A Carta do Cacique Seattle

Em 1855, o cacique Seattle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios.

Chief Seattle
Chefe Seattle (Foto: Wikipedia)

Mesmo tendo sua autenticidade contestada, a suposta carta toca em pontos crucias das diferenças filosóficas de como nos relacionamos com a natureza. O desabafo do cacique – autêntico ou não – tem uma incrível atualidade.

Segue a carta:

“O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade.

Nós vamos pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não empalidecem.

Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha.

Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo.

Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita.

Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.

Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite?

Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d’água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.

Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem.

Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra.

Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a um dia descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência.

Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se soubéssemos quais as esperanças transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã.

Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós.

E por serem ocultos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos na venda é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os nossos últimos dias como desejamos.

Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos.

Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueça como era a terra quando dela tomou posse. E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos.

Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.”

Entrevista: Celestino Xavante, 91 anos

Por Cid Furtado – originalmente publicado na revista Brasileiros de Raiz.

Integrante de uma geração antiga de lideranças indígenas do País, Celestino Xavante, 91 anos, tem poucas ilusões sobre a possibilidade das comunidades indígenas nacionais conseguirem preservar suas culturas e modos de vida tradicionais, ante a pressão crescente sobre as suas comunidades e seus territórios.

Celestino Xavante
Aos 91 anos, Celstino Xavante ainda é uma liderança ativa na luta política pelos direitos indígenas. Foto: Janine Moraes (Jr/ABr)

Conhecido por sua luta pela demarcação das terras Xavante, ele está preocupado: “Os jovens não vêm a Brasília. Se ficarem no mato ninguém vai considerar o que querem e precisam. Eles têm que vir lutar pelos seus direitos.

Apesar de preocupado com o futuro, o peso dos anos não lhe tirou o espírito combativo e, frequentemente, abandona o conforto e a tranqüilidade da aldeia Parabubure para se juntar a outras lideranças na luta pelos direitos das comunidades Xavante e direitos comuns dos indígenas.

Vida de luta

A história de Celestino no movimento indígena começou na década de 60 junto com os então jovens líderes Xavante, como os caciques Aniceto, Samuel e muitos outros. Lutavam pela demarcação das terras indígenas em todo o País. Correndo atrás primeiro, da demarcação da terra indígena Sangradouro; depois, da criação da área de Parabubure.

À época a luta era para retirar as fazendas que invadiam as terras Xavante, incluindo a área da fazenda Xavantina onde Celestino nasceu. A luta se deslocou para Brasília. Na Capital foram travadas importantes batalhas. Os Xavante venceram e passaram a ser exemplo de luta para outras comunidades indígenas.

Da década de 60 aos dias de hoje,lá se vão mais de 40 anos de luta e atuação política. Independente e orgulhoso, até hoje, Celestino prefere falar em sua língua materna e contar com a ajuda de um tradutor, apesar de entender o português.

Suas preocupações, anseios, caminhos e recados você confere nesta entrevista exclusiva a Brasileiros de Raiz.

Qual a realidade das comunidades Xavante hoje?

Nossa realidade é muito fraca. Todas as coisas estão mudando, mudando muito. Temos de continuar lutando para manter nossa vida e cultura do mesmo jeito. Mas sinto que estamos enfraquecidos.

Nosso povo está crescendo mais e tendo que lutar para ter apoio da FUNAI, do Governo. Esse presidente da FUNAI não quer entender nossos problemas. Ele acabou com a FUNAI. Precisamos ampliar a aldeia “terebe” onde pai e meu bisavô faleceram. O presidente da FUNAI prometeu e não cumpriu a promessa de ampliação da área. Diz que está fazendo uma reestruturação. A terra lá não serve mais para a comunidade, está pequena, é preciso ampliar. Nós estamos fazendo um movimento pra trocar o presidente e para pedir que os índios mesmos assumam a FUNAI. Apoiamos o advogado Arão Guajajara para assumir a presidência.

E qual o principal problema das comunidades Xavante?

Principal problema é que não há mais assistência: falta para o idoso, na alimentação, na compra de ferramentas, sementes, objetos, gado, na preparação de projetos. Ainda precisamos da ajuda e apoio do Governo e da FUNAI para o desenvolvimento de nossas comunidades.

Como preservar a identidade e sua cultura Xavante ante a cultura branca e do contato com a sociedade?

Para a sociedade dos brancos, a cultura Xavante ainda é muito atrasada. A mudança virá aos poucos até convivermos de forma igual. É muito complicado para mudar rápido, mas isso já está começando a acontecer.

Temos que estudar, do jovem à nossa bisavó. Temos que estudar mais, entrar na política, na prefeitura, na polícia, no governo. Só depois que entendermos isso tudo, vai ficar mais fácil para a gente ver a nossa realidade preservada, assim, convivendo com os brancos. Temos que fazer isso (conviver) para ter como preservar nossa cultura.

