Índios do Alto Juruá, no Acre, divulgam carta denunciando o uso não autorizado de seu nome na comercialização da secreção da perereca Phyllomedusa bicolor, cuja aplicação tem sido divulgada nas grandes cidades do País como uma terapia indígena milagrosa. Enquanto isso, a substância e suas moléculas são patenteadas no mundo todo e o governo federal tenta fazer do kampô um caso emblemático de repartição de benefícios associados aos recursos genéticos da biodiversidade brasileira.
A popularização do uso da secreção da perereca kampô (Phyllomedusa bicolor) nas grandes cidades brasileiras começa a preocupar os mais antigos detentores deste conhecimento, os Katukina, povo indígena do Alto Juruá, no Acre. No começo deste mês, a Associação Katukina do Campinas (Akac) divulgou uma carta solicitando que as pessoas que fazem a prática comercial da “vacina do sapo”, como a substância é conhecida, não utilizem o nome da etnia como forma de “legitimar” a atividade. A carta é direcionada em especial a duas terapeutas, uma de São Paulo e outra de Belo Horizonte, citadas nominalmente no documento, que estariam valendo-se do nome da Akac para divulgar a aplicação da substância e lucrar com isso. No documento, os Katukina também afirmam que a comercialização do kampô trouxe problemas para a comunidade indígena e pedem que a prática seja encerrada. Leia aqui a carta na íntegra.
A associação indígena enviou cópias da carta aos escritórios da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, em Rio Branco, e deu vinte dias para que o uso indevido do kampô em nome dos índios fosse abandonado. O prazo se encerrou ontem, 26 de abril. “Estamos preocupados porque não autorizamos ninguém a usar nosso saber. A polícia e o Poder Judiciário precisam saber disso”, afirma Fernando Katukina, vice-presidente da Akac. O líder indígena esclarece que a preocupação é em relação ao uso do nome de seu povo na venda das aplicações da secreção da jia. “Tem muita gente se promovendo em cima do nosso povo, mas nós queremos que o kampô seja utilizado de forma legal, com respeito ao nosso conhecimento e sem estimular a biopirataria”.
Os Katukina utilizam a secreção principalmente como um estimulante capaz de aguçar os sentidos dos caçadores, para que a busca por alimento na mata seja bem-sucedida. Quem sofre de panema (azar na caça), portanto, é tratado com aplicações da substância. A antropóloga Edilene Coffaci de Lima, da Universidade Federal do Paraná, uma das maiores estudiosas da etnia, explica que, fora do contexto da caça, homens e mulheres Katukina também fazem uso do kampô. “Desde muito cedo, entre o primeiro e segundo ano de vida uma criança começa a receber o kampô, quase sempre por iniciativa dos avós”, descreve.
A antropóloga afirma que “este uso moderado é feito para aliviar indisposições diversas, como diarréias e febres ou sonolência, que tiram o ânimo das pessoas para o desempenho das atividades mais simples. Mas, ainda que se queira debelar o incômodo físico que diversas patologias causam, o uso do kampô é determinado muito mais pela avaliação moral que se faz do desânimo que proporcionam. Afinal, depois de ser recomendado como estimulante aos caçadores, o kampô é recomendado àqueles que padecem de preguiça (tikish)”.
Panacéia da floresta
Nos últimos anos, o uso do kampô tem se popularizado entre a população das grandes cidades brasileiras como uma milagrosa terapia indígena. Em folhetos de divulgação, a substância é classificada como um poderoso energizante e fortalecedor do sistema imunológico, uma verdadeira panacéia, capaz de tratar doenças do coração em geral, hepatite, cirrose, infertilidade, impotência, depressão, entre outras enfermidades. De acordo com o material de divulgação, o kampô seria eficaz até mesmo no tratamento de câncer e AIDS. Cada aplicação da secreção do anfíbio – feita sobre pequenas feridas abertas na pele do usuário a partir de queimaduras – custaria até R$ 120,00. A popularização do kampô também se valeu de inúmeras reportagens em televisão e revistas, produzidas a partir da experiência de jornalistas que se submeteram aos efeitos da substância. A maioria dos narradores descreve que, após receber a aplicação do kampô, sente em poucos minutos um forte mal-estar, acompanhado geralmente de vômitos. Em seguida, o kampô provocaria uma sensação de revitalização de todo o organismo e aguçamento dos sentidos.
