De acordo com o médico sanitarista Douglas Rodrigues, o atendimento prestado pela Unifesp – iniciado em 1965 – faz do Xingu uma exceção positiva em relação ao panorama da saúde indígena no Brasil, mas não consegue avançar em ações de prevenção e promoção de saúde, e fica "correndo o tempo todo atrás das doenças". Ele afirma ainda que o convênio da universidade com a Funasa também sofre com atrasos nos repasses de recursos e que a fundação ainda não conseguiu adequar o modelo de atendimento às especificidades dos povos indígenas. Leia a seguir a entrevista na íntegra.
Qual sua avaliação do sistema de saúde indígena atual?
Douglas Rodrigues – Eu vivi o tempo em que a Fundação Nacional de Índio (Funai) era a responsável pela saúde indígena e acompanhei a entrada em cena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a mudança a partir de 1999, com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os Dseis. Essa mudança foi boa, pois melhorou o acesso dos índios aos serviços de saúde. Os indicadores mostram isso, a mortalidade infantil diminuiu, ainda que a Funasa não tenha um sistema de informação confiável. O Sistema Único de Saúde (SUS) ter incluído a saúde indígena dentro de seu escopo foi também um grande avanço. Isso é inquestionável. Hoje existem propostas para a Funai reassumir o sistema. Acho que isso vai ser uma catástrofe, pois a Funai não tem estrutura nem quadros para isso e já mostrou ao longo dos anos que não consegue fazer. Quando o Ministério da Saúde assumiu o sistema, o orçamento da saúde indígena cresceu muito. Mas ter dinheiro, é importante dizer, é apenas o começo.
O que mais deve acontecer?
A Funasa não adequou sua cultura institucional, eles continuam trabalhando com os índios como no tempo que em que controlavam malária no meio do mato. Às vezes o pessoal da Funasa me pergunta quantos índios têm no Xingu para mandar cesta básica, e eu digo que não é assim que funciona. O refinamento do modelo, adequar o atendimento a cada área, isso não foi feito. Não dá para pasteurizar ações desde Brasília. E isso talvez implique mais pessoal preparado, formado para isso de forma multidisciplinar. E isso a Funasa não consegue fazer. Por que não consegue fazer? Primeiro porque a fundação não tem quadro, ela terceiriza tudo. E terceiriza do jeito que dá, meio assim: ‘com quem tiver eu faço’. Há poucas ONGs preparadas com experiência acumulada. E tem que capacitar as outras parceiras, como as associações indígenas. Senão não se cria competência técnica.
O que você quer dizer com adequar a cultura institucional?
Eles precisam entender que o trabalho de saúde indígena é muito complexo. São 400 mil índios aldeados no Brasil, mas cada mil são diferentes dos outros mil e estes dos outros 500 e por aí vai. As situações são muito distintas. Então os critérios comuns de saúde pública, como um médico para dois mil habitantes – que valem para cidades como São Paulo -, não servem ao Xingu, nem para o Dsei Yanomami, onde talvez seja necessário um médico para 500, 300 habitantes. Os índios são muito vulneráveis, estão em locais distantes e de difícil acesso.
Qual a mudança mais urgente?
O Estado brasileiro tem que possibilitar a gestão indígena do sistema. Como isso (a capacitação das associações indígenas) nunca foi feito, muitas associações simplesmente quebraram. Outra coisa é que as associações indígenas existem para defender os direitos dos índios, para brigar com o Estado por estes direitos. E o modelo atual as torna dependentes do Estado, do financiamento, e elas ficam com o rabo preso. Hoje o que você encontra nas coordenações regionais são ‘consultores’, muitas vezes apadrinhados políticos, e isso aumentou muito neste atual governo. O processo seletivo não é claro, falta transparência e os cargos são totalmente loteados. E com muita rotatividade, o que impede a criação de lastro e entendimento do trabalho. Cada um que entra quer reinventar a roda. Isso ocorre em todos os lugares, com raras exceções. O Xingu é uma delas, graças à presença da Unifesp, pela qual a gente tem como capacitar as pessoas, oferecer perspectivas de estudo e aprimoramento profissional.
A crise da saúde indígena também atinge o trabalho da Unifesp no Xingu?