É possível juntar essa tecnologia que vive o mundo hoje sem perder a identidade indígena?

Tem que ser assim mesmo. Unir essas coisas com a preservação da nossa cultura. Temos que ter computador e essas coisas todas. Mas temos que ser nós mesmos, preservar a identidade e a cultura indígena. Os jovens cada dia estão se interessando mais por isso, pelas coisas do branco, da cidade. Desde o contato com o povo Xavante muita coisa já aconteceu. Conhecemos muitas coisas do branco e precisamos dominar isso tudo pra aprender como conviver com o branco.

Quais os caminhos pra sobreviver, pra conviver com o branco e garantir o futuro do povo Xavante?

Ainda estamos conseguindo segurar a nossa realidade de cultura. Temos nossa pintura, nossa língua. Não podemos perder nossos clãs individuais para casar, não podemos fazer uma mistura, assim, tem que ser preservado nosso jeito de viver. Precisamos manter a nossa tradição com a língua, os casamentos na família, as pinturas, o corte de cabelo. O caminho é brigar para manter isso assim. Os velhos e jovens tem que se unir por isso.

Nesse caminho também precisa do saber. Temos que estudar. Mas ainda é um caminho longo para encontrar o jeito certo para garantir o futuro do povo.

Pra nós índios é muito longe e muito difícil ainda encontrar esses caminhos.

Como o senhor vê a pressão do desenvolvimento econômico em terras indígenas?

Hoje já não tem terra suficiente pra nós. Os fazendeiros não podem querer tomar a terra indígena. Vamos defendê-las contra os fazendeiros para não haver novas invasões, porque hoje não tem a FUNAI, não tem IBAMA. O IBAMA não entra em defesa das comunidades e aí é a comunidade mesmo que tem que decidir o que vai fazer. Tem uns que pensam em deixar as terras indígenas em arrendamento, para ver se vai dar certo, ou não. Outros querem brigar com os invasores, temos que pensar muito no que fazer, antes de tomar uma decisão sobre as formas de desenvolvimento do nosso povo.

De uma forma geral, as pessoas, o governo, fazendeiros e empreiteiros que têm projeto dentro de área indígena, sempre acusam o índio de atrapalhar o desenvolvimento do Brasil. O que o senhor acha disso?

Eu já ouvi falar mesmo que estamos atrapalhando, que estamos ocupando as terras e que não trabalhamos. Mas porque o governo não nos ajuda? Por que não compra os maquinários para nos ajudar a trabalhar como os fazendeiros?

Aí sim, ia ficar mais fácil. Mas quem tem que nos ajudar, a FUNAI, não cumpre o que promete: fazer projetos, os plantios com os tratores e máquinas. Nós queremos produzir, comprar o gado, comprar os maquinários para plantar, mas o Governo não dá o apoio que as comunidades indígenas precisam. É muito complicado.

Os jovens guerreiros ainda têm vontade de ser índio ou querem vir para o mundo do branco se integrar à sociedade?

Hoje boa parte dos jovens que largam as aldeias e vão para a cidade preferem ficar lá, se casar, assim, desse jeito mesmo. Já estamos achando que o futuro pode mudar o índio Xavante. Precisamos que os jovens retornem à aldeia mesmo depois de estudar e viver na cidade, continuar mesmo como índio, com suas tradições. Ao mesmo tempo, muitos de nossos jovens falam que é muito difícil se misturar com o branco, que não respeita o índio, e por isso tem gente querendo ficar e gente querendo voltar pra aldeia, voltar a ser índio. Acho que as coisas são assim mesmo. Estão voltando, do mesmo jeito, como índio, porque têm muitas dificuldades para viver do jeito do branco.

Depois da luta pela demarcação, que aconteceu nos anos 60, 70 e 80 parece que o movimento indígena diminuiu, reduziu um pouco. Não estão surgindo novas lideranças?

Antigamente, na década de 70, o cacique, todos os caciques velhos, todos foram lutar para fazer a demarcação de nossas terras. Lutaram para ampliar essas áreas. Todo mundo unido. Toda aldeia participava das conversas à noite, e agora os jovens caciques, não se reúnem mais para discutir.

Não está tendo união mais. Isso não ajuda a conhecer novos líderes. São os velhos ainda que vêm tentando ouvir os mais novos, chamando eles para o centro da aldeia, pra conversar e buscar a união e pra conhecer os novos líderes, pra eles falarem.

Qual vai ser o futuro do povo Xavante?

O futuro? Acho que não vai ser bom.

Os velhos falam que os índios vão morrer, acabar. Não vamos continuar.

