Exposição resgata sociedade Xingu através da memória de Orlando Villas Bôas

Boa parte da sabedoria e experiência adquirida pelo sertanista Orlando Villas Bôas será transmitida ao visitante da exposição Kuarup – A última Viagem de Orlando Villas Bôas, que acontece primeiramente em São Paulo e depois segue para Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Brasília e Salvador.


Foto: Renato Soares

Com curadoria de Denise Carvalho, Gilberto Maringoni e Noel Villas Bôas, a intenção é mostrar a cultura indígena do Alto-Xingu, na qual não só Orlando, como também os seus irmãos Cláudio e Leonardo Villas Bôas, tiveram período de imersão intenso em sua cultura e sociedade. Contrariando concepções equivocadas, eles identificaram ali uma sociedade equilibrada, estável, erguida sobre sólidos princípios morais, onde o comportamento ético sustentava uma organização tribal harmônica.

Na exposição, o visitante é convidado a desbravar esses costumes, sobretudo a maneira como encaravam a morte. Isso acontecerá por meio do olhar sensível de Renato Soares, que captou uma série de fotos do ritual de homenagem aos mortos ilustres indígenas, o Kuarup, feito especialmente para Orlando em 2003. A mostra ainda reúne mapas, textos explicativos, retratos antigos e utensílios pessoais do sertanista.

Quatro espaços distintos foram pensados para a concepção cenográfica. Na primeira sala, a biografia de Orlando é representada por fotos pessoais além agrupar mapas e textos explicativos. A segunda parte reúne objetos pessoais. Em seguida o visitante é levado a um ambiente multimídia com vídeos sobre o Kuarup. Para finalizar, uma oca em estilo Xingu foi montada na última e principal sala, onde são exibidas as 34 fotografias de Renato Soares.
A importância de Orlando e seus irmãos no contato do homem “branco” com os indígenas é inegável. Eles tiveram papel fundamental na implantação de políticas de proteção à saúde e à cultura locais. Tal luta pelos direitos indígenas a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, e acima de tudo, o reconhecimento das comunidades indígenas envolvidas.

Por esses motivos, o Kuarup feito em homenagem à Orlando foi a maior honraria que um caraíba (homem branco) poderia receber. Mais de dois mil índios vindos de diversas regiões se concentraram na aldeia Yawalapiti para celebrar o que eles mesmos consideraram o maior Kuarup já realizado na região. Através da mostra, os habitantes das grandes cidades se aproximarão da relevância e força dessa cerimônia.

Kuarup – A última Viagem de Orlando Villas Bôas
Quando: 14 de Março a 11 de abril – terça a domingo, das 9h00 às 21h00
Onde: Caixa Cultural São Paulo – Sé, Galeria Octagonal e Galeria Florisbela, Praça da Sé nº 111
Entrada: Gratuita
Abertura:13 de março, às 11h00 para convidados

Ficha técnica:
Produção Cultural: Aori Produções
Projeto: Zíngara Produções
Fotografias: Renato Soares
Cenário: Juliana Augusta Vieira
Curadoria: Denise Carvalho, Gilberto Maringoni e Noel Villas Boas
Patrocínio: Petrobras

Líderes do Alto Xingu pedem ampliação de parque indígena ao presidente da Funai

A ampliação do Parque Indígena do Xingu foi uma das principais reivindicações de líderes indígenas ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, no último fim de semana. O parque, que tem quase 30 mil quilômetros quadrados, foi criado em 1961 com um território muito menor do que o inicialmente previsto, e nas quatro décadas seguintes teve áreas incorporadas.

O cacique Aritana, dos Yaualapity, explica o que foi levado pelos xinguanos ao presidente do órgão federal. “O sul do parque, aqui, tem uma área que já está em processo, faz tempo, mas não está homologada ainda”, disse. “E desse lado aqui [a divisa leste do parque] tem uma área que a gente chama de ziguezague, porque ela é toda tortinha, ninguém sabe direito onde termina o parque, se o fazendeiro já está dentro, nada disso. A gente quer que fique reta, para fiscalizar melhor.”

Outra preocupação expressa por Aritana é com a preservação da tradição cultural dos povos do Xingu. “Ele [Meira] está vendo pessoalmente o que a gente sempre faz, essa cultura. Ele tem que reconhecer e manter isso para sempre, isso é o que a gente quer.” No fim de semana os índios fizeram várias exibições festivas.

Segundo Márcio Meira, o pedido de redefinição territorial será avaliado. “Essa é uma atribuição e uma obrigação constitucional da Funai, estamos examinando”, disse. “Vamos fazer isso sempre que os índios colocarem essas demandas, com o cuidado, obviamente, de primar pelo bom senso e pelo resguardo dos direitos dos povos indígenas.”

Para Meira, é necessário que todos os setores da sociedade na região sejam conscientizados sobre a importância de preservar os cursos dágua que formam o Rio Xingu. Com relação às s hidrelétricas e outros grandes projetos previstos pelo governo para a Amazônia, como a usina de Belo Monte, no Baixo Xingu, ele diz que a Funai atuará com a preocupação de conciliar desenvolvimento e respeito ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas.

Foi a primeira reunião de Meira, que tomou posse em março, com os líderes do Alto Xingu.

