Entre os dias 17 e 19 de abril, os Kootiria, conhecidos no Alto Rio Negro (AM) como “povo da água”, realizaram a cerimônia de formatura do ensino fundamental da 1ª Turma de alunos da Escola Khumuno Wu’u, símbolo de uma educação que valoriza a cultura indígena e fortalece o vínculo dos estudantes com suas comunidades.
O povo Kootiria vive na Terra Indígena Alto Rio Negro, na margem esquerda do Alto Rio Uaupés, no trecho entre o distrito de Iauaretê e Querari, na fronteira do Brasil com a Colômbia, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. Está localizado também em várias comunidades do lado colombiano, na margem direita do Uaupés. Chamados também de “povo da água”, os Kootiria estão em festa. Celebraram em abril passado a primeira formatura da Escola Khumuno Wu’u, um marco na educação indígena na região por ter, entre seus objetivos, a formação de pessoas capazes de enfrentar o mundo que está em contínua transformação e de contribuir para a melhoria da qualidade de vida de suas comunidades.
Antes da criação da Escola Khumuno Wu’u, os alunos das comunidades Kootiria estudavam até a 4ª série do ensino fundamental em salas multisseriadas em suas comunidades. A partir da 5ª série, tinham que se deslocar para o povoado de Iauaretê ou para a sede do município de São Gabriel. Por conta disso, os pais desses alunos tinham que trabalhar dobrado na comunidade para produzir excedentes para o sustento de seus filhos enquanto estudavam. Esses pais tinham também que arcar com todas as despesas para o deslocamento de suas comunidades até Iauaretê ou São Gabriel da Cachoeira para levar alimentos para os seus filhos.
Este fator contribuiu para uma grande migração de famílias Kootiria, esvaziando diversas comunidades, pois os pais sentiam-se melhor acompanhando os seus filhos nesses novos lugares. Para tanto, abandonavam suas roças e casas para morar num lugar diferente, com mínimas condições frente aos desafios impostos por essa nova realidade a que se defrontavam.
A metodologia de ensino que era utilizada nessas escolas não levava em consideração os conhecimentos próprios dos Kootiria nem dos demais 22 povos indígenas da região do Alto Rio Negro, ou seja, os alunos eram tidos como meros “depositários” de conhecimentos alheios à sua realidade lingüística e sócio-cultural. Assim sendo, a formação dessas escolas não preparava os alunos para contribuírem com suas comunidades, mas sim para irem morar em outros lugares, como na sede do município.
Diante dessa realidade, em 2002 os professores Kootiria, cursistas do Magistério Indígena I, tomaram a iniciativa de criar uma escola específica, que respeitasse a sua cultura e língua ancestral, pois estavam preocupados com a melhoria da qualidade da educação em sua região. Para tanto, procuraram parcerias para que pudessem viabilizar a criação dessa nova escola.
Uma das primeiras atividades realizadas nas comunidades com a assessoria do ISA foram as oficinas de lingüística, realizadas a partir de 2003, que contribuíram com a discussão da criação da escola que os Kootiria queriam para aquela região. Ainda naquele ano escolheram o nome da escola, que ficou denominada Khumuno Wu’u que significa “casa do pajé”. Em 2004, uma grande assembléia nomeou a associação da escola de Associação da Escola Khumuno Wu’u Kootiria (ASEKK). A associação, legalmente criada, é a instância de gestão e representação da escola, que congrega todas as comunidades kootiria do lado brasileiro.
Em 2004 também foi solicitada a criação oficial da Escola Kootiria pelo poder público, dado o início a discussão de nucleação de suas escolas, organização gradual do ensino em ciclos escolares, alfabetização em kootiria, continuidade na elaboração de materiais didáticos específicos, cadastramento no censo escolar e nos programas do Ministério da Educação.
Principais objetivos
Os principais objetivos da Escola Khumuno Wu’u são formar alunos conhecedores de sua cultura (como saber benzer, cantar e dançar nos rituais tradicionais, pescar, caçar e trabalhar com artesanato); formar alunos que ao sair da escola saibam ler e escrever em kootiria e em português; formar alunos cidadãos através de metodologias específicas que os levem ao desenvolvimento de suas criatividades; formar alunos conscientes de seus direitos e deveres frente à sociedade kootiria, às outras sociedades indígenas da região do Alto Rio Negro e frente a sociedade brasileira em geral; possibilitar a formação de alunos solidários com seus afins e com as demais etnias existentes no Alto Rio Negro; possibilitar que a escola forme profissionais que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida de suas comunidades, tendo em vista os seus projetos de sustentabilidade; formar alunos comprometidos com a sua cultura e que após o término de seus cursos possam trabalhar em pról de suas comunidades; formar seus futuros líderes, professores, políticos e assessores.
As comunidades Kootiria querem que os alunos saiam da escola com uma profissão e, para tanto, todas as salas de aula da Escola Khumuno Wu’u trabalham tendo em vista esta formação futura, que leve em conta os projetos de futuro das comunidades. Dessa forma, trabalham a metodologia de pesquisa dentro das disciplinas, por meio de temas de interesse das respectivas comunidades.