Os jovens vão virar brancos. Esse vai ser o futuro dos bisnetos, de toda a comunidade. Vamos perder a nossa cultura, artesanato, as coisas para as festas, os cantos. Ninguém vai dirigir nossa cultura, que é muito complicada.

Até hoje são os velhos é que estão ainda segurando a cultura para nós. Agora quando nós vamos nos acabar,não dá pra dizer, mas vai ficar difícil. Vai ficar só um restinho de cultura, poucas danças, quase nada da cultura Xavante.

Que recado gostaria de dar aos os jovens xavantes?

O que vocês vão ser quando eu morrer? Como vão continuar as lutas que temos?

Temos que perguntar isso para a comunidade. Sei que é complicado para os jovens, e ninguém pergunta essas coisas porque é complicado para eles. Os jovens e os adultos ainda não vêm para Brasília para conhecer reunião, conhecer o debate. Se ficarem no mato ninguém vai considerar o que o índio quer e precisa, eles têm que vir pra lutar pelos seus direitos.

E o que diz para o povo branco hoje?

Hoje já tenho idade alta e mesmo assim ainda não vejo o branco respeitando os índios, os mais velhos.

Daqui pra frente os jovens é que vão assumir como chefia, aqui em Brasília e nas aldeias, e são eles que vão ter de continuar lutando para o povo indígena ser respeitado. Peço que o branco respeite mais o índio.

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Brasileiros de Raiz

Única revista nacional especializada em questão indígena, Brasileiros de Raiz tem como objetivo recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre povos indígenas. Para saber mais, entre em contato. [/box]

Índios Xavante retornam à terra tradicional em Mato Grosso

Os índios Xavante da terra Marãiwatséde, de Mato Grosso, conseguiram, na segunda-feira (5), o direito legal de retornar à sua terra tradicional. Pelo menos 1.500 índios poderão viver na área de onde foram retirados há 40 anos, por aviões da Força Área Brasileira, por fazendeiros e padres. Durante todo esse tempo, a área ficou ocupada por fazendeiros, jagunços e moradores de assentamentos da reforma agrária.

A peregrinação dos indígenas foi longa. Eles passaram por vários territórios, sofreram com a retirada forçada e com as doenças que mataram dois terços da aldeia. Cerca de 230 índios foram retirados das terras. Segundo o coordenador do Programa Xavante e administrador da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Goiânia, Edson Beirez, eles foram persistentes e pacientes em esperar pela decisão da Justiça.

“Ficamos surpresos com a postura dos índios em esperar a decisão judicial de forma tranqüila. Os Xavantes são conhecidos como guerreiros, mas ficamos bastante satisfeitos porque a decisão foi favorável e, finalmente, a justiça foi feita. A decisão tem uma significância grande na sobrevivência cultural dos Xavantes”, destacou Beirez, em entrevista à Agência Brasil.

O processo tramitava na Justiça desde 1995. Em 2004, a ministra Ellen Gracie, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar favorável aos Cavantes. Eles ocuparam cerca de 40 mil hectares e já têm uma aldeia formada. Faltava a decisão da Justiça sobre a devolução da terra, em sua totalidade, aos índios. A área soma 165 mil hectares e se localiza nos municípios de São Félix do Araguaia e Alto da Boa Vista, em Mato Grosso.

Na opinião do presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, a decisão mostra “que a justiça tarda, mas não falha” e que a história dos índios é quase de “genocídio”, já que vários morreram apenas 15 dias após a retirada de 1966.

“Eles foram vivendo em várias terras, mas sempre pensando em voltar para a Marãiwatséde. Lutaram muito, demos nosso apoio, e eles esperaram a sentença da Justiça. Essa decisão é importante porque reconhece de fato a terra indígena, de direito, e prevê a retirada daqueles que não são indígenas. Ficamos muito felizes. Podemos comemorar que a justiça tarda, mas não falha”, avaliou Pereira.

O sertanista da Funai na região Denivaldo da Rocha conta que a comunidade indígena está em festa e que tudo que os índios queriam na vida era ocupar suas terras tradicionais. “O cacique veio falar comigo, me cumprimentar e contar que a aldeia está em festa , e que os índios estão muito felizes com a decisão”.

A decisão da 5º Vara da Justiça Federal de Cuiabá, assinada pelo juiz José Pires da Cunha, prevê a desocupação dos fazendeiros, posseiros e qualquer outro invasor da terra de Marãiwatséde imediatamente, e que essa pessoas façam o reflorestamento da área.

O juiz determina ainda que os posseiros cadastrados no Programa de Reforma Agrária, cerca de 3 mil famílias, sejam reassentados na fazenda Guanabara, próxima à terra indígena. Elas não terão direito a nenhuma indenização, já que, na opinião do juiz, as ocupações foram de má-fé.

