham desta mentalidade. Diversos povos estão ameaçados a perder sua cultura original. Recentemente, algumas aldeias vêm sendo assediadas por empresários norte-americanos interessados em investir em turismo dentro do Parque. O projeto sofreu forte objeção das lideranças e foi vetado pela Funai. O turismo significaria a destruição da identidade étnica do Xingu, transformando-a em artificial. Mesmo assim, um pequeno hotel foi construído dentro da aldeia Kamaiurá.

Educação

É necessário um enorme cuidado com a educação dentro do Xingu. Os índios sentem a necessidade de educar e conscientizar o jovem, porém, este pode ser um dos caminhos mais rápidos para a aculturação. O ideal, na visão do cacique Aritana, seria contar com professores da própria aldeia, que conhecessem e respeitassem o cotidiano tradicional da tribo. Esta preparação já está sendo feita, mas por enquanto não existem profissionais indígenas formados.

Os professores não-índios que atuam no Posto Leonardo Villas Bôas sofrem com uma série de obstáculos, como salários atrasados e falta de preparo específico sobre a realidade xinguana. O material didático utilizado, por exemplo, foi produzido pelo município de Gaúcha do Norte-MT e utiliza ilustrações de índios garimpando ou entre padres.

Atualmente, quem mais tenta investir na educação xinguana é o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), organização não governamental que atua na questão indígena em todo território nacional. Com plantas para construção de escolas e programas educacionais prontos, o instituto enfrenta a resistência das lideranças do Alto Xingu para lançar seus projetos.

Exploração Econômica

A exploração econômica de seus recursos naturais é outra questão de extrema importância para os índios do Alto Xingu. A interferência de instituições e empresas internacionais dentro do território indígena, é um problema constante.

O próprio trabalho do Instituto Sócio-Ambiental – com a intenção de ajudar e procurar alternativas de renda para a comunidade indígena – não é visto com bons olhos na região. “Eles vem para cá e começam a fazer os projetos, a gente não sabe de nada. Além do mais, ninguém pediu para eles virem para cá” afirma Kokoti, chefe do Posto Indígena Leonardo Villas Bôas.

O último projeto do instituto nesta área, está relacionado à produção de óleo de pequi, em parceria com a indústria de cosméticos Natura. Quando chegamos a aldeia Yawalapiti, os homens estavam sentados no centro da aldeia lendo uma edição da revista Exame. Na matéria, este projeto estava descrito como uma ótima oportunidade de negócio, sob o título: “O Tesouro Verde”. Aritana reclamou da mesma forma: nenhum índio do Alto Xingu havia sido consultado previamente sobre a iniciativa. Financiado por grandes organizações internacionais, o ISA tem uma forte presença entre a comunidade ao norte do Parque, mas é visto com muita desconfiança pelas lideranças do sul.

A biodiversidade, aliás, é um dos pontos mais vulneráveis do Parque. São muitas as histórias de pesquisadores estrangeiros que ganharam bilhões de dólares a custo do conhecimento indígena. Cada vez mais, as ervas e os segredos de raizeiros, como Parú, são alvo das multinacionais. O tradicional urucum, por exemplo, foi patenteado por entidades americanas. A banha de sucuri, usada há anos pelos índios como alívio para contusões, teve seu princípio ativo descoberto e hoje é utilizado em diversos medicamentos.

Da mesma forma que as plantas, o subsolo do Xingu está entre os mais visados no mundo. A região ainda é preservada da exploração de empresas do ramo, mas há quem veja isso como um grande problema para o futuro.

Um exemplo de como essas ameaças são reais é o mistério de um helicóptero que visitou a reserva por volta de março deste ano. Os índios Mehinako avistaram a aeronave pousando próximo às roças da aldeia. Ao aproximarem-se, os tripulantes levantaram vôo rapidamente e fugiram. Por mais de uma vez, o barulho das hélices foi ouvido dentro do Parque e a Funai foi comunicada, mas até agora os propósitos destas visitas são desconhecidos.

Devastação ambiental

Nos últimos anos, porém, a principal preocupação dos xinguanos é a devastação da cabeceira dos rios que formam a bacia do Xingu. Com o avanço do desmatamento das fazendas em torno da reserva, em poucos anos as águas que abastecem todas as aldeias do Parque podem estar contaminadas com agrotóxicos e metais pesados. Além disso, toda a a

limentação indígena é baseada no peixe. Caso haja uma diminuição nos cardumes, haverá fome entre as tribos.

