A diversidade de povos indígenas no Brasil contradiz a constituição de uma única imagem do índio no país. Um processo histórico de mascaramento dessa diversidade, originado na época da colonização, é responsável pela atual situação, avalia a professora lingüista Rosane Sá Amaro (Faculdade de Letras da USP). Ela explica que os portugueses dividiam os índios em dois grupos: Tupis (seus aliados) e Tapuias (todos outros povos).
Essa separação simplista esconde muitas diferenças, diz Rosane. No Brasil, há três grandes grupos lingüísticos indígenas: Tupi, Macro-Jê e Aruak. "A língua não é a única distinção, o comportamento e a cultura também mudam". Somente o grupo Macro-Jê subdivide-se em 12 famílias e 38 línguas com mais de 50 variações – como Xavante, Tapayuna, Kamurú, Timbira e Pataxó.
Para exemplificar, a professora compara o Macro-Jê com um grupo lingüístico não-índio: o indo-europeu, que envolve envolve famílias, como a românica e a anglo-saxã; elas se subdividem em línguas como português, francês e espanhol (a primeira) e inglês e alemão (a segunda). "Disso, ainda há variações: português de portugal e do Brasil, de São Paulo e da Bahia, inglês britânico e americano etc. Com os índios, ocorre o mesmo, falta conhecimento disso tudo".
Para a antropóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Lúcia Rangel, as especificidades dos índios foram ignoradas ao longo da história, o que provocou a atual situação: "Os índios são a categoria que mais sofre com preconceito no Brasil". Desde a colonização, ela afirma, a vontade e os direitos dos índios são ignorados. "O português chegou e ocupou a terra, até expulsá-los de vez. Hoje, eles continuam com dificuldades de acesso à terra e a garantia de seus direitos humanos".
Critérios restritos
Apenas em 1970, uma discussão sobre as características dos índios foi iniciada, por conta de um conflito fundiário no sul da Bahia, conta a antropóloga. "Queriam reservar terras aos índios e criaram critérios de indianidade muito ruins. Faziam exame de sangue para decidir quem era índio, coisa nazista". Após críticas, o idioma virou o critério. "Insuficiente. Pode haver um índio que não fala seu idioma original". Para Lúcia, as estruturas sociais, os valores e a forma de lidar com as situações, que diferenciam os povos.
Outros critérios foram adotados, levando em conta peculiaridades dos índios como sua concepção de parentesco, que não difere o irmão do pai do próprio pai, nem a irmã da mãe da própria mãe. Mas, graves deficiências existem, afirmou Lúcia. "O modelo atual foi construído pela antropologia e leva em conta apenas uma visão ideal de nativo: com língua, corpo e rituais puramente indígenas, não contemplando a maior parte deles, que não são assim".
Cultura
Para a antropóloga, hoje, "índio" adquiriu sentido de categoria política, por conta das lutas pelo reconhecimento de seus direitos, que, segundo Rosane, levaram a avanços. O principal, ela opina, é a Constituição de 1988, que garante educação pública diferenciada aos índios que assim desejarem. Os Governos Estaduais e Federal ficam incumbidos de formar e contratar professores indígenas para lecionar em escolas dentro das tribos.
Políticas para preservar hábitos da cultura indígena são importantes, opina a linguista. Mas, tanto ela quanto a antropóloga concordam que mudanças culturais são naturais. "As sociedades ficam em contato, uma absorve coisas da outra. Comemos mandioca por influência dos índios, por exemplo. Porque eles não podem ter influência nossa, como a TV?", questinou Rosane.