O Velho Chico é um rio rico em contradições, de muitas belezas e problemas, de riqueza e pobreza, de histórias e lendas. E dentro da imensidão de vidas ligadas às águas, uma, especialmente, merece ser contada. É a de Maria de Lurdes Gonçalves Lopes, 60 anos, ou dona Lurdes, como é conhecida em Pirapora-MG, habilidosa carranqueira, cantora, poetisa, escritora e amante das águas.
As aventuras de dona Lurdes começaram aos 12 anos, quando um circo passou por sua cidade natal, Serrinha, perto de Salvador, na Bahia. “Eu fui lá, cantei, e o dono do circo gostou. Me chamavam de Cigarra Boêmia de Serrinha”, relembra. Para cantar, ela saía escondida de casa, pois sua família não aceitava a vida de artista, coisa imprópria para uma moça de família. A aventura durou um mês, até quando seu pai assistiu a um espetáculo. Embora tenha gostado da apresentação, ele e sua mãe a obrigaram a largar a recém começada carreira com uma surra de uma dúzia de palmatórias.
"Barroso era homem de verdade, era companheiro, pai, marido e amante", diz, com saudades do capitão (Pirapora-MG). Foto: Bruno Radicchi
Mas dona Lurdes não era moça que aceitava ordens ou desistia de suas vontades. Por isso, continuou fugindo de casa até os 16 anos, para cantar, até conseguir mudar para Salvador, estudar música e participar como corista da Orquestra Azevedo. Nessa época, ela chegou até a cantar na Rádio Excelsior, da Bahia.
Apresentando-se em boates e festas, a moça destemida conheceu várias pessoas, muitas importantes e influentes. Uma delas era o político baiano Waldir Pires, opositor à revolução e ao governo militar recém outorgado, uma influência nas idéias dela própria. Essa ligação com a esquerda, em uma época de violentas perseguições políticas, mudou sua vida: ela decidiu voltar escondida para Serrinha. “Eu tinha muito medo, principalmente pelo meu pai, que sustentava uma casa com tantos filhos. Tinha uns dois vizinhos na minha rua que sumiram e nunca mais voltaram”, conta, ainda assustada.
Logo depois da fuga, ela recebeu um telegrama anônimo, com instruções para se juntar a uma certa companhia teatral e seguir até Juazeiro. No caminho, o grupo embarcou em uma antiga barca a vapor que fazia o trajeto Pirapora-MG a Petrolina-PE, navegando pelo Rio São Francisco. Entretanto, todos os passos de dona Lurdes foram seguidos por um misterioso homem, sujeito desconhecido, sempre calado, carregando uma maleta preta.
Para a sorte de dona Lurdes, a barca, chamada São Francisco, tinha no comando um homem decidido e corajoso, o capitão Francisco Barroso, um antigo namorado. Quando o homem misterioso, ainda dentro do vapor, deu voz de prisão à contra-revolucionária, o capitão saiu em sua defesa.
Ninguém me mandou não, eu fiquei foi por medo de ser presa”, diz dona Lurdes, ao explicar porquê permaneceu cinco anos escondida nas barcas a vapor do São Francisco (Pirapora-MG). Foto: Bruno Radicchi
“Barroso disse para ele: ‘Eu sou o capitão e daqui ela não sai. Quem vai se retirar é o senhor’. E então eu fiquei dentro do barco por mais cinco anos, com medo de ser presa”, conta dona Lurdes, que sofre até hoje de depressão e toma remédios controlados, devido ao pavor que sente dos tempos de repressão da ditadura.
Então, por cinco anos, ela ficou embarcada em barcos a vapor, cruzando para cima e para baixo o Velho Chico, levando mercadorias de Minas Gerais para Bahia e Pernambuco e vice-versa, descendo a terra sempre às escondidas, sempre ao lado de seu protetor, o comandante Barroso.
“Foi o tempo todo vendo as mesmas coisas. De olhos fechados, eu conhecia todas as curvas do rio”, conta, melancólica. Mas mesmo restrita às embarcações, dona Lurdes continuou cantando – se apresentava como Lurdinha Barroso -, aprendeu os rudimentos da arte da carranca e casou-se com o amor de sua vida, o capitão Barroso.
“Ele era 30 anos mais velho que eu, mas homem igual aquele não existe mais. Ele era pai, protetor, amante e marido”, lembra saudosa do companheiro, mas forte, sem derramar uma lágrima. Dona Lurdes conta que o velho capitão era um homem de muitas mulheres, com namorada ou família em cada porto que passava, mas abdicou de todos os outros amores por ela. “Antes de mim, tudo bem, mas depois que nós casamos, era só eu. Eu brigava com ele, e acabou largando todas as outras, vivia para mim, me enchia de presentes, me dava lingerie de renda e de seda”, afirma.
Barroso também foi o principal mecenas de dona Lurdes. Presenteou a esposa com os primeiros instrumentos para ela começar a esculpir carrancas e incentivou-a a aprimorar sua técnica. Levou para conhecer o mestre carranqueiro Guarani, que ao ver a novata esbravejou “não vou ensinar nada, não”. Mas Dona Lurdes aprendeu as técnicas do velho professor só de olhar.
Em 1997, capitão Barroso morreu, já com 86 anos, e dona Lurdes “quase foi também”. Mas hoje, para espantar a tristeza e a dor da perda, ela recorre a várias atividades sociais em que participa na comunidade, ao carinho dos filhos que teve com o marido – Francisco Walber, Francyslady, Charles, Teodoro Pereira Neto e Luana Lara Janaína – e ao artesanato de carrancas. Além disso, ainda ocupa seu tempo escrevendo suas memórias, mesmo “não sendo uma mulher de muita escrita”.