Colunas de fumaça: o contato com os índios

Logo na primeira avançada da vanguarda para longe das últimas vilas garimpeiras, como Barra do Garça, surgem sinais dos temidos índios do Brasil Central. Colunas de fumaça vistas durante um sobrevôo denunciavam presença humana. Eram aldeias dos xavantes, povo caçador e que utilizava queimadas controladas para espantar os animais e facilitar a caçada.

O coronel Vanique, comandante da expedição na época, relutou em seguir na trilha dos índios e a continuação da viagem selva dentro foi adiada por diversas vezes. Mas a vanguarda prosseguiria, sob a liderança dos Villas Bôas. Em 1945, dois anos depois de iniciada a expedição, o novo presidente, Eurico Gaspar Dutra, remanejou o coronel Vanique para o Exército. Assim, a chefia da Expedição Roncador-Xingu passou definitivamente para os irmãos Villas Bôas.

Na retomada do caminho, por meses, a Expedição foi acompanhada pelos Xavantes, que cercavam os acampamentos à noite em pequenos grupos e imitavam animais. Em algumas ocasiões, chegaram a ameaçar trabalhadores e chefes. Mas a expedição passou ao largo das aldeias e o grupo só deparou com os primeiros índios em 25 de julho de 1945, quando ficaram cara a cara com 30 xavantes, que tentaram um ataque mas, assustados com tiros para o alto, correram mata adentro.

Na Reserva Indígena de Pimentel Barbosa, até hoje os mais velhos lembram da chegada da chegada do não-índio à região. O xavante Rupawe recorda que ficou incrédulo com chegada de um povo estranho. “Só quando eu era rapaz, comecei a entender que tinha outro povo querendo se aproximar. Naquela época, a tribo tinha rastreadores, que fiscalizavam a terra. Eles começaram a trazer notícia do branco. Um dia eu ouvi tiro e um rastreador me avisou de onde veio. Aí eu fui lá e vi as pessoas. Eu pensava que eles estavam todos pintados, por causa do pêlo na cara e no corpo”, conta.

O próximo contato com índios, o primeiro mais duradouro, só ocorreu anos mais tarde, quando a Marcha avançava pelo Alto Xingu. O encontro histórico aconteceu com um pequeno grupo da etnia Kalapalo que pescava no rio Kuluene, como narra Orlando:

“Descemos o rio, três ou quatro dias depois, nós chegamos numa barreira onde tinham uns 200 ou 300 índios. Nós ficávamos na praia e eles na barranca do rio, a gente gritava, eles respondiam, a gente queria atravessar o rio, eles ameaçavam com arco e flecha. E ficou aquela coisa, uns dois dias assim. No terceiro dia, apareceu na margem um bruto de um índio. Ele chegou, abriu os braços e os outros índios se afastaram. Ele fez um sinal e eu, Cláudio e Leonardo atravessamos o rio. Quando nós chegamos, abraçamos ele. Chamava-se Izarari, o grande cacique Izarari, temido, era um índio terrível. Ali nós fizemos o primeiro posto e o primeiro campo de aviação.”

A liderança dos Villas Bôas transformou o caráter da Marcha para o Oeste. Baseada na filosofia do Marechal Rondon de “morrer se preciso for, matar nunca”, o que seria meramente uma missão potencialmente violenta, tornou-se uma expedição de contato, pacificação e respeito com os diversos povos indígenas da região. Um trabalho reconhecido em todo mundo como um dos mais importantes para a preservação da diversidade humana.

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Contador é testemunha da ocupação xavante

Funai – O contador Dario Carneiro, 64 anos, um dos primeiros desbravadores a se instalar na fazenda Suyá Missu, na região de Alto Boa Vista (MT), junto à Terra Indígena Marãiwatsede, em 1963, guarda, com carinho, dezenas de fotos, artigos de jornais e artesanato que ganhou durante os anos de convivência pacífica com os Xavante. Considerado testemunha-chave na audiência da Justiça Federal, realizada no último dia 29, em Cuiabá, onde vem sendo julgado o processo que poderá conceder o retorno dos Xavante para Marãiwatsede, o contador aposentado, prestou um depoimento emocionado em favor dos índios.

Dario que atualmente mora no interior paulista, participou da audiência juntamente com outras três testemunhas localizadas por um grupo de antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nova audiência está prevista para março. Esta semana, o contador reuniu-se com o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, em Brasília. “Foi difícil aprender a pronunciar as primeiras palavras da língua Xavante, mas eles tiveram paciência e me ensinaram. Em homenagem a eles e ao que aprendi durante nosso convívio, batizei meus quatro filhos com nomes Xavante”, diz em entrevista para o site da Funai.

Quais são suas recordações dos anos 60, período em que esteve com os Xavante?

