Constituição tem contradições quanto ao respeito à diversidade cultural

A expansão e o reconhecimento dos direitos indígenas têm como barreira os interesses econômicos de fazendeiros e mineradores, fortemente representados no Congresso por lobbies. A constatação é de Paulo Machado Guimarães, assessor jurídico do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e autor do artigo "Proteção legal das terras indígenas", que descreve o processo de incorporação dos assuntos indígenas na Constituição e seu tratamento na constituinte de 1988.

A Constituição de 1989 representa avanços para os povos indígenas no país, afirma Paulo, mas apresenta problemas, como textos destoantes de seu objetivo. Ele argumenta que, por um lado, a Carta exige que a União garanta o respeito aos direitos indígenas, como o uso exclusivo das terras e riquezas minerais dos territórios por eles ocupados tradicionalmente. Por outro, enumera exceções que servem aos interesses econômicos de grupos, como mineradores.

"A pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas pode ser autorizada para não-índios". Paulo afirma que essa situação resultou de intensos debates e disputas na constituinte, entre setores conservadores e contrários aos direitos indígenas e outros mais progressistas. "Apesar da dificuldade, conseguimos avanços com a Constituição. Por exemplo, a exploração de minérios depende de autorização do Congresso, somente quando realizada em terras indígenas".

Paulo conta que o lobby dos mineradores propagou calúnias contra o Cimi pela imprensa, na época da consttuinte. "Acusaram-nos de interessados na manutenção da terra com os índios para o país depender de importação no setor mineral. Descobrimos que a acusação partiu do lobby de produtores exportadores de estanho".

Outra exceção à regra aprovada por conta de interesses de grupos particulares é a possibilidade de remoção de indígenas de suas terras, em caso de catástrofe, epidemia ou interesse da soberania do país. "Foram interesses das empresas mineradoras, militares e de outros setores antiindígenas". Perante a força do lobby, as forças progressistas, mais uma vez, tiveram que pensar numa negociação que lhes garantisse alguma vitória. "A remoção devido a interesse da soberania está sujeita à previa deliberação do Congresso".

A situação atual dos índios localizados em regiões de fronteiras é complicada, diz Paulo. Ele usa como exemplo o limite entre Brasil, Colômbia e Bolívia. "Há livre tráfego de índios que visitam parentes em outros territórios, visitam terras, fazem coisas de sua cultura. Os militares defendem sua retirada com o fraco argumento de que é necessário povoar a fornteira com povos nacionais. Isso implica em impedir os parentes da Colômbia de visitarem os do Brasil e cria conflito pela terra no Brasil. Não vale a pena".

Ressalvas

O debate sobre incorporar os índios na Constituição existe desde a constituinte de 1916. No entanto, a apenas em 1973 o Estatuto do índio – que não integra a Constituição, mas a auxilia – deu garantias legais aos índios. "Inaugurou uma concepção de tutela do Estado sobre os índios, para garantia de direitos básicos, segurança, integridade física e cultural", afirma o assessor.

Ele julga que "na época foi interessante a aprovação, mas avançamos desde então e a legislação precisa mudar". Uma das críticas de Paulo ao texto, uma sobre a concepção de tratamento diferenciado do Estado para com povos indígenas, que os considera civilmente incapazes, em vez de se firmar sobre diferenças culturais. "Pessoa civilmente capaz é a que compreende e conhece as relações sociais e vive nelas. A concepção existente deixa o índio à margem, contradizendo o respeito à diversidade".

PEC submete demarcação de terras indígenas ao Congresso

A Câmara vai examinar a Proposta de Emenda à Constituição 319/04, apresentada pelo deputado Zequinha Marinho (PSC-MA), segundo a qual a demarcação de terras indígenas – que é de competência da União – deverá ser submetida ao Congresso Nacional. Para o parlamentar, estados e municípios da Região Amazônica têm sido inviabilizados pela criação desordenada de reservas indígenas.

Zequinha Marinho ressalta que a legislação permite a demarcação de áreas onde a presença de não-índios é consolidada – áreas com aglomerações urbanas e até mesmo sedes de municípios.

Para o parlamentar, a questão indígena tem contrariado a Constituição de 1988. "Vastas extensões de terra têm sido entregues a uma parcela extremamente diminuta da população brasileira, sem que se considerem questões relativas à igualdade de todos perante a lei, à integridade e segurança do território nacional, à segurança jurídica de situações licitamente constituídas pelo Poder Público e à sustentabilidade dos entes federativos onde essas reservas se localizam", avalia o deputado.

População indígena
A população indígena, que chegou a apenas 100 mil pessoas há algumas décadas, voltou a crescer em uma média de 3,5% ao ano – índice superior ao crescimento populacional do restante do País. O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), feito em 2002, aponta que existem 358 mil indivíduos de 215 etnias em 588 áreas indígenas identificadas, que representam quase 12% do território nacional. Dois terços desse total estão devidamente delimitados e regularizados.

O grande crescimento das áreas indígenas no Brasil ocorreu a partir de 1988, quando, pela nova Constituição Federal, o governo ficou obrigado a demarcar as áreas desses povos. Elas somavam 212 e chegaram a 391 em 2002 – um aumento de quase 85% em menos de 15 anos.

Outra evolução foi a parceria com organizações não-governamentais e com os próprios índios, que se organizaram em associações para administrar as reservas.

Tramitação
A PEC será encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania para exame de constitucionalidade e juridicidade. Se aprovada, segue para análise de uma comissão especial de deputados e, em seguida, para dois turnos de votação em Plenário.