Visando solucionar este assunto, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) já começou um programa para construir poços artesianos como alternativa de água potável. No entanto, isto seria um paliativo para uma situação que será desesperadora para a maior parte das aldeias do Xingu.

É urgente a criação de um movimento de conscientização para a preservação das margens dos rios formadores do Xingu, não só pelos índios, mas também pela preservação de todo o ecossistema da região.

Entrevista: cacique Aritana Yawalapiti

O cacique Aritana, 51 anos, é hoje a mais respeitada liderança do Alto Xingu. Desde quando assumiu a chefia dos Yawalapiti, há cerca de 20 anos, ele luta pela preservação da cultura e dos hábitos dos índios xinguanos. “É muito difícil mostrar aos jovens a importância de manter nossos costumes, mas com conversa eles estão vendo que é melhor sermos o que a gente é: índio”, explica o cacique.

Preparado desde cedo para ser cacique, Aritana conheceu os irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas ainda criança, no final da década de 1950. “Aprendi muito com eles sobre a importância de se preservar os hábitos antigos”, conta o chefe. Sob estas influências, ele se tornou um grande líder da causa indígena dentro e fora do Xingu.

Grupo – A educação indígena, desde a época que os Villas Bôas estavam no parque, era uma questão polêmica. Eles defendiam que o índio deveria ter o mínimo possível de contato com a cultura do branco. Como está isso hoje?

aritanaentrevista.jpgAritana – É triste, mas eu acho que alguns projetos de educação estão acabando com a cultura do Alto Xingu. Já vejo que os jovens não gostam mais tanto de falar sua língua, preferem usar roupa e estão mais interessados nas coisas do branco. O problema é que os professores ensinam os valores dos brancos e os jovens param de respeitar as tradições. O Kuarup, por exemplo, é uma festa muito séria e importante pra gente. É a festa dos mortos. E no último Kuarup eu percebi que alguns jovens achavam que isso é brincadeira.

Na época do Orlando (Villas Bôas), por exemplo, havia preocupação em manter a cultura e a educação do jeito do índio. Eu era pequeno e ficava chateado, perguntando porque o Orlando não dava chinelo e bicicleta. Depois é que eu fui entender que era pra gente manter a força na perna. Se a criança anda de chinelo o dia todo ela não consegue mais subir em árvore.

"É o índio que tem que falar seu direito, que tem que preparar documento. A saúde, é o branco que está mandando, a mesma coisa a educação. Mas eu quero é que o índio contrate o médico, o professor, e manda pra cá". Foto: Fernando Zarur

Grupo – Existem propostas de geração de renda para as aldeias, principalmente por meio do turismo. Como você vê essa situação?

Aritana – Estão sempre procurando a gente para fazer projetos. Nossa aldeia aqui é o primeiro lugar em que eles passam, mas eu sempre digo que não. A primeira proposta que recebi era pra colocar lanchas de luxo e um avião trazendo gente de uma fazenda perto do parque para a aldeia. Recebemos propostas quase todo dia. Recusamos porque não queremos nem precisamos do dinheiro de branco para viver bem aqui.

Outras tribos já aceitaram porque querem dinheiro. O problema aqui é que as tribos que aceitam visitas de turistas deviam reunir as lideranças do Xingu para conversar sobre a questão, mas isso não acontece. Tivemos uma reunião em Brasília para discutir o problema, e foi uma discussão brava, mas nós não abrimos mão da nossa posição contra turismo aqui. Tem que ser firme. No final, todo mundo que aceita turista se arrepende.

Grupo – E você acha que o índio está bem representado politicamente pela Funai e pelas ONGs que trabalham por aqui?

Aritana – Não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente. A gente quer que os próprios índios se relacionem direto com o governo e mandem documentos falando dos problemas. A saúde é o branco que está mandando. A mesma coisa com a educação. Mas eu quero que o índio contrate o médico, o professor e mande pra cá. É só assim que a gente vai poder cuidar bem de verdade dos nossos interesses.

Grupo – E no futuro, quando os novos estiverem no comando das aldeias, como vai ser?

Aritana – Nós ensinamos aos jovens que é bom aprender a língua do branco para não ser enganado. O que tem que acontecer é aprender o que o branco tem de bom, mas não perder nossa cultura. Hoje a gente já usa barco a motor para as viagens longas e tem televisão na aldeia pra saber das notícias, mas eu não deixo as crianças verem televisão muito tempo.

Os índios aqui do Alto (Xingu) são mais preservados, mas os do Baixo tiveram mais contato com os brancos, então eles ficaram dependentes das coisas de branco. Os Caiabis, por exemplo, vieram da região de Rio Peixoto, que foi estragada por seringueiros e garimpeiros. Eles gostam muito daqui do Xingu, mas ainda precisam muito das coisas do branco, como roupa, sabonete e sal. Aqui a gente tem tudo que precisa.