Trabalhava para os proprietários da fazenda, em São Paulo, quando fui chamado para continuar minhas atividades em Suyá Missu. Guardo até hoje minha carteira de trabalho. Foi assim que conheci os índios. Procurava dar toda assistência a eles. Cheguei a ficar sete meses sem ir para casa. Estabelecemos um forte laço de amizade. Os Xavante me ensinaram o que é viver em comunidade, ter interesses comuns. Naquele tempo, quando abatiam um animal, os índios dividiam com todos. Os mais velhos sempre distribuíam as tarefas. Eles tinham uma boa convivência. Alguns momentos, porém, foram de tristeza, quando, por exemplo, muitos morreram em função de uma epidemia de sarampo.

Como o senhor aprendeu a língua?

Lembro que quando desci do pequeno avião, na pista improvisada, os índios me cercaram. Estavam curiosos. Não sabia o que falar ou como falar, mas sabia que teria que criar um vínculo com eles. Assim, fui aprendendo as primeiras palavras. Ouvia algo e pedia para repetirem. A cada dia ficava mais fácil. Em pouco tempo consegui me comunicar na língua deles.

Após quase 40 anos, o senhor se reencontrou com muitos índios em Cuiabá. Como foi esse momento?

Foi muito emocionante. Alguns eram jovens quando deixei a fazenda. Sempre tive muita afinidade com eles. Sinto-me na obrigação de ajudá-los. Acho justo que retornem à sua terra, mas que os posseiros também sejam acomodados para que não ocorram conflitos. Enfim, que tudo seja feito com base no entendimento.

"Nós não temos medo de morrer"

Rota Brasil Oeste – Na tarde de hoje, 40 lideranças da etnia Xavante estiveram com o Ministro da Justiça para pedir apoio na disputa com posseiros pela terra indígena Marãiwatsede – localizada na antiga fazenda Suiá-Missú, próxima ao município Alto Boa Vista, Mato Grosso. A área é, com cerca de 170 mil hectares, está homologada desde 1998 e foi ocupada ilegalmente por colonos há pouco mais de oito anos.

No encontro, os Xavante cobraram uma decisão rápida das autoridades para o caso. De burduna em riste, o cacique Simão afirma que existem quarenta índios acampados nas fronteiras da propriedade com os colonos, esperando uma decisão. “Nós estamos cansados, não têm mais paciência. Nós não temos medo de morrer, tem coragem de lutar”, disse golpeando a arma no peito. “O índio é a raiz do Brasil, tem que nos respeitar!” completou.

No mesmo tom, o chefe Damião reafirmou a posição dos índios. “Não vamos matar, não somos invasor, não somos ladrão, mas ninguém tem medo de morrer”, afirmou. O cacique também se mostrou preocupado porque a Polícia Federal retirou-se da região. Ambos pediram mais recursos para a Funai e auxílio para as comunidades indígenas.

Ao lado do presidente da funai, Mércio Gomes, intermediador do encontro, o ministro garantiu às lideranças que os índios têm o apoio do governo e pediu confiança na Funai para resolver a questão. “A terra está homologada, é de vocês”, afirmou. Segundo Márcio Thomaz, a idéia agora é procurar uma solução harmônica, que envolva outras instituições como Ministério do Desenvolvimento Agrário, Polícia Federal e Incra. O ministro também deixou claro que a Polícia Federal estará pronta para agir caso necessário.

Nos últimos anos, índios e posseiros lutam pelo reconhecimento de propriedade. Mês passado, o conflito teve uma escalada de tensão, com ameaças de ambas as partes.

Histórico

O povo Xavante luta há quase 40 anos pela posse de Marãiwatsede. A região é importante cultural e historicamente para a etnia. Ali estão localizados, por exemplo, locais sagrados como cemitérios.

A ocupação da área por não-índios iniciou-se na década de 60 e foi feita com ajuda dos próprios Xavantes. Em 1966, porém, uma multinacional italiana adquiriu as terras de Suiá-Missú e deslocou a comunidade indígena da região. O grupo foi entregue para a tutela da igreja, na Missão Salesiana de São Marcos, e mais tarde se dispersou. A propriedade chegou a ser conhecida como uma das maiores fazendas do mundo, alcançando 560 mil hectares e recebeu milhares em incentivos públicos durante os governos militares.

Em 1995, o caso foi levada à Justiça e agora, índios e posseiros esperam uma decisão nos tribunais sobre os direitos de ocupação da área. Recentemente, a disputa ameaçou tornar-se violenta. O administrador da Funai em Goiânia, Edson Beiriz – que também acompanha a delegação na visita ao ministério – denunciou que está sendo ameaçado de morte por defender o direito dos índios.

Na visita a Brasília, os Xavante também procuraram apoio na Procuradoria Geral da República, na Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas e na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

A história segundo os índios

Nesta terça-feira, dia 29, fomos conhecer a aldeia Xavante de Pimentel Barbosa – a cerca de 100kms de Canarana, sendo 60km de terra – para conversar com o cacique Supitó e com velhos que viveram os primeiros contatos com o não-índio.

