Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional, hoje, mais de 70 diferentes projetos de lei e de emenda constitucional que tratam, direta ou indiretamente, de direitos indígenas. Grande parte desses projetos, infelizmente, visa restringir ou diminuir direitos já adquiridos, notadamente os relativos à terra e aos recursos naturais. Mas outros tentam avançar na atualmente confusa legislação indigenista e estabelecer um novo patamar de relação entre os povos indígenas, a sociedade brasileira e o Estado nacional. Questões como o uso de recursos naturais em terras indígenas e o fim da tutela oficial pelo Estado esperam há anos uma regulamentação clara que supere a legislação em vigor e oriente a implementação de políticas públicas específicas.
O seminário “Avaliação da Agenda Legislativa sobre os Direitos Indígenas e Definição de Prioridades” surgiu de uma reivindicação dos membros do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), durante o Abril Indígena de 2006, junto ao deputado Aldo Rebelo (Presidente da Câmara dos Deputados). A idéia é que seja criada uma comissão especial que reúna todos os projetos de lei referentes a direitos indígenas, evitando assim a fragmentação dos temas em diversas legislações esparsas. Nesse sentido, o objetivo do seminário foi discutir como avançar, na próxima legislatura, na análise e aprovação desses projetos e se é possível reuni-los todos dentro de um único marco legal, que seria o novo Estatuto das Sociedades Indígenas (PL 2057/91) e que se encontra parado na Câmara dos Deputados há mais de doze anos.
Essa questão não foi objeto de consenso, pelo menos entre os expositores. Luiz Fernando Villares, Procurador Geral da Fundação Nacional do Índio (Funai), afirmou que será apresentado ao Congresso, no princípio do próximo ano, um projeto de lei regulamentando a mineração em terras indígenas e que este deve ser tratado como um projeto autônomo, ou seja, fora do marco do novo estatuto. Para o procurador, essa manobra afastaria um dos focos de resistência ao projeto ora em tramitação e ajudaria a aprová-lo. Outros, porém, temem que o tratamento separado venha a significar a aprovação dos projetos sobres os quais incidem maior interesse econômico (como mineração e aproveitamento hidrelétrico), enfraquecendo e deixando para um futuro incerto o tratamento dos demais assuntos, muitos deles pouco importantes para o Poder Público ou para grupos econômicos, mas fundamentais para os povos indígenas. “O novo Estatuto das Sociedades Indígenas deveria ser aprovado antes, trazendo os princípios gerais pelos quais eventuais questões específicas viessem a ser tratadas em separado”, afirma o deputado Luiz Alberto (PT/BA).
Durante o seminário o representante do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) apresentou o conteúdo do anteprojeto de lei de mineração que está sendo discutido no Governo Federal. Desde os incidentes ocorridos entre índios Cinta-Larga da TI Roosevelt, em Rondônia, e garimpeiros, a Casa Civil da Presidência da República determinou prioridade ao assunto, mas, diante da resistência das organizações indígenas e indigenistas aos projetos ora em tramitação – e de um posicionamento contrário de setores do próprio governo -, resolveu elaborar um projeto totalmente novo a ser apresentado ao Parlamento. O senador Romero Jucá (PMDB/RR), autor de um dos projetos em trâmite, acredita que ele deve ser apresentado o mais rápido possível à Câmara dos Deputados (onde estão os dois principais projetos hoje sobre o tema), como um substitutivo ao seu projeto. Porém, o Procurador da Funai afirmou que, antes de ser enviado ao Congresso, o projeto será submetido aos povos e organizações indígenas diretamente interessados no assunto, conforme direito assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Potencial hidrelétrico
Outro assunto que desperta grande interesse, por sua importância econômica, é o da exploração de potencial hidrelétrico em rios que cortam terras indígenas. Segundo dados constantes do recém-publicado Plano Nacional de Recursos Hídricos, a bacia amazônica é a que tem maior potencial para exploração hidrelétrica dentre todas as bacias nacionais. O potencial estimado é de 107.143 MW totais. Desses, menos de 1% é atualmente utilizado. Considerando que as grandes bacias do sul e nordeste do país (Paraná, Uruguai, São Francisco) já estão próximas de sua utilização máxima, fica evidente que a região amazônica é a próxima grande fronteira energética do país, o que aliás já vem acontecendo no Pará, onde está instalada Tucuruí, uma das maiores hidrelétricas do país (bacia do Tocantins).