Kuarup este ano se realizou próximo a sítios arqueológicos

O Kuarup, homenagem tradicional aos mortos ilustres do Xingu, foi realizado este ano próximo a sítios arqueológicos cuja descoberta rendeu em 2003 um artigo em uma das principais revistas científicas do mundo, a americana Science. A aldeia de Ipatse, dos Kuikuro, que hoje tem pouco menos de 500 habitantes, fica próxima do local onde uma equipe liderada pelo americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, mapeou, nos últimos anos, vestígios da presença de uma população superior a 50 mil pessoas – hoje, em todo o parque o número de habitantes é de cerca de 5 mil.

Dois dos principais chefes de Ipatse, Afukaká Kuikuro e Urissapá Tabata Kuikuro, assinaram junto com a equipe do arqueólogo o artigo publicado na Science. "A gente fez questão de assinar junto. Nós escolhemos os dois chefes como forma de apontar para uma colaboração muito mais ampla da comunidade na pesquisa", explica o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele foi um dos integrantes da equipe que fez as descobertas.

Os vestígios descobertos indicam a existência no Alto Xingu, entre os séculos XIV e XVI, de aldeias estruturalmente similares às atuais, mas fortificadas com paliçadas e fossos, com até 500 mil m² de área e até 5 mil habitantes. Foram 19 aldeias descobertas com a ajuda dos Kuikuro, que consideram os vestígios como sendo de seus ancestrais, conforme conhecimento que lhes foi transmitido oralmente. As aldeias eram ligadas por caminhos de cerca de 5 quilômetros de extensão e até 50 metros de largura.

A ocupação humana na região do Xingu tem cerca de 1.000 anos, segundo esses estudos. O presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Pereira Gomes, que também é antropólogo, lembra que a região sofreu grande redução populacional após a chegada dos colonizadores europeus. "Só agora estamos chegando ao mesmo nível de população que havia por aqui no fim do século XIX", diz ele.

Mércio estima que os atuais níveis de fecundidade, com crescimento populacional de cerca de 4% ao ano, levam a população a dobrar a cada 12 anos. Ele diz que a instalação de poços artesianos na aldeia, com fornecimento de água tratada, foi um dos principais fatores responsáveis pela queda da mortalidade infantil, que, calcula, chegava a 200 por mil nascidos vivos algumas décadas atrás.

Para saber mais sobre as pesquisas arqueológicas no Xingu, veja o livro "Os povos do Alto Xingu–história e cultura" , coletânea organizada por Bruna Franchetto e Michael Heckenberger.

Índios aproveitam Kuarup para pedir preservação das nascentes do Xingu

O Kuarup, homenagem tradicional aos mortos ilustres do Xingu, foi também palco este ano de articulações políticas em prol da preservação ambiental. A cerimônia que se encerrou ontem (26/08) aconteceu este ano na aldeia kuikuro de Ipatse. Um dos líderes kalapalo, Kurikaré, aproveitou a presença no evento do coordenador de Políticas Indígenas de Mato Grosso, José Seixas da Silva, para pedir que o governo do estado desautorize a construção das barragens Paranatinga I e II, no rio Culuene, cerca de 100 km ao sul do parque.

Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os Kalapalo dizem ser possível demonstrar por vestígios arqueológicos que a área era ocupada por seus ancestrais e relacionam esse território às origens históricas do próprio Kuarup. Kurikaré considera a área "sagrada". O governo do estado alega que o projeto é particular e que não pode se envolver na questão. As obras estão atualmente paradas por ordem da Justiça Federal.

Fausto lembra que o problema de as nascentes não estarem dentro dos limites do parque remonta à sua demarcação, no início da década de 60. Ele conta que o projeto original, defendido pelos irmãos Villas Boas, por Darcy Ribeiro e pelo marechal Cândido Rondon junto a Getúlio Vargas, previa uma área quatro vezes maior para o parque. Por causa da redução, várias áreas que podem ser cientificamente comprovadas como indígenas e que ficam na região das nascentes, explica, ficaram de fora dos limite do parque. "Metade das terras kalapalo está fora, por exemplo", diz ele.

Segundo a antropóloga e sanitarista Cibele Verani, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e uma das convidadas para o Kuarup, a devastação na região já se constitui num "enorme problema de saúde" no parque." Vinte anos atrás, nós tínhamos água limpa para beber em qualquer uma dessas aldeias. Hoje, a maioria das pessoas já não pode beber água de alguns rios. E, de lá pra cá, nós temos visto a poluição descer, inclusive fazendo escassear a pesca", conta ela.

O Parque Indígena do Xingu conta atualmente com cerca de 2,6 milhões de hectares e tem hoje quase 5 mil habitantes. Junto com a área Kayapó, com que faz divisa ao norte, constitui-se, segundo a Fundação Nacional do Ìndio, na maior área contínua de preservação da sociobiodiversidade brasileira, num total de quase 15 milhões de hectares.

O problema é que, ao sul, ficam fora do parque as nascentes dos rios formadores do Xingu, o principal da região, e considerado o maior "rio indígena" do Brasil, pela grande quantidade dessas comunidades às suas margens. Em volta das nascentes de rios como Culuene, Tanguro, Arraias, Ronuro, Batovi e Curisevo, têm se alastrado nos últimos anos as lavouras extensivas de soja e algodão.