Posto Leonardo Villas Bôas

Leonardo Villas Bôas, ao lado de Orlando, Cláudio e personalidades como Marechal Rondon, Noel Nutels e Darcy Ribeiro, foi um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Infelizmente, no mesmo ano da criação da reserva, 1961, Leonardo morreu de problemas cardíacos. Como homenagem ao seu trabalho desde o início da Expedição, o antigo posto indígena Capitão Vasconcelos, principal base do Alto Xingu, foi renomeado Leonardo Villas Bôas.

Localizado às margens do rio Tuatuari, o posto atende a mais de oito etnias, como Kuikuros, Kalapalos, Iaualapiti, Kamaiurá, Waurá e Aweti. O local foi escolhido ainda na época do avanço da Expedição Roncador Xingu, pois era necessária a construção de uma ampla pista de pouso, com capacidade para receber aviões maiores, melhorando a capacidade de abastecimento do grupo.

casapostoleonardo.jpgDepois de procurar em diversas praias, finalmente foi encontrado um local ligeiramente elevado e plano, com terreno firme, banhado por um rio de águas limpas e com peixe em abundância. O índio Parú, rezador e raizeiro dos iualapiti, acompanhou Orlando na busca e lembra que os expedicionários sofriam muito com falta de abastecimento, comendo apenas mel e peixe.

Antiga casa de Orlando (esq.) ao lado da casa onde morou Marina Villas Bôas. Os prédios continuam sendo utilizados como alojamento. Foto: Fernando Zarur

O trabalho de apenas cinco índios Iualapiti, conta Parú, conseguiu abrir e inaugurar em pouco tempo o campo de pouso. Utilizando aeronaves, especialmente do CAN (Correio Aéreo Nacional, serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), foi possível trazer material e pessoal, especialmente médicos e enfermeiros, para atender aos indígenas. A base rapidamente tornou-se um dos principais pontos de apoio à Expedição.

Foi no posto Leonardo que Orlando Villas Bôas conheceu sua mulher, Marina, trabalhou e morou até 1973. Após anos dentro do parque, o sertanista foi substituído por Olímpio Serra, administrador do Xingu por três anos. Olímpio foi responsável pela contratação dos primeiros índios como funcionários da recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai).

O posto continuou administrado por não-índios até 1981, quando assumiu a chefia do parque o indigenista Cláudio Romero. Ele foi um dos principais articulistas para, finalmente em 1982, transferir a administração do Xingu a um índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó.

Uma das primeiras medidas de Megaron foi transferir para índios o controle dos postos indígenas e de vigilância do parque. Assim, a administração do Leonardo ficou a cargo do índio Piracumã, da tribo Iaualapiti, irmão do cacique Aritana e atual diretor do Parque Indígena do Xingu.

Atualmente chefiado por Kokoti Aweti, o posto continua sendo um dos pontos mais movimentados do Xingu. Além de receber visitantes e pesquisadores durante o ano inteiro, a unidade presta atendimento médico, odontológico e abastece toda a região do Alto Xingu.

Xingu: Primeiras Impressões II

Acordamos com o movimento ao raiar do dia. No meio da aldeia encontramos alguns homens, inclusive Ualá e seu tio avô Aiupu, que conhecemos em Brasília. Acompanhando o resto da aldeia, seguimos para tomar nosso banho matinal. O que impressionou no Tuatuari, afluente do Xingu, foram a água inacreditavelmente morna e a quantidade de peixes que pulavam.

Conversando com o pessoal descobrimos um fato curioso: a maior parte dos Yawalapiti é vascaína. Entre os mais de duzentos índios da tribo, existem apenas cinco flamenguistas e o Ualá, que é fluminense. Depois disso, fomos convidados para ver a pesca com timbó.

Parte da tradição xinguana, este tipo de pesca acontece uma vez por ano, quando o rio começa a baixar. Os índios fecham um pequeno canal com redes de pesca e batem n’água com uma planta chamada timbó. A seiva deste cipó entorpece os peixes, deixando-os sem oxigênio. Em desespero eles começam a nadar próximo à superfície, boiar e até pulam pra dentro das canoas, estrategicamente posicionadas.

criancasxingu.jpgDepois de uma reza para que os peixes pulem, o timbó começa a ser batido. Os primeiros a terem direito de pescar são as crianças pequenas, ou aqueles que ainda não se envolveram com mulheres. Aritana explica que isto faz parte do treino de uso do arco e flecha, “nós não podemos ajudar em nada, eles flecham e guardam o que pegam, não tocamos os peixes deles nem com o pé”. Certo tempo depois, a pesca é liberada para todos. Ao final da manhã, as canoas voltaram carregadas de dois Trairões, alguns Tucunarés e centenas de Curimatás. Mesmo assim, muita gente achou a pescaria fraca.