A formatura
Entre os dias 17 e 19 de abril de 2006 os Kootiria e seus convidados reuniram-se para avaliar o andamento da escola, pensar em propostas para a sua melhoria, participar da apresentação do resultado das pesquisas feitas pelos alunos formandos e comemorar, com a cerimônia Bua Bahsa, (flauta da cotia), a conquista por uma escola diferenciada.
O evento aconteceu na comunidade Koama Phoaye, sede da Escola Khumuno Wu’u, e contou com a presença de representantes de algumas instituições parceiras: Marcelo Mazzoli (do Unicef), Erivaldo Almeida Cruz (da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), Irmã Edilúcia de Freitas (secretária municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira), Geraldo Andrello (ISA) e da colaboradora do ISA, Kristine Stenzel. Além da presença de representantes da Escola Tariana do distrito de Iauaretê.
No dia 17, os Kootiria fizeram uma avaliação das atividades realizadas na escola na qual todos apresentaram o seu contentamento com a implantação da escola diferenciada em suas comunidades, enfatizando a necessidade o mais breve possível da realização de cursos profissionalizantes que levem em conta seus projetos de sustentabilidade nas áreas de psicultura, manejo agro-florestal, informática, cinegrafia e documentação cultural. Aproveitaram o momento para questionar as instituições convidadas em como poderiam colaborar com a melhoria da escola naquela região. Todos os representantes se dispuseram a continuar apoiando as iniciativas da escola.
Por fim, os Kootiria comunicaram que querem a continuidade do ensino médio naquela região e que, mesmo sem o apoio imediato dos órgãos competentes, iniciaram o 5º ciclo (ensino médio) diferenciado neste ano com os alunos que estavam se formando naquele momento. A mensagem estava presente também no discurso da formatura, lido pelo aluno Silvestre Galvão Trindade:
“… Nós formandos desta escola paramos um bom tempo sem estudar, muitos de nossos colegas desistiram por falta de ensino fundamental completo nos lugares mais próximos da nossa localidade. Enfim conseguimos implantar uma escola nesta comunidade e nós não esperamos e nos matriculamos logo e continuamos a estudar na série em que nós paramos com muita alegria. Aprendemos muitas coisas que nós não sabíamos antes…. Assim queremos continuar a servir a nossa comunidade, afim de melhorar a nossa condição de vida, pois a comunidade precisa de nós e nós precisamos dela. Senhores autoridades, nós queremos que apoiassem a implantação do ensino
médio na nossa comunidade porque essa é a nossa esperança, pois mesmo sem apoio estamos começando com muita animação….É com a educação que mantemos viva a nossa cultura.”
Finalmente no dia 19, ao som das flautas da cotia, os Kootiria começaram a sua cerimônia de comemoção de formatura. No decorrer da cerimônia muitas lágrimas e emoções por uma conquista muito importante para aquele povo, “é a relização de um sonho que esperamos por muito tempo para acontecer“ afirmava o coordenador da escola Joselito Galves Trindade. A festa prosseguiu por mais um uma noite, com os presentes dançando as 7 partes da cerimônia da flauta da cotia, ritual que terminou no dia seguinte, às 22:00 horas.
Saiba mais sobre os Kootiria
O nome tradicional dos Wanano é Kootiria que quer dizer “povo da água”. Segundo a sua mitologia de origem, os ancestrais deste povo viviam em forma de morcego (Soa Mahsã) numa árvore oca na foz do rio Querari. Um dia o povo Kubeo estava fazendo uma festa de dabucuri de carajuru (wahsisoã), e os Kootiria apareceram em forma de homens para participar da festa. Como eram bonitos, logo as mulheres Kubeo gostaram deles. Então, enquanto os Kubeo dançavam e bebiam, os Kootiria roubaram suas mulheres e as levaram para a árvore oca. No dia seguinte, os Kubeo sentiram falta de suas mulheres e foram procurá-las. Em sua busca, começaram a ouvir os barulhos de gargalhadas dessas mulheres vindo da árvore oca e ficaram muito furiosos e resolveram incendiá-la para matar todos que lá estavam. Enquanto ateavam fogo, contudo, caia água que o apagava, por isso se questionavam: quem é essa gente? São o povo da água? Por esse motivo os Kootiria receberam este nome dos Kubeo, que em sua língua esta palavra quer dizer ko= água, tiria= povo/gente.
O povo Kootiria está distribuído em 10 comunidades do lado brasileiro e pelo menos 13 comunidades do lado colombiano. Nessas comunidades a maioria dos homens é Kootiria, que são casados com mulheres de outras etnias como: Tariano, Baniwa, Dessana, Tuyuka, Tukano, Kubeo, Siriano e Arapasso. Mas, vale destacar que, nesta região tradicional dos Kootiria também vivem homens de outras etnias como os Tukano, Desana, Kubeo, Siriano, Tariano e Piratapuya com quem mantêm relações culturais, cooperação econômica e ritual. As famílias destas comunidades sobrevivem utilizando, em sua grande maioria, os recursos naturais do meio ambiente com a ajuda de processos e técnicas tradicionais na pesca, cultura agrícola, caça e na cultura artesanal. Os homens, as mulheres e as crianças têm cada um sua função especifica e complementar para a convivência harmoniosa de todos. Os Kootiria são conhecidos, entre as diversas etnias da região, como hábeis cantores e dançarinos e possuem ativos mestres de cerimônias, os bagaroa.