Em algumas fazendas, como é visível de avião, as plantações não respeitam as matas ciliares, e as marcas de erosão se multiplicam. O resultado já perceptível pelos índios é o assoreamento. "Hoje, dá pra atravessar a pé o rio. Antigamente, era fundo", conta Fadiuvi, líder dos índios kalapalo. Ele conta também que as comunidades se incomodam com a presença crescente do turismo de pesca nos rios da região. O lixo deixado nas praias pelos turistas desce para dentro do parque na época das chuvas, e aparece na barriga dos peixes e tartarugas que servem de alimentação para os xinguanos – tradicionalmente, todos os povos do Alto Xingu evitam a carne de caça.

O que os índios temem, mas ainda não dispõem de estudos para comprovar, é a possível contaminação das águas por agrotóxicos. Segundo Carlos Fausto, o perigo é real, principalmente por causa desse hábito xinguano de comer peixe. "Nós sabemos que os efeitos da acumulação de alguns componentes, como os metais pesados, na carne do peixe, só são sentidos a longo prazo", alerta ele.

ndios do Xingu elegem vereador e vencem campeonato de futebol em cidade vizinha ao parque

Melhorias nas estradas da região do Parque Indígena do Xingu e a relação crescente dos índios com as cidades do entorno levaram público local recorde ao Kuarup que aconteceu esta semana na aldeia Ipatse, dos Kuikuro. A relação dos povos do Alto Xingu com esses municípios chegou a tal ponto que, no ano passado, os índios da região elegeram um vereador e foram campeões de futebol no campeonato municipal de Gaúcha do Norte (cerca de 50 km ao sul do parque, com 11 mil habitantes).

De Gaúcha, vieram cerca de 30 pessoas para o Kuarup, inclusive o prefeito da cidade, Edson Harold Wegner. A pedido de lideranças do Alto Xingu, a prefeitura da cidade cedeu máquinas recentemente para a recuperação das estradas dentro do parque. A benfeitoria foi intermediada por Tamaluí, índio Mehinaku que foi o vereador mais votado do município nas eleições do ano passado, com 183 votos, segundo ele. Eram tantos votos dos índios que até um outro vereador, branco, elegeu-se com o apoio de Tamaluí.

O vereador também é um dos organizadores do time de futebol dos Mehinaku, que, no ano passado, foi campeão na cidade, disputando a final contra um time dos brancos, o Juventude – este ano, dois times indígenas, o dos Mehinaku e o dos Kuikuro, chegaram às semifinais.

O discurso do vereador é conciliador. No futebol e na política. "Fui eleito para ver o lado do povo. Os caciques pedem e a gente corre atrás dos recursos lá fora", diz ele. "A gente entra no campo para jogar, para fazer gol, não para reclamar do juiz, para falar mal do bandeirinha ou do outro time."

Tamaluí explica que a reforma nas estradas ajuda as comunidades principalmente em caso de atendimentos de saúde. Ele diz que apenas as ligações entre as comunidades estão recebendo melhoria, para não facilitar a entrada de brancos no parque. Mas a prefeitura também reformou a estrada que liga a sede do município até a divisa com o Xingu, o que possibilitou, por exemplo, o público recorde de Gaúcha do Norte no Kuarup desta semana.

Tamaluí conta que, recentemente, conseguiu aprovar na Câmara Municipal uma medida em favor da preservação das matas ciliares dos formadores do rio Xingu. Ele acredita que é possível conseguir a colaboração dos agricultores do município na preservação e conta que a queda do preço da soja no mercado ajudou nesse sentido, porque está forçando os habitantes da região a pensarem em alternativas de renda. "Pra evitar o desmatamento, nós vamos trazer turista aqui pra Gaúcha. O rio está secando. Antes de acabar o rio, a gente tem que falar, não pode ficar quieto", diz.

Na quinta-feira à tarde, os visitantes de Gaúcha, com rosto pintado pelos anfitriões, faziam um churrasco, ao lado da aldeia kuikuro, enquanto esperavam o início da fase final do Kuarup. Ao lado dos turistas, Tamaluí, que diz ter se tornado vereador apenas pela vontade das lideranças, fala sobre as idéias que tem tentado levar aos brancos da cidade: "O rio não é só de uma pessoa. Não tem dono, é de todo mundo. Eu digo para eles: vamos cuidar do que é nosso. Vocês falam que o rio é do índio, mas é de todos nós."

Sebastião Salgado defende mobilização nacional pela ampliação do Parque do Xingu

O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado foi presença ilustre no Kuarup que aconteceu esta semana na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, no Alto Xingu. Mundialmente conhecido por imagens que divulgam lutas sociais e denunciam mazelas nos países em desenvolvimento, Salgado defende a criação de um movimento nacional em defesa do parque. Ele considera o Xingu uma referência cultural para o Brasil e a humanidade. "Eu espero que haja uma ação nacional contra essa corrida ao lucro, essa ganância do mundo da soja. É preciso tomar cuidado para não destruir essa referencia nacional", diz.

O fotógrafo conta que está no Xingu colhendo imagens para seu novo projeto, intitulado Gênesis. "Estou procurando referências do início da humanidade, culturas que representem o início do gênero humano como um todo. Com muito prazer, é o que acabei de encontrar aqui no alto Xingu", disse ele, em entrevista exclusiva à Agência Brasil.

O Gênesis foi lançado em 2003, tem duração prevista de oito anos e conta com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). No Alto Xingu há 40 dias, Salgado documenta não só o Kuarup, mas vários outros rituais dos xinguanos. Antes, o fotógrafo conta que esteve nas ilhas Galápagos, no oceano Pacífico, e também na Antártida. Do Xingu, irá para a Namíbia, na África, onde fotografará povos do deserto, como os Bushmen. Depois, passará pela Etiópia e o Sudão.

