Publicado originalmente em 13/02/2005 este artigo de Marcelo Beraba, ombudsman do jornal Folha de São Paulo, descreve a situação de calamidade na qual se encontram as comunidades indígenas guaranis em Mato Grosso do Sul e a falta de atenção da imprensa para o assunto. Acompanhe o texto original:
A Folha perdeu nesta semana uma ótima oportunidade para destacar um drama que deveria provocar em todos inconformismo e indignação. Refiro-me à morte, em Dourados (Mato Grosso do Sul), de uma menina índia de três anos e 11 meses por desnutrição.
É inacreditável que no país dos obesos e do Fome Zero, num Estado enriquecido com a agricultura e a pecuária, uma criança morra de fome. E é inacreditável que este fato não provoque uma comoção nacional. Apenas a sucessão cotidiana e interminável de fatos escandalosos pode explicar a aparente letargia que volta e meia nos domina.
A Folha previu a morte da menina, mas não soube expô-la como devia.
O correspondente do jornal em Campo Grande, Hudson Corrêa, fez a primeira reportagem, publicada no dia 25 de janeiro. Seu texto informava que "27% das crianças indígenas de Mato Grosso do Sul de até cinco anos estão desnutridas e que em 2004 a mortalidade infantil chegou a 60 por mil nascidos vivos, quase o triplo do índice verificado entre a população brasileira". A Folha publicou a reportagem sem destaque.
No sábado, 5 de fevereiro, o jornal editou novo relato do mesmo jornalista, "Verba do Fome Zero para índio fica parada". O texto mostrava que o governo de Mato Grosso do Sul tinha deixado de aplicar cerca de R$ 1 milhão recebido do governo federal para o programa Fome Zero na área indígena. Estávamos, portanto, diante de uma grande tragédia: crianças desnutridas e sem amparo.
No dia 8, terça, morreu a menina Caiuá de três anos e 11 meses. O jornal publicou apenas uma nota perdida no meio do noticiário político. Era a segunda criança indígena anônima que morria neste ano, de acordo com o relato do correspondente. A outra, um bebê de oito meses, morrera em janeiro. Quinze crianças morreram em 2004.
O jornal tinha a obrigação de levar seus leitores para o meio da tragédia, de transformar os números em rostos e nomes, de abandonar a notícia fria da morte por um relato local, que mostrasse as condições de vida daquelas famílias que estão perdendo crianças por falta de alimento em pleno século 21.
O jornal tem agora o dever de iniciar uma investigação séria: para onde vão de fato os recursos empregados em tantos programas sociais dos governos federal, estadual e municipais? Se a Funai e os governos conhecem o problema há tanto tempo, se o problema está limitado a um grupo social e a uma região demarcada, por que não conseguiram impedir as mortes?
Este, infelizmente, é um grande caso para os jornais. O correspondente da Folha em Campo Grande teve sensibilidade para perceber a relevância do drama. A Redação em São Paulo não soube, no entanto, dar ao caso a dimensão que exigia.
Questionei o jornal e recebi o seguinte depoimento do editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva: "Difícil dizer que o assunto foi desdenhado. Noticiamos na edição de quinta a morte da menina com razoável destaque. E na sexta voltamos a mostrar que o governo agiu tardiamente em relação ao problema, ampliando o Bolsa-Família já com o estrago consumado. Mostramos ainda que entidades ligadas aos índios vêem a medida como um "paliativo cínico" e criticam a ausência de medidas estruturais para ao menos equacionar o problema a médio prazo.
Isso posto, acho não só legítimo como razoável que o ombudsman veja no episódio uma oportunidade jornalística mal aproveitada. Não vejo assim, mas a discussão é relevante. São tantos e tão cotidianos os escândalos sociais no Brasil que acabamos todos, de alguma forma ou em algum momento, reagindo de forma apática ou anestesiada a muitas coisas intoleráveis".
Artigo reproduzido sob autorização do autor