A parte administrativa e financeira da Funasa está dissociada da gestão do sistema de saúde, então a burocracia é muito grande e impede que os recursos cheguem a tempo. Temos recorrentes pendências de pagamento, normalmente pendências burocráticas. No ano passado estávamos para fazer uma campanha de vacinação – o que fazemos 4 vezes por ano – e não tinha dinheiro. Quando reclamamos pela imprensa, a Funasa disse que tinha problema na prestação de conta. Mas eles não tinham nos avisado que problema era esse. Assim não ia resolver nunca. Três dias depois da nossa reclamação, saiu o dinheiro. Então quem tem poder fogo, espaço na mídia para pressionar, passa por umas dificuldades, mas acaba realizando o trabalho. Mas nossos problemas são insignificantes perto do que companheiros de outros lugares passam. O panorama do atendimento de saúde indígena no Brasil é muito desigual.
Qual a diferença?
O diferencial no Xingu é que tem uma universidade por trás, que atua na região há mais de 40 anos e que acumulou muito conhecimento sobre aquela população. Temos registros epidemiológicos desde 1965. E o atendimento sanitário no Xingu, além de ter por trás uma instituição forte e um programa consolidado em quatro décadas de trabalho, é apoiado diretamente pelos índios. Agora sei que em outras áreas, ONGs e associações indígenas ficam seis meses sem receber e não têm como trabalhar. E quando não tem dinheiro para salário, não tem também para gasolina, para motor, para remédio. E isso são as ações que chamamos de curativas. As de promoção de saúde, que são as que deveriam ser priorizadas neste modelo, nem chegam perto de acontecer.
O Xingu tem o melhor atendimento de saúde indígena no Brasil?
Em termos de modelo de atenção e de indicadores de saúde, o Xingu está entre os primeiros. O Xingu é parte da Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. O que fazemos lá eu nunca vi em outras áreas: damos cobertura de 97%, índice superior aos de muitas cidade brasileiras. Na verdade não temos muita informação das outras áreas, mas sei que no Rio Negro, por exemplo, as condições são muito piores do que no Xingu. Os Guarani de São Paulo, mesmo estando no estado mais rico e desenvolvido da União, estão em péssima situação. Por isso conseguimos olhar para frente, planejar ações, e não apenas apagar incêndios.
Qual deveria ser a prioridade, prevenção ou cura?
Tem que ter recurso para as duas coisas. A prevenção é fundamental para termos menos doenças lá na frente, mas em muitos momentos você precisa de recursos, humanos e financeiros, para cuidar das doenças que estão acontecendo na hora. Com o passar do tempo, as ações de promoção vão diminuindo este componente de doenças, até o momento ideal em que este componente fica pequeno e trabalhamos basicamente com prevenção. Mas na situação atual isso nunca vai acontecer, pois não há recursos para a promoção da saúde indígena. Então ficamos sempre apagando incêndio, correndo atrás da doença. E ainda tendo que escolher quais doenças tratar, pois muitas vezes só dá para atacar as que oferecem risco de vida.
Quais são os principais problemas de saúde na população xinguana?
O que vemos é que no Xingu há uma epidemia de câncer de colo de útero. Em abril deste ano operamos 21 mulheres xinguanas, com lesões graves, sendo que o número de mulheres sexualmente ativas no parque, que é
o grupo de risco para o HPV (vírus causador das lesões) não passa de 900. E já perdemos duas mulheres no Xingu por causa disso, pela demora nos diagnósticos, nas operações. E estamos para perder mais uma paciente. O câncer de colo de útero é uma doença emergente introduzida há uns quinze anos no parque, o que em termos de saúde pública é uma introdução recente. Quando eu comecei a trabalhar no Xingu, há 25 anos, uma gripe colocava um indivíduo adulto e forte na rede, com 39 graus de febre, o pulmão chiando. Era um agente agressor novo. Com o passar do tempo, os organismos vão ser adaptando às infecções e as manifestações clínicas deixam ser tão floridas, como falamos no jargão médico. Talvez isso esteja ocorrendo com o HPV. Por ser uma doença recente as mulheres indígenas estão tendo uma reação de defesa mais exacerbada, em um processo inflamatório que gera alterações celulares e que pode levar à lesão cancerosa. Daqui a 40 ou 50 anos a convivência da população com este agente infeccioso vai fazer com que mecanismos secundários de defesa atuem e não provoquem tantos casos de câncer. Queremos fazer uma pesquisa para confirmar essa impressão.
Ou seja, os índios do Xingu estão mais ameaçados por doenças, digamos, modernas, do que por enfermidades que prevaleciam há duas, três décadas, como tuberculose, gripe e malária?