Economista, Salgado iniciou a carreira na Organização Internacional do Café, nos anos 70, na Europa. A partir desse trabalho, visitou países africanos e asiáticos em missões ligadas ao Banco Mundial e, ali, passou a fotografar o mundo em desenvolvimento. Hoje, é embaixador especial da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e membro honorário da Academia de Artes dos Estados Unidos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Agência Brasil – Qual é a importância do Xingu para o Brasil?

Sebastião Salgado – O Xingu, principalmente para as pessoas da minha geração, que estão hoje no comando do país, em função da idade, foi muito importante. Quando éramos jovens, os primeiros contatos feitos aqui, na época do Getulio Vargas, as primeiras apresentações do Kuarup, tudo isso teve um simbolismo muito grande.

Aos poucos, isso aqui passou a ser uma referência nacional da tradição indígena, e hoje é essencial a preservação desses rituais e das culturas aqui do Alto Xingu. Tudo isso está muito ameaçado. A fronteira do parque hoje termina dentro de uma quantidade imensa de fazendas de soja. Hoje, as fontes do rio Culuene, que na realidade é a base do rio Xingu, estão ameaçadas pela construção de barragens. Uma barragem já começou e houve uma liminar, graças à ação dos indígenas aqui do Alto Xingu. A construção foi paralisada temporariamente.

Eu espero que haja uma ação nacional contra essa corrida ao lucro, essa ganância do mundo da soja. É preciso tomar cuidado para não destruir essa referência nacional. Há muito risco. É uma cultura aquática, eles não comem outra carne senão a do peixe, então eles dependem das águas dos rios, e tudo isso está realmente ameaçado.

A minha proposta seria a de se começar uma luta nacional para transformar toda essa região, incluindo todas as fontes do rio Xingu, em parte da extensão do parque. O governo poderia fazer uma indenização dessas fazendas de soja e replantar as matas na região.

ABr – Como o mundo enxerga hoje o Xingu?

Salgado – A história das tribos do Xingu é muito anterior à história do Brasil moderno. Existem escavações aqui na região em que se encontraram aldeias antiqüíssimas, com populações imensas, com uma verdadeira cultura. Isso deveria ser divulgado no Brasil, para a gente ter a honra de ter as nossas origens a partir um pouco dessa região. É uma região importante e poderosa dentro da cultura brasileira. Não pode só haver lucro e ganância, a cultura tem que ser preservada.

ABr – Qual o sr. pensa que deveria ser a atitude da população amazônica em relação a esse tipo de ameaça?

Salgado – A população realmente amazônica tem que ficar atenta à destruição da região. A região amazônica é forte, é potente, em função das águas, pela floresta que tem, pelas reservas indígenas. Essa penetração na região para a retirada da madeira, para o lucro rápido, não serve à população real da Amazônia, serve apenas às empresas que estão à cata do lucro. A ganância não serve à população real da região.

A verdadeira população da Amazônia tinha que lutar pela preservação, porque essas é que são suas riquezas reais. Se essas riquezas se forem, isso aqui passará a ser uma região devastada e pobre. Temos a maior reserva de água doce do planeta, a maior reserva de floresta tropical: essa possivelmente deve ser a maior riqueza do Brasil hoje.

No Alto Xingu, sertanista morto é homenageado no Kuarup entre kuikuros e kalapalos

O sertanista Apoena Meireles, assassinado no ano passado em Rondônia, foi um dos homenageados no Kuarup que terminou hoje (26) na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, no Parque Indígena do Xingu. O Kuarup é uma celebração fúnebre de mortos ilustres do Xingu e, desde que os índios começaram a ter contato mais intenso com os brancos, passou a incluir também a homenagem a brancos que tiveram alguma relação com a causa indígena.

A cerimônia, que se dá sempre nesta época do ano, pode acontecer em qualquer uma das aldeias das 14 etnias que habitam a região meridional do parque, o chamado Alto Xingu. Para isso, é preciso que haja um morto ilustre (chefe ou parente de um chefe) a ser homenageado. Este ano, já tinha acontecido um Kuarup na aldeia Waurá, quinze dias atrás.

No Kuarup que terminou hoje, os homenageados principais dos Kuikuro foram Nahu e Sesuaká, pais de Jakalo, um dos principais líderes kuikuro, além de um morto kalapalo; povo que é o principal aliado dos Kuikuro. Ao todo, foram quatro troncos decorados em homenagem aos mortos. Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nahu era um dos três únicos xinguanos que falava português na época da implantação do Parque Indígena do Xingu, nos anos 60. "Por isso ele se tornou intermediário
importante e ganhou prestígio, apesar de não pertencer a uma família tradicional de chefes",
explica ele. Há cinco anos, Fausto auxilia os Kuikuro em um projeto de preservação da sua memória tradicional.

"O Kuarup é a festividade mais conhecida dos povos indígenas do Brasil", afirmou o presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Pereira Gomes, que acompanhou o Kuarup na aldeia Kuikuro entre ontem e hoje. "Apoena foi desde os 17, 18 anos uma pessoa dedicada aos índios. O pai, Francisco Meireles, também foi, e conheceu os índios daqui nos anos 40. Então, é como se fosse uma linhagem de indigenistas, e esse reconhecimento é emocionante para nós." Gomes lembrou que foi ele próprio quem tinha convidado Apoena a voltar para o trabalho na Funai, já que o sertanista estava aposentado.