Chegando lá, fomos recebidos no Waitá, lugar de reunião no centro da aldeia. Um a um, todos os homens foram chegando e nos cumprimentando. Supitó já havia explicado à tribo o objetivo da entrevista: ouvir a versão indígena da colonização da região. O vice-cacique Paulo nos ajudou como intérprete.

rupawe.jpgO primeiro a falar foi Rupawe. De pé e apoiado numa bengala, conforme o estilo de oratória xavante, ele nos contou sua história: “Antigamente, quando eu era pequeno, não tinha branco. Era só índio Xavante, a gente era uma nação única. Quando eu era adolescente, eu comecei a ouvir sobre o branco. O pessoal sabia que tinha outro povo por causa do jeito diferente da queimada, da fumaça. Eu tinha medo. Quando eu era rapaz, comecei a entender que tinha outro povo querendo se aproximar. Naquela época, a tribo tinha rastreadores, que rondavam e fiscalizavam a terra. Eles começaram a trazer notícia do branco. Só aí comecei a acreditar que existia outro povo.

"Antigamente, quando eu era pequeno, não tinha branco. Era só índio Xavante, a gente era uma nação única." conta Rupawe. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Teve até um grupo de rastreadores que entrou em conflito com os brancos. Cada tiro, foguete, dava medo. Me chamaram para tentar entrar em contato. Um dia eu ouvi tiro e um rastreador me avisou de onde veio. Aí eu fui lá e vi as pessoas. Eu pensava que eles estavam todos pintados, por causa do pêlo na cara e no corpo. Eles jogaram presente e só uma pessoa entregou duas facas na minha mão. Depois, eles foram embora.”

serezabdi.jpgApós a tradução de Paulo, o próximo a se levantar foi Serezabdi. Ele começou a nos responder sobre quem teriam sido responsável por esta aproximação: “Foi o Francisco Meireles. Ele trouxe sua equipe e foi a única pessoa que se interessou em entrar em contato com os Xavante. Tinha um índio xerente que ajudava a rastrear a gente. Aí o povo se aproximou.

Mas tem muita história do tempo dos meus pais. Meu avô pedia para não matar o branco, mas havia outros que não queriam isso. Os jovens se escondiam para matar os brancos e provar que tinham coragem. Tinha muita coisa.

Na abertura da estrada (BR-158), os índios tentavam seguir os trabalhadores, mas eles estavam a cavalo e iam mais rápido. Eles deixaram presentes, mas a gente não encontrou ninguém.”

"Meu avô pedia para não matar o branco, mas havia outros que não queriam isso. Os jovens se escondiam para matar os brancos e provar que tinham coragem." explica Serezabdi. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Depois disso, comentamos um pouco mais o assunto. Naquele tempo, a Expedição Roncador-Xingu saiu de Xavantina e passou por território xavante, onde sofreu um ataque dos índios. Eles explicam que, naquela época, a etnia havia se espalhado por toda a região. A picada dos irmãos Villas Bôas teria passado por outra tribo, atualmente localizada na Reserva Indígena de Areões.

Com a colonização da área pela Fundação Brasil Central, cidades e fazendas começaram a invadir terras indígenas. Sob a pressão do não-índio, os Xavante perderam boa parte de seu território original. Na década de 70, porém, os caciques da região de Pimentel Barbosa se uniram e começaram a expulsar os fazendeiros para demarcar sua reserva.

serebura.jpgSegurando uma pequena borduna, Sereburã se levantou para nos contar como isso aconteceu: “Eu vou contar essa história porque vocês não conhecem, ainda são muito novos. Vocês ainda estavam dentro do saco do seu pai quando isso aconteceu.

Antigamente a terra era muito pouca. Não sei o ano, começaram a enxergar que o branco estava se aproximando demais da aldeia. Achamos melhor tocar eles daqui e começamos a fazer um trabalho para botar medo neles.

Primeiro fomos à fazenda Santa Vitória porque o dono de lá ameaçava os índios de morte. A gente atirava no branco não pra machucar, só para tocar embora. Pegamos as coisas deles e botamos fogo na casa. A gente fazia isso para eles não poderem voltar. Assim foi, também, com a Caçula e todas as fazendas perto da aldeia.

"O povo Xavante é assim: usa pulseira, tem cordão no pescoço e brinco pra arrumar mulher nova. Nossa identidade é essa." afirma Sereburã Foto: Pedro Ivo Alcântara

Nós mesmos tocamos os fazendeiros. Por isso que temos este espaço (reserva de Pimentel Barbosa) pequenininho hoje. Pra branco é grande, pra nós é pequeno. Fizemos isso sem a ajuda de ninguém.