Sim. O Xingu não é mais um lugar isolado, as pessoas entram e saem o tempo todo, o povo de lá está em permanente contato com a sociedade branca, e junto com o contato vem o contágio. Antes só se chegava lá de avião, os índios ficavam restritos à área. Hoje vai todo mundo de carro para todos os lados. Outra mudança importante é a monetarização das relações dentro do parque. Hoje há muitos índios assalariados no Xingu, seja pela Funai ou por outras instituições e projetos. Então diminuímos a incidência das doenças chamadas tradicionais, mas têm novas doenças surgindo, muitas ligadas a um estilo de vida mais sedentário e à alimentação. Antes a malária matava terrivelmente. Hoje você tem 30, 40 casos por ano. Até a década de oitenta essa quantidade acontecia a cada semana. Ao mesmo tempo, naquela época não havia praticamente casos de hipertensão arterial ou obesidade no Xingu, nem diabetes. Isso não é mais verdade. Só na área da aldeia NGoyvere e dos postos indígenas Pavuru e Diauarum temos quase 40 pessoas hipertensas, tendo que tomar remédios. Tivemos dois óbitos por acidente vascular cerebral, os primeiros da história do Xingu. Já temos dois ou três índios usando marca-passos, devido a cardiopatias conseqüentes de hipertensão arterial.
Quais os outros impactos desta mudança no estilo de vida dos índios do Xingu?
A mudança de hábito leva também a dois extremos: obesidade e desnutrição, principalmente nas grávidas, nas crianças e nos idosos. E a desnutrição em crianças simplesmente praticamente não existia. Hoje temos 15 a 20% das crianças menores de cinco anos com algum grau de desnutrição. No Xingu não temos casos graves, tirando uma ou outra exceção. Mas isso está avançando. E é intrigante. Como em aldeias cheias de alimentos tem um monte de criança desnutrida? A conclusão a que estamos chegando, a partir dos relatos dos próprios índios, é que isso tem a ver com mudança de hábitos relativos aos cuidados com as crianças. Por exemplo, uma comida especial. No Xingu, uma criança pequena não come uma série de coisas, é só um ou outro peixe que pode comer, ela se alimenta basicamente de caldos. Isso vem se perdendo. Os antigos Kaiabi nos contaram que antigamente as crianças andavam com uma cuiazinha cheia de farinha de peixe, para cima e para baixo, isso não tem mais. Além do mais, as roças estão diminuindo, a rapaziada está mais interessada nas coisas da cidade do que em abrir roça. Quer mais arrumar trabalho para poder comprar arroz e feijão.
Outra coisa que está diminuindo ou mesmo acabando no Xingu é o intervalo interpartal, o que chamamos de ‘couvade’. O período durante o qual o casal não mantém relações sexuais, que entre os índios é de um a dois anos. Exatamente para evitar que venha um filho atrás do outro. O conhecimento tradicional diz que o sujeito não pode mexer com a mulher até o filho começar a andar. Por isso que muitos têm duas ou três mulheres. Mas agora ninguém respeita mais isso. E dizem que é ‘porque é assim que os brancos fazem’. Então, agora, há uma mulher grávida e amamentando, que em algum tempo vai ter sete, oito meninos para dar de comer, a roça vai ter que aumentar, e ela acaba cuidando mais de uns, menos de outros. Portanto, há uma conjunção de causas, mas não é falta de alimento, de disponibilidade de comida. Lá as pessoas plantam, o que está acontecendo é que a comida não está chegando na boca das crianças da forma adequada, da forma tradicional. Diferente da aldeia Guarani aqui em São Paulo, por exemplo, onde não tem espaço para plantar um pé de milho.
E a obesidade?
Esse é outro problema. Antes todo mundo remava seus barcos para cima e para baixo. Agora é só barco a motor. Cortava madeira no machado, agora com motossera. E tem também o aumento da ingestão de sal e de açúcar. Para a gente entender isso, temos que lembrar da teoria do gene econômico, que diz que populações que tem acesso a alimentos de forma sazonal, ou seja, de forma irregular ao longo do ano, com períodos de fartura alternados com períodos de escassez, como os povos indígenas, tem metabolismo diferente. Estas pessoas teriam em sua estrutura genética um ou mais pares de genes que fazem com que os indivíduos absorvam muito para poder armazenar nos períodos de escassez. São os tais genes econômicos. Agora, com a sedentarização fazendo com que se gaste menos energia nas atividades diárias, e a contínua oferta de alimento, o cara fica obeso e pode desenvolver diabetes. Esse problema atinge os índios norte-americanos desde a década de sessenta. Isso agora está acontecendo no Brasil. No Xingu tivemos até hoje dois casos de diabetes, ambos de mulheres de grandes caciques. E os índios, por terem o gene econômico, têm essa tendência de desenvolver a obesidade e diabetes. Estes problemas são ameaças importantes, atuais, e a Funasa não está nem pensando em tratar, o problema deles é conseguir vacinar, controlar a diarréia.