Em 2004, o uso indiscriminado da secreção cresceu tanto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu sua propaganda, que vinha sendo feita principalmente na internet. Meses antes, em abril de 2003, as lideranças da Terra Indígena Campinas/Katukina já haviam solicitado oficialmente ao governo federal que tomasse providências para proteger e valorizar o uso tradicional do kampô pelos índios. Além dos Katukina, os Yawanawá, Kaxinawá e Marubo, entre outros povos indígenas, também têm no kampô um elemento cultural importante. A demanda dos Katukina levou o Ministério do Meio Ambiente (MMA) a elaborar um projeto para, a partir do caso do kampô, aprimorar o acesso aos recursos genéticos da biodiversidade brasileira e a repartição de benefícios aos detentores dos conhecimentos tradicionais associados.
Moléculas patenteadas
O projeto conta com diversas parcerias governamentais e não-governamentais e também tem, entre seus objetivos, “contribuir para a estruturação sustentável da cadeia produtiva da ‘vacina do sapo’, promovendo estudos dos efeitos da aplicação da substância sobre a sustentabilidade sociocultural e ambiental, com vistas a se iniciar um processo que contribua para a análise da possibilidade de validação do uso não-tradicional e a proteção do uso tradicional desse etnofármaco”, conforme texto do próprio ministério. Em outras palavras, o projeto visa combater a biopirataria do kampô e desenvolver pesquisas que resultem em medicamentos a partir da secreção daquele anfíbio. Segundo levantamento feito pela ONG Amazonlink, existem dez pedidos de patentes sobre a Philomedusa Bicolor feitos por laboratórios, universidades ou centro de pesquisas em escritórios de patentes no exterior.
Um dos coordenadores do projeto, Bruno Filizola, do Programa Brasileiro de Bioprospecção e Desenvolvimento Sustentável de Produtos da Biodiversidade (Probem), do MMA, afirma que a secreção da perereca tem cerca de 200 moléculas com potencial comercial e que existem pelo menos 80 pedidos de patente sobre o gênero Philomedusa, em escritórios de patentes no mundo todo. Os registros recaem principalmente sobre moléculas com potencial antimicrobiano. A própria Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária (Embrapa), que faz parte do projeto governamental sobre o Kampô, tem a patente de uma outra espécie de sapo, cuja secreção também tem propriedades com potencial para a produção de medicamentos.
Alguns pesquisadores da Embrapa, inclusive, não reconhecem que existe conhecimento tradicional associado ao uso do kampô. Argumentam que a “ciência” já havia chegado ao conhecimento sobre as propriedades do gênero Philomedusa, independentemente do conhecimento dos índios do Acre. “Realmente muitos cientistas ainda não internalizaram os princípios da CBD (Convenção da Biodiversidade)”, reconhece Filizola. A CBD prevê a repartição de benefícios do acesso aos recursos genéticos da biodiversidade aos detentores de conhecimentos tradicionais associados a estes recursos. “A transformação deste bem cultural dos índios em bem de mercado certamente vai gerar impactos nas comunidades indígenas. Por isso queremos viabilizar a cadeia produtiva do kampô”, diz Bruno Filizola.
O advogado do ISA, Fernando Mathias, questiona a eficácia do projeto do governo brasileiro em um caso no qual “a biopirataria já se consumou”. “O que o governo vai fazer e
m relação às patentes que já existem? Esse passivo vai ser objeto de negociação entre os índios e as empresas? Vai haver espaço para discutir a quebra ou ao menos a abertura das patentes já concedidas ou os índios vão apenas receber um troco em troca da privatização de seus conhecimentos e do patrimônio genético brasileiro?”, pergunta. “Se o que de fato prevalece neste e outros casos são os interesses das corporações transnacionais farmacêuticas, este projeto do governo corre o risco de não passar de uma cortina de fumaça no campo da repartição de benefícios”.