Agora vivemos aqui, espero que vocês (não-índios) respeitem a gente e nossos direitos. Espero que vocês passem essa informação ao seu povo.

O povo Xavante é assim: usa pulseira, tem cordão no pescoço e brinco pra arrumar mulher nova. Nossa identidade é essa. Sou do tempo em que os homens andavam pelados e estou aí, vivo.”

Xavantes – um povo guerreiro

Espalhados pela região da Serra do Roncador e do Vale do Araguaia, os Xavantes já dominaram grande parte da região Centro-Oeste brasileira. Originários de Goiás, migraram para o Mato Grosso no século XIX fugindo dos aldeamentos de colonização no interior do estado.

A migração durou alguns anos e, após atravessarem o Rio Araguaia, entraram em conflitos com os índios Karajá que ocupavam a região da Ilha do Bananal. Posteriormente, brigas internas causaram a divisão da etnia em várias aldeias, que se espalharam e povoaram o vale do Rio das Mortes, iniciando os primeiros contatos com o não-índio.

Tentativas de Catequização

Na região do rio Garças, no início do século XX, alguns grupos Xavante encontraram as missões salesianas de Merúri, no Mato Grosso, que catequizavam os Bororos. Esta aproximação motivou a fundação da missão de São Marcos, às margens do Rio das Mortes, com o intuito de atrair os xavantes. Durante anos os padres buscaram inutilmente contatar os índios, que resistiram se escondendo e atacando quem adentrasse seu território. Em 1932, por exemplo, dois padres foram mortos quando abordaram um grupo de índios.

As missões salesianas, interessadas na conversão e na terra dos índios, se tornaram parceiras do governo Getúlio Vargas na empreitada. Em trecho de carta enviada ao presidente Getúlio Vargas no ano de 1938, o Padre Hipólito Chovelon, diretor da missão salesiana, deixa claro as intenções da Igreja: “O Rio das Mortes percorre uma zona riquíssima de campinas e matas, próprias para lavoura e criação de gado. O povoamento depende tão só da pacificação dos índios xavante que até agora fazem o terror dos moradores das vizinhanças pelas suas correrias e ataques traiçoeiros. Daí percorre a necessidade urgente de amparar a missão salesiana (…), abrindo assim essa imensa zona entre os rios Xingu e Araguaia aos progressos da nossa civilização”.

O indigenista Guilherme Carrano, com mais de 20 anos de trabalho entre os Xavantes, acredita que a ideologia catequizadora e progressista da Igreja contribuiu para a destruição da cultura da etnia. “Os salesianos colocavam os índios em regime de internato, separando pais e filhos, obrigando-os a usarem roupas e tentando proibir festas e a língua indígena”, afirma Carrano.

Aproximação

serebura2.jpgCom a ação da Fundação Brasil Central e a ocupação da região, tornou-se necessário o contato com os índios. Em 1941, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) fez uma tentativa pioneira de aproximação. Porém, esta primeira iniciativa fracassou. A equipe comandada pelo sertanista Pimentel Barbosa foi massacrada. Apenas no final da década de 1940, o SPI conseguiu estabelecer relações regulares com os Xavante.

Sereburã, um dos líderes da reserva de Pimentel Barbosa, é um remanescente dos tempos quando os Xavantes da região de Água Boa ainda não tinham contato com o “branco”.- Foto: Fábio Pili

Nesta época, passou pela região a Expedição Roncador-Xingu. O sertanista Orlando Villas Bôas conta que os trabalhadores foram cercados pelos xavantes perto do Rio das Mortes. “Ouvimos uma gritaria vindo do lado direito da picada e o Cláudio (Villas Bôas) reuniu todos num lugar só. Por uma sorte danada, tinha um cupim enorme e o Cláudio resolveu subir nele. Exatamente na hora que ele subiu, avistou um grupo de uns 40 ou 50 índios xavantes avançando camuflados com folha de palmeira”, conta o sertanista. Este ataque foi impedido com tiros para o alto. Os expedicionários continuaram sendo seguidos e vigiados enquanto cruzaram a região de cerrado habitada pelos Xavante.

Demarcação

Após anos de dominação, teve início a luta pela demarcação das reservas. Na década de 1970, os principais caciques xavantes se uniram à Funai e a indigenistas para retomar o território ocupado pelas fazendas que se instalaram na região. Foi um processo tenso, repleto de incidentes entre índios e fazendeiros.

Hoje os Xavantes reconquistaram parte de seu território. As aldeias, somando cerca de 10.000 habitantes, estão localizadas dentro de reservas demarcada, como a de Pimental Barbosa, com 328mil hectares de extensão.