No ano passado, Apoena, que, na década de 60, ainda adolescente, aos 17 anos, tinha ajudado a contatar os Cinta-Larga, índios tupi de Rondônia, foi auxiliar a Funai na mediação do caso em que cerca de 29 garimpeiros foram mortos pelos índios na área indígena Roosevelt. A área vive conflito pela posse de uma jazida de diamantes. Desde o fim de 2003, ele era coordenador regional da Funai em Rondônia. Apoena foi assassinado por um adolescente quando saía de um caixa eletrônico em Porto Velho.

Ministro da Justiça defende preservação do Rio Xingu

Na festa do Kuarup, última homenagem indígena aos mortos, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que a preservação e recuperação do Rio Xingu está na lista de prioridades do Ministério e da Fundação Nacional do Índio (Funai). "Temos uma dívida secular com os povos indígenas, e o Ministério e a Funai devem fazer um trabalho de preservação e recuperação do Rio Xingu, que é o lugar onde existe a maior população indígena no Brasil", ressaltou.

Atualmente, a principal preocupação dos índios do Xingu é com o desabastecimento de água. “As fazendas de soja desmatam e poluem as águas dos rios com os agrotóxicos”, denunciou Kotoki, o cacique da aldeia Kamayurá.

O ministro Thomaz Bastos revelou que já conversou com o presidente Lula sobre a visita ao Xingu. “O governo tem um compromisso com a comunidade indígena, até o final do mandato teremos todas as terras homologadas, demarcadas e pacificadas”, comprometeu-se. De acordo com a Funai, 12% do território brasileiro são de terras indígenas.

Essa foi a primeira vez que Thomaz Bastos participou do ritual do Kuarup. Ele fumou o cigarro do Pajé da aldeia e disse que não será a última vez que visita o Xingu. “Fiquei emocionado. É a representação da morte e da ressurreição”, enfatizou. Thomaz Bastos era o visitante mais esperado pela comunidade. “Ele trabalha na cidade, mas agora está aqui conversando pessoalmente com o nosso povo, isso é importante”, disse Paieap Kamayurá, um guerreiro da aldeia.

O Kuarup terminou no domingo (15/8) com uma luta entre guerreiros de aldeias do Alto Xingu. Os Kuikuros se reuniram aos Kamayurás e receberam ainda seis outras tribos da região. É a última etapa do Kuarup onde a disputa representa a força, a juventude, a parte alegre da festa.

Kuarup – Parte I

Este artigo explora o clássico problema dos universais do comportamento humano, a partir da narrativa religiosa e do ritual do Kuarup dos índios xinguanos, por sua comparação com rituais e tradições religiosas ocidentais.Uma de suas conclusões é bastante animadora quanto ao futuro dos povos indígenas da região: mesmo com as interferências sofridas por anos e anos de contato com não-índios, os povos do Xingu “estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.”

Em Julho de 2003, os índios do Xingu realizaram, em homenagem a Orlando Villas Bôas, aquele que eles mesmos consideraram o maior Kuarup ("festa em homenagem a mortos ilustres") de todos os tempos, que pode ter reunido de 1500 a 2000 pessoas. Dele participei como amigo de Orlando e convidado de sua família.

foto1.jpgOs índios do Xingu consideram Orlando um herói, com correto senso de justiça: em um discurso, no final do ritual, os chefes Yawalapiti lembraram que sua tribo, hoje reunindo mais de 140 pessoas em uma belíssima aldeia, esteve reduzida a sete indivíduos dispersos em outras tribos; não se esqueceram que Orlando foi convencer cada um dos sobreviventes a reconstruir sua aldeia Yawalapiti.

"Cuidado a festa do Orlando". O índio avisa a todos para que tomem cuidado e não estraguem sua pintura para a festa do Orlando. Foto: George Zarur.

Este antropólogo ainda guarda na memória a aldeia Yawalapiti, dos anos sessenta, como uma única casinha, localizada muito perto do posto indígena, por razões de apoio e proteção. Ameaçadas de desaparecimento e reconstituídas, no Alto Xingu, foram também, as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai e Txicão. No Baixo Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi – estes libertados pelos Villas Bôas da escravidão de seringais – passaram por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará levados para dentro do Parque do Xingu, em situação emergencial, teriam desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar de tomar sua terra.