Alguns meninos da tribo Yawalapiti posam para foto. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Esta foi a segunda e última vez que este tipo de pescaria acontece neste ano, saímos frustrados porque não levamos as máquinas fotográficas. Mas eles explicam que isto é necessário, senão o peixe acaba. Parte do produto da pesca foi repartido entre as casas da aldeia e a outra parte foi separada, ela estava reservada para os kamaiurá, tribo que mora longe do rio e havia sido convidada para uma partida de futebol ao final da tarde.

Almoçamos beiju com três Tucunarés escolhidos especialmente por Aritana. Conversamos com o cacique até a chegada do caminhão com o time kamaiurá. Os times entraram em campo devidamente uniformizados, enquanto a platéia assistia saboreando pescado com beiju. Assistimos o início do jogo, mas o cansaço foi batendo. Aritana providenciou redes para todos e cochilamos durante o segundo tempo. O placar final foi Iaulapiti 2 X 7 Kamaiurá.

Por volta das 17h nos reunimos com Aritana, Aiupu e mais alguns homens da aldeia. Explicamos com calma como era nosso projeto e constatamos que teríamos de vir para o Posto Leonardo Villas Bôas, localizado a cerca de 6km da aldeia. Isto foi necessário porque precisamos carregar as baterias dos equipamentos e o posto tem gerador.

Aritana nos levou de caminhonete para o posto da Funai, dirigido por seu irmão Kokoti. Para nossa alegria, fomos alojados na casa que foi do Orlando Villas Bôas na época em que esteve no Xingu. A casa fica em frente ao Tuatuari, limpinho, quente, bom para beber, tomar banho e lavar roupa. Resumindo, estamos num histórico hotel cinco estrelas em pleno Xingu.

Xingu: Primeiras Impressões I

Pela primeira vez deixamos de atualizar nossa página, mas fomos pegos por uma grata surpresa. Hoje fomos pela manhã à Atix (Associação Terra Indígena Xingu), em Canarana, e descobrimos que nossa lancha para descer o rio Kuluene já estava nos esperando no ponto combinado. Nos dividimos, Pedro e Fábio providenciaram 450 litros de gasolina e 27 frascos de óleo para abastecer o barco. Bruno, Guilherme e Fernando seguiram para o supermercado, onde compramos suprimentos para a viagem.

Ainda tivemos de organizar nossa bagagem, fechar o hotel, arranjar um frete e alguma coisa para fingir que almoçamos. Em três horas conseguimos botar tudo numa caminhonete e seguir para as margens do Kuluene. Bruno, Fernando e Pedro atravessaram os mais de 100km de estrada de terra na carroceria, o Fábio estava meio gripado e achamos melhor que ele fosse na cabine. Para nossa sorte, a chuva, que não havia aparecido nenhuma vez desde Brasília, resolveu cair.

embarquexingu.jpgAtravessamos diversas fazendas de gado e algumas matas ainda preservadas. Chegamos ao rio às 18h, descemos os tambores de combustível e nossa bagagem com a ajuda do motorista, Seu Reizinho, fretista e vereador de Canarana. Nos esperando estava Ualá, piloto e filho do cacique Aritana, da tribo Yawalapiti.

Equipamentos sendo carregados no barco para a viagem até a aldeia Yawalapiti. Foto: Fábio Pili

Saímos uma meia hora mais tarde, pegando o fim do dia no início da viagem, prevista para seis horas. Logo escureceu e continuamos navegando graças à habilidade de Ualá, acostumado a viajar de noite. Com muito vento e umidade, o frio começou a piorar cada vez mais. Nos encolhendo como podíamos, tentávamos improvisar algum apoio para a coluna e nos defender dos mosquitos, que não picavam, mas esborrachavam na cara.

Apesar de não termos lua, acompanhamos o caminho sob um céu incrivelmente estrelado. De vez em quando, o Guilherme iluminava os olhos dos jacarés nas praias, o que nos fazia encolher um pouco mais. Tremendo e morrendo de cansaço aportamos na aldeia Iaualapiti. Com fome, empoeirados, molhados e com frio subimos uma trilha passando pelas primeiras ocas, uma delas, ainda em construção, nos lembrava algo de outro mundo. Acordamos Aritana por volta da meia-noite, ele nos recebeu como todo grande chefe xinguano, usando apenas um cordão em torno da cintura.