Padre Giaccaria, elo entre a Igreja e os índios

Seguindo a tradição de catequização da igreja Católica, a ordem dos Salesianos atua no Mato Grosso desde 1894. Alguns dos primeiros religiosos que estiveram na região sofreram fins trágicos, como os padres João Funcks e Pedro Socilotte, massacrados pelos Xavantes. Apesar disso, as missões continuaram no início do século XX, contatando povos como os Bororos, Carajás e empreendendo seguidas tentativas de atração dos Xavantes. Padre Hipólito Chovelon, Mestre Francisco Fernandes e Padre Pedro Sbardellotto, são alguns dos que visitaram o território desde o final da década de 1930.

padregiaccaria.jpgO Padre Bartolomeo Giaccaria, italiano naturalizado brasileiro, continua esse trabalho, com mais de 45 anos de experiência entre os Xavantes. Pós-graduado em antropologia pela Universidade de Brasília em 1980, o pároco é autor de diversos livros como “Xavante, Povo Autêntico”, “Jerônimo Xavante Conta”, além de cartilhas e projetos de educação envolvendo os índios e suas tradições. Entre suas publicações mais conhecidas, está o primeiro dicionário Xavante-Português, uma iniciativa pioneira escrita em 1958.

“O maior absurdo é que várias das plantas nativas que utilizo em meu trabalho estão patenteadas pelos americanos”. Foto: Fábio Pili

Além da produção acadêmica, padre Giaccaria, 69 anos, desenvolve pesquisas com plantas medicinais, especialmente com espécies nativas do cerrado. Trabalhando num pequeno herbário montado em Nova Xavantina, ele prepara emplastos, xaropes e outros remédios naturais. “Esta foi uma maneira de contornar os problemas do abastecimento farmacêutico na região e nas aldeias”, explica o padre.

Grupo – Em que ano o senhor começou seu trabalho entre os Xavantes?

Pe. Giaccaria – Eu vim para o Brasil em 1954 e passei dois anos em Campo Grande. Só em 1956 é que vim para a Missão de Sangradouro, onde trabalhava como professor. Lá nós ensinávamos aos filhos de fazendeiros de cidades vizinhas, como Poxoréu e Barra do Garças, além dos índios bororos. Mas nesta época os bororos já estavam sumindo, eles foram todos dizimados ou aculturados. Logo depois, em 57, comecei a trabalhar com os xavantes.

Grupo – Nesta época o senhor conheceu o trabalho da Expedição Roncador-Xingu e dos Villas Bôas?

Pe. Giaccaria – Para mim eles encaravam o índio como um obstáculo ao progresso. Acho que o trabalho dos Villas Bôas era limpar a região para o desenvolvimento, eles ligavam mais para este progresso. A idéia era fazer obras como a estrada Cuiabá-Santarém. Eles também nunca permitiram a presença de padres dentro do Parque do Xingu, então não sei ao certo como é a situação dos índios lá dentro.

Grupo – Como o senhor encara a filosofia de trabalho da igreja naquela época e hoje em dia?

Pe. Giaccaria – Quando em vim para o Brasil tínhamos uma visão muito romântica e fantasiosa da região. Na época o trabalho da igreja era no sentido de integrar o índio. Hoje, nós deixamos isso de lado, mas esta é uma questão muito complexa. Não dá pra falar assim. Nosso trabalho atual é de explicar melhor o porquê das coisas. Além disso, respeitamos a maneira como eles expressam seus ritos. Nas missas usamos cantos tradicionais deles e eles mesmos se organizam para fazer um batizado, por exemplo. Existe até um índio que vai se tornar padre, o nome dele é Aquilino. Portanto, eles incorporam tudo isso. Boa parte do meu trabalho visa a preservação cultural, especialmente da língua indígena. Por isso produzi a primeira cartilha bilíngüe Xavante-Português. Neste sentido, nos esforçamos para prepará-los melhor para o contato com os civilizados. Os choques culturais são inevitáveis, mas não adianta isolá-los.

Grupo – Porque o senhor começou a trabalhar com plantas medicinais?

Pe. Giaccaria – Pela necessidade. Eu via crianças com feridas nas mãos, velhos com problemas de reumatismo e não havia muito suprimento de remédios para ajudá-los. Então, comecei a ler e estudar sobre as propriedades de cada espécie. Preparo um emplasto, por exemplo, que é bom para quase todo tipo de problemas de pele no qual uso cerca de 15 plantas como babosa, hortelão, orégano e própolis. Dessa forma, atendo a cerca de 80 aldeias com mais de 12,000 xavantes. O maior absurdo, porém, é que várias das plantas nativas que utilizo em meu trabalho estão patenteadas pelos americanos. São plantas aqui do cerrado, utilizadas pelos índios a milhares de anos, como o urucum, a sucupira e o quebra-pedra. Essas são apenas as que eu lembro agora, e eles ainda estão estudando outras sete mil plantas brasileiras.