Em 1971, quando realizei meu trabalho de campo na região, era ela habitada por pouco mais de oitocentos índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954. Graças aos vínculos de Orlando com o grupo liderado por Roberto Baruzzi, da Escola Paulista de Medicina, as aldeias xinguanas, em 1971, tinham um grande número de crianças para poucos adultos que, não obstante, foram capazes de sustentá-las e vê-las crescer. Hoje, a população do Alto Xingu é de mais de quatro mil índios. Muitas tribos estão se dividindo em mais de uma aldeia, devido ao crescimento demográfico. Em 1971 havia, apenas, nove aldeias, uma tribo por aldeia, com exceção dos Maitipu e Nahukwa, que devido ao seu pequeno número e identidade lingüística, estavam concentrados em uma única aldeia (As aldeias eram Aweti, Kamaiurá, Kuikuro, Kalapalo, Maitipu-Nahukwa, Mehinaku, Waurá, Yawalapiti e Trumai). Hoje, os Maitipu e Nahukwa estão, cada qual, vivendo em sua aldeia.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Bôas na criação do Parque do Xingu e na implantação de uma eficaz proteção à saúde e à cultura locais. Já, muitos caraíbas (termo pelo qual os xinguanos chamam aos brancos) não percebem, ou se recusam a perceber, que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Aliás, a "deconstrução" de lendários heróis nacionais tem sido um aspecto da fragilização política de nações periféricas, como o Brasil, nos tempos atuais. Funciona como a desmoralização que os missionários clássicos impunham aos heróis religiosos, históricos e políticos dos povos que convertiam. Os intelectuais brasileiros que se dedicam a tal prática operam como agentes coloniais involuntários. Gostaria, algum dia, de chegar a ver a "deconstrução", por norte-americanos, de Washington ou Lincoln, por exemplo… Não é, entretanto, meu objetivo, neste trabalho, "deconstruir" aspetos do pensamento social brasileiro atual.

Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava "política de direitos humanos". Convenceu, definitivamente, o País de que os índios tinham o direito à vida. Esta constatação, hoje óbvia, não o era naquele tempo, pois desde o Padre Vieira representava uma fonte de dúvidas para a ética e para a política. Justificava genocídios em série. Rondon enfrentou e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.

Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século XX, pertenciam a um grupo intelectual, político e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra indígena deveria ser preservada, como condição para garantia da vida. Mas não só: afirmou-se pela primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois reconhecia-se, como valor, a diversidade cultural. Esta era época em que se falava de "quistos étnicos" e em que os estados nacionais – dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa – atuavam pela universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com a "cultura nacional". A luta pelos direitos indígenas a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.

Ao direito à sobrevivência física foram adicionados, até como condição, o direito à posse da terra e a viver segundo sua cultura. A terra, para tanto deveria ser garantida em dimensões compatíveis com a cultura original do grupo e para amortecer os efeitos do contato com os brancos.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.

Hoje, há mudanças importantíssimas na vida do Xingu, claramente percebidas por quem, com este antropólogo, lá foi, pela primeira vez, há quarenta anos (em 1963). Há uma participação muito maior dos índios na vida nacional brasileira. Há escolas em diversas aldeias, além de professores informais, que ensinam dentro das próprias casas, de acordo com o ritmo de vida das crianças. Há televisões, com antenas parabólicas movidas a baterias convencionais ou solares. Há muitas bicicletas (usadas por homens e mulheres) e algumas motocicletas, de propriedade individual. Há aldeias que possuem caminhões e quase todas têm barcos a motor. Até a maneira de caminhar das mulheres xinguanas mudou, pois, como notou Sandra Zarur, o passinho curto e rápido que a caracterizava, foi substituído por um passo mais largo, devido, presumivelmente, ao uso de "sandálias de dedo". Roupas são usadas, principalmente no posto indígena.

A cidade de Canarana (dez horas de viagem de barco e jipe) está no limite do Parque do Xingú. As fazendas de soja cercam todo o seu território. O Parque é, hoje, uma mancha verde rodeada por uma área pesadamente desmatada. É, além de tudo, a grande reserva biol] ]>

Kuarup – Parte III

foto5.jpgO ritual do Kuarup (nome de uma madeira) revive a narrativa religiosa dos índios do Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. Por seu papel na criação do mundo, dos homens e das coisas, Mawutzinin tem sido comparado a "Deus" ou, de outra forma, ao "demiurgo" (na tradição platônica, também divino). Mawutzinin é um ser eterno, antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore. Mawutzinin é também, o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de troncos Kuarup para casamento com as onças. Dadas tais características, o conceito de “Deus” parece-nos que melhor ajuda à compreensão, em uma tradução cultural livre, uma metáfora que busque, sobretudo, a inteligibilidade do leitor ocidental.

Há vários registros da narrativa dramatizada através do ritual do Kuarup. Existe um volume inteiro sobre o tema em que o ritual e o complexo de idéias associadas são descritas2 .

Os primeiros homens, em uma das versões colhida por Agostinho teriam sido criados a partir da madeira Kuarup. Segundo a narrativa colhida por Villas Bôas, o primeiro Kuarup teria sido realizado com o objetivo de trazer os mortos de volta à vida. Abaixo transcrevemos a versão dos Villas Bôas3 , por ser em português mais claro que o "dialeto do contato" transcrito por Agostinho e, também, por representar uma versão menos detalhada mas, possivelmente, mais "universalmente" xinguana da narrativa:

"Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.

Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.

Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.

Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.

Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. "Ninguém pode ver" – dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente.

Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.

Os cantadores – os cururus e as cutias – quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda.

Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera…espera…espera" – dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.

Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.

Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.

Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: – O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:

– Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora vai ser só festa.

Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. Tem que ficar assim mesmo, disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no Morená."

O Kuarup só é realizado para pessoas ilustres, seja por um critério de "sangue", seja por um critério de liderança política ou econômica. A sociedade xinguana apresenta duas classes tradicionais, o "morekwat" (na lingua Aweti) ou "morerekwat", (em Kamaiurá) os descendentes uma classe hereditária de chefes, originários dos primitivos índios de cada tribo. Os "morekwat" têm o direito (teórico) à propriedade do pátio da aldeia e uma posição de destaque em determinados rituais. A eles cabem os discursos e representar a aldeia no momento do recebimento ou oferta de presentes em rituais, especialmente, nos de caráter intertribal. Possuem o direito ao uso de uma pintura característica no braço.