Desembarcamos todos os apetrechos para dentro da oca da família de Aritana. Dentro da casa estava agradavelmente quente, volta e meia alguém atiçava o fogo de baixo das redes. Tentando não atrapalhar, o Bruno e o Guilherme amarraram as redes e o resto esticou os sacos de dormir.

Cotidiano na Aldeia

O dia no Posto Indígena Leonardo Villas Bôas, lugar onde estamos hospedados no Alto Xingu, começou antes do sol nascer. Ainda escuro, o cozinheiro preparava a refeição: leite, café e umas bolachas água e sal que trouxemos de Canarana. Enquanto isso, as mulheres e crianças índias tomavam banho no rio, fazendo um barulho que tornou impossível o sono.

construcao_oca_fernando.jpgÀs 7:30, quando levantamos, Aumary, irmão do cacique Aritana, da tribo Yawalapiti, já nos esperava com a Toyota. Nos preparamos, subimos na caçamba e tomamos o rumo da aldeia. Ao chegar, encontramos os homens ajudando na construção de uma maloca. Eles fazem mutirões no qual o dono da casa deve arrumar todo material, como imbira, sapê e madeira para armação, enquanto o resto dos homens da tribo ajuda na construção. No meio de toda a atividade, foi morta uma inocente jararaca que perambulava por ali, motivo de agitação e curiosidade entre as crianças da aldeia.

Com trabalho coletivo, os homens da tribo ajudam na construção de cada oca da aldeia. Foto: Fernando Zarur

Após vermos e fotografarmos o trabalho na oca, passamos o resto da manhã conversando no centro da aldeia. Este seria o local da casa dos homens, hoje, provisoriamente, substituída por uma choupana. No ano passado uma forte tempestade derrubou a casa do Piracumã, irmão do Aritana e diretor do Parque Indígena do Xingu, e a antiga casa dos homens. Normalmente, este seria um lugar reservado aos homens, onde estariam guardados máscaras, flautas e diversos instrumentos rituais proibidos para as mulheres. Do modo como está, é somente um local de reunião.

Conversamos e comemos peixe com beiju com a maioria dos chefes de família Yawalapiti. Entre eles, chamava a atenção o velho Parú, pai de Aritana, antigo cacique e rezador da tribo. Grande amigo de Orlando Villas Bôas e responsável pela reunião de sua tribo (espalhada e reduzida a somente 12 membros na década de 1940), ele é capaz de encontrar raízes que sugam veneno de qualquer cobra, de rezar para manter onça afastada e fazer peixe pular na rede durante a pesca do timbó.

Por volta do meio-dia, fomos com mais uns 15 meninos tomar banho no rio Tuatuari. Com certeza foi um dos momentos mais divertidos da viagem. Jogamos uma partida de futebol das mais confusas da história, ninguém tinha idéia de que time era, só sabíamos o lado do gol. Também descobrimos que existe uma divisão entre a praia das mulheres e a dos homens. Ontem, desavisados, tomamos banho na praia das mulheres, mas hoje fomos levados pelas crianças ao local correto.

huka_huka_fabio.jpgDuas horas depois, voltamos para a tribo. Era hora de começar o treinamento do Huka-Huka. A luta é muito semelhante ao judô e à greco-romana, envolve força e, sobretudo, muita técnica. O treino dura mais de uma hora e só permite aos participantes rápidos descansos de um ou dois minutos. Participavam alguns guerreiros que treinavam para competição com outras aldeias do Alto Xingu, e três jovens que estão passando pelo Awawoiá.

Jovens descansam durante poucos minutos entre cada combate de huka-huka. Foto: Fábio Pili

O Awawoiá é a passagem da criança para a fase adulta. O jovem Yawalapiti, entre 14 e 17 anos (a idade depende do participante), começa uma preparação para se tornar um adulto respeitado diante da tribo. Para isso, fica isolado dentro de sua casa, sem nenhum contato com mulheres, sem poder sair e participar do cotidiano tribal. A exceção é o treinamento diário de huka-huka, uma das condições para o fim da transição. Até o banho acontece à noite, quando os outros índios não usam mais o rio. O Awawoiá só termina quando o treinador do jovem o considera preparado, o que pode durar de dois a cinco anos.

PS – Fernando pede espaço para comentar que depois de vários dias tomou água gelada, em segredo, na casa do Kokoti.