Além da chefia tradicional há, ainda, a liderança emergente do contato interétnico, índios que melhor falam o português e desempenham a função de intermediários culturais com a sociedade caraíba. Em um trabalho anterior4 , denominei-os "capitães", termo que embora seja usado pelos índios como tradução de "morekwat" enfatiza a relação com a sociedade nacional brasileira.

Opostos aos "morekwat" (lideranças hereditárias tradicionais) e "capitães" (lideranças novas resultantes do contato interétnico) estão os "camara", transformação do termo português "camarada".

Normalmente, os "morekwat" e "capitães", por sua situação estratégica nos diversos rituais, possuem a indispensável capacidade de mobilização econômica, que lhe permite acionar uma forte rede de parentes e outras pessoas, para a produção de alimentos e, assim, "pagar" rituais maiores, como é o caso do Kuarup, o maior de todos. Há um intricado sistema de prestações e contraprestações, que se inicia com a iniciativa dos familiares da pessoa morta e vai se desdobrando até atingir todas tribos do Xingú.

Tradicionalmente, o Kuarup era realizado, apenas, para os "morekwat" (hoje, também, para "capitães" e outras pessoas importantes), pois eram esses chefes tradicionais associados aos p

rimeiros índios, que viveram a narrativa do Kuarup. A realização de um Kuarup, em homenagem a determinada pessoa ilustre, representa, portanto, o reconhecimento de que esta pessoa estaria associada aos primeiros índios que conviveram com Mawutzinim. A realização de um Kuarup significa, assim, uma grande honraria, o reconhecimento de que o homenageado passa a ser situado no mesmo nível dos que conviveram com Mawutzinim, isto é, são incorporados ao povo descrito na narrativa religiosa e passam a integrá-la.

A idéia de convívio com a divindade apresenta um claro paralelo com a situação dos santos católicos que, também, convivem em proximidade com a divindade. Outro paralelo é a questão da transgressão na narrativa do Kuarup, na medida em que o processo de ressurreição é interrompido, pelo fato de um dos índios ter mantido relações sexuais enquanto acontecia. É desnecessário elaborar a idéia do sexo como transgressão e seus efeitos no Cristianismo, como aparece na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Durante a quaresma, a "abstinência" não se fazia, tradicionalmente, apenas com o jejum de alimentos.

Por outro lado, a proibição do sexo durante o Kuarup pode estar associada à criação da vida por um método não "biológico". Para que haja a plena criação da vida pela divindade não pode haver a criação da vida pelos homens, através do método que lhes é próprio, o sexo. Um método inviabiliza o outro. Quando Mawutzinin diz que "agora é só festa" está dizendo que resta o método humano de criação de vida.

O kwarup que assistimos foi oferecido pelos índios Yawalapiti, em associação com as demais tribos de língua Aruak, os Mehinaku e Waurá. Esses índios, chegaram antes dos demais e foram abrigados nas casas dos Yawalapiti. Os homens vieram dançando, acompanhados por algumas poucas mulheres, principalmente meninas, fazendo, na dança, uma fila paralela à dos homens. As demais mulheres chegaram discretamente.

Depois de muita dança, alguns índios foram para o mato cortar um tronco do arvore kwarup. Foi construída uma cobertura de palha, um "rancho", em frente à "Casa dos Homens", sob o qual foi fincado o tronco no chão. O tronco foi descascado e aplainado para receber a pintura.

foto2.jpgO tronco do Kuarup recém colocado e decorado. No chão os arcos, cocares e maracás dos dois cantadores, que tinham, por um breve momento, interrompido sua atividade. Foto: Sandra Zarur

Dois cantadores, que lá se encontravam, previamente, deram continuidade ao seu trabalho, acompanhados por seus maracás. A tradução que me fizeram foi a seguinte da letra da música:

"Auíre ("morekwat" em Ywalapiti, "chefe"), você está sendo pintado,
Sua pintura está ficando muito bonita".

foto3.jpgEste e outros refrãos parecidos são repetidos, e o que é importante é que se dirigem ao tronco como a uma pessoa humana. A pintura (de sapo) é, não apenas, humana, como é aquela só de uso dos chefes importantes. O tronco é decorado com os mais belos ornamentos masculinos, como cinto de algodão colorido (dois são colocados), colar de caramujo, e cocar de penas. Tudo em tamanho maior do que seria usado por humanos vivos, pois sua dimensão é adequada à do tronco.

Os cantadores apoiados no arco e com o maracá na mão direita. Foto: George Zarur.

No primeiro dia de efetiva realização do ritual (os demais dias foram preliminares) começaram a chegar as demais tribos, que foram se instalando ao redor da aldeia iawalapiti. No final da tarde e começo da noite foi feita uma fogueira em frente ao tronco do kwarup. Os homens de cada uma dessas aldeias visitantes vieram dançando e cantando e um deles se aproximava para recolher o fogo com que se aqueceriam suas fogueiras na fria noite xinguana.

foto4.jpgUm dos índios veio correndo e tirou um dos cintos de algodão do tronco do kwarup. Este é uma ação que só os grandes campeões da luta huka-huka têm o direito de realizar. É como um desafio ao grande chefe que está em processo de revivescência no tronco.

Dança do Kuarup. Foto: George Zarur

A visita de outras tribos é, sempre, um processo considerado muito perigoso, especialmente devido à possibilidade de feitiçaria, que pode ser realizada com um resto humano qualquer, como um pouco de cabelo. Há muita tensão. A entrega do fogo às tribos visitantes e as danças associadas não interrompem o cantochão do cantadores.

foto5.jpgDurante a noite, há um momento que corresponde ao da ressurreição do homenageado, que estaria, fugazmente, presente no tronco da mesma maneira que na narrativa religiosa acima transcrita. Segundo me informou um dos morekwat yawalapiti, no Kuarup que homenageou Cláudio Villas Bôas, em um dado momento, as penas do cocar teriam mexido. No Kuarup de seu pai (Kanato), os morekwat yawalapiti, os irmãos Aretana e Piracumã, relataram-nos terem ouvido um farfalhar, um vento, na cobertura de palha que cobre o Kuarup e em seguida ter visto o pai de pé, em frente ao tronco. Piracumã informou ter desmaiado com a visão.

O aprendizado do ritual pelas crianças. Foto: George Zarur

Este momento é o da virtual ressurreição do morto. Corresponde ao instante em que os troncos da narrativa religiosa começam tomar vida. Foi quando Orlando retornou e esteve perto de nós. Foi o momento em que a família de Orlando se aninhou junto ao tronco e três amigos de Orlando, um dos quais o autor deste artigo, foram chamados para sentar-se próximo à família e ao tronco.

O momento seguinte foi das carpideiras, cinco mulheres de idade, enroladas em cobertores que choravam , um choro tristíssimo, repetido, com voz muito baixa. Não é difícil comparar tal costume com o das carpideiras mediterrâneas. A diferença é a notável delicadeza do choro baixo das xinguanas, embora no Nordeste brasileiro, por exemplo, também haja "incelenças" muito belas e, também, delicadas.

Parecia haver uma alternância e, por vezes, uma disputa, entre as vozes masculinas dos cantadores e as femininas das carpideiras. Como se os homens estivessem estimulando o morto a reviver e as mulheres chorando, cantando tal impossibilidade.

Pela noite inteira ouvem-se as vozes ritmadas dos cantadores e, até um dado instante, bem baixinho, o choro sentido das carpideiras.

A manhã seguinte, com os primeiros raios de sol, são ouvidos os gritos, por meio dos quais as tribos visitantes, que dormiram ao redor da aldeia, anunciam sua chegada. Acaba o choro e a atividade dos cantadores. Nota-se perfeitamente, que se inicia outra etapa do ritual. Chegam os índios e, rapidamente, começam as lutas de huka-huka, primeiro, uma a uma, entre os campeões das diferentes tribos e, depois, lutas simultâneas, principalmente, entre indivíduos mais jovens que ainda não se afirmaram como bons lutadores. Houve um momento em que havia perto de 30 lutadores, simultaneamente, em atividade.

Foto 6: Huka-huka: notar a pintura de peixe do lutador da esquerda e de onça, do lutador da direita. A narrativa completa da origem dos homens faz menção à luta dos peixes contra as onças. Foto: George Zarur

A mãe de um dos lutadores, uma mulher kamaiurá, entrou no círculo dos lutadores e
fez um discurso político, em defesa de Takumã, o capitão Kamaiurá. Gritou para que todos ouvissem que "Takumã não era feiticeiro".

O morekwat yawalapiti ajoelha-se frente ao morekwatde cada das tribos visitantes recém-chegadas e lhes oferece, em hospitalidade, peixe e beiju, que o chefe visitante, vai, posteriormente distribuir à sua tribo. Em se tratando de "morekwats", uo seja, chefes por "nobreza de sangue", alguns dos que recebem a oferenda são muito jovens. Ficam sentados nos bancos em que são esculpidas cabeças de gavião, de seu uso exclusivo, e assumem uma postura corporal de superioridade, uma "pose aristocrática". Posteriormente às lutas há um moitará, ritual de trocas, em que cada tribo oferece os produtos de sua especialidade (arquetipicamente, os Aruak, a cerâmica; os tupis, o arco preto; e os karib, os colares de caramujo).

O ritual é encerrado com o lançamento do tronco do Kuarup na água. Houve, porém, no Kuarup do Orlando, uma inovação: entre o Moitará e o lançamento dos toros na água, houve a reunião de boa parte dos presentes, para a apresentação de um vídeo. Sentados frente à tela nas poucas cadeiras disponíveis, o Embaixador do Canadá e a família Villas Boas. O vídeo falava da possível poluição das nascentes do Xingu e, após os chefes yawalapiti, falou um visitante Xavante, filho do chefe e ex-parlamentar Mário Juruna e o representante de uma ONG, ao que parece apoiada pela Embaixada canadense, interessada em avaliar a possível poluição das nascentes do Xingu.

Embora o evento tenha representado uma quebra da seqüência do ritual tradicional, não aconteceu uma ruptura com sua lógica, como apontaram alguns puristas. A inclusão de um espaço para os caraíbas em um ritual de articulação política entre sociedades distintas, apenas reforçou o próprio ritual como instrumento de diálogo e articulação interétnica.

2 Kwarup, Mito e Ritual no Alto Xingu, de autoria de Pedro Agostinho da Silva (Edusp, )
3 Xingu: os índios, seus mitos, de Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas – Ed. Kuarup)
4 George Zarur, Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingú. Brasília, Funai, 1975.