Como pouco mais de 20% da bacia amazônica são terras indígenas, é provável que a construção de novas hidrelétricas na região venha a ter impacto sobre essas terras, como ocorre com Belo Monte. Como a Constituição Federal exige regras específicas para casos como esses, de forma a proteger os modos de vida diferenciados dos povos indígenas e os recursos naturais dos quais sobrevivem – e garantir o direito de consulta prévia aos povos afetados -, é necessária a aprovação de uma lei que oriente o processo decisório sobre a instalação das usinas. O representante da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no seminário sugeriu que uma mesma lei trate de mineração e aproveitamento hidrelétrico, o que o ISA não acredita ser possível, por serem temas complexos e com procedimentos administrativos bastante diferenciados.
Azelene Kaingang, socióloga indígena, defendeu que qualquer novo marco legal tenha como pressuposto a garantia do direito de consulta prévia aos povos indígenas para projetos e políticas que afetem seus direitos coletivos, como previsto na Convenção 169 da OIT. O PL 2057/91 traz regras genéricas sobre a consulta, que deve ser tanto mais complexa quanto for o projeto em questão, razão pela qual a retomada da discussão do novo estatuto deve começar por rever a forma de tratamento do tema, já à luz das disposições da Convenção 169 e da experiência em outros países. A falta de uma regulamentação em nível nacional fez com que, por exemplo, o projeto de implantação da UHE Belo Monte fosse aprovado pelo Congresso Nacional sem consulta prévia.
Ao fim, esvaziado o auditório e as mesas de apresentação, com poucos deputados presentes divididos entre as discussões e a agenda de votação no plenário da casa, não se chegou a uma conclusão sobre como resolver o atual impasse na tramitação do Estatuto das Sociedades Indígenas e nos demais projetos relacionados. Como prometido pelo presidente da Casa, Aldo Rebelo, essa discussão deve ser retomada ainda nesse fim de ano, para que em 2007 já se tenha uma orientação de como proceder. Falta, porém, um posicionamento claro e unívoco do Governo Federal para que isso possa ocorrer, o qual possivelmente só virá após a formação da nova equipe de governo.
Mineração em terras indígenas
A questão da mineração em terras indígenas é uma das mais polêmicas dentre as que devem ser tratadas pelos projetos sob análise do Congresso Nacional. Por ser uma atividade com grandes impactos ambientais e sociais, a Constituição Federal exigiu a aprovação de lei específica para que possa haver mineração em terras indígenas, razão pela qual o tema desperta tanto interesse.
Segundo levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental há mais de cinco mil processos administrativos no DNPM que visam obter direito de exploração mineral em terras indígenas na Amazônia Legal, onde se concentra 99% da superfície de terras indígenas no País. Segundo todos os projetos em tramitação, para que possa haver mineração nessas áreas é necessário que exista claro interesse nacional na exploração de determinada jazida e que a escolha da empresa mineradora seja precedida de concorrência pública, de modo que a proposta com menores imp
actos ambientais – e com maior retorno econômico aos povos indígenas afetados – seja a selecionada.
Porém, uma das grandes polêmicas em torno do tema é o que fazer com os processos que foram iniciados antes da vigência da regra constitucional. Segundo levantamento do ISA, mais de 1.800 processos em tramitação se encontram nessa situação. Sua grande maioria é de requerimentos de pesquisa, que se limitam a expectativas de direito, e não geram concessões de direitos de exploração mineral, apenas eventual direito de prioridade com vistas a uma obtenção futura e incerta desses direitos. Ainda assim, alguns defendem que se forem cancelados, ou caso tenham que obedecer às regras novas (em que não há regime de prioridade), estariam sendo afetados “direitos adquiridos”, o que poderia gerar direitos indenizatórios contra o Estado. Segundo dados do ISA, porém, há apenas 4 concessões de lavra incidentes sobre terras indígenas na Amazônia, e nem todos concedidos antes de 1988, razão pela qual o temor de uma “enxurrada” de pedidos de indenização não procede.
O anteprojeto de lei apresentado pelo DNPM durante o seminário supera essa questão, ao determinar o cancelamento de todos os títulos ou processos abertos antes da promulgação da lei. Diz também que os recursos auferidos com a lavra mineral devem ser repartidos com os povos afetados pela atividade, em montante de cerca de 3% do total do faturamento bruto. Esses recursos, porém, não seriam manejados diretamente pelos povos e suas organizações, mas estariam submetidos a um comitê gestor, do qual a Funai faria parte. Além disso, metade dos recursos seria direcionada a um fundo, sob gestão integral da Funai, que serviria para compartilhar os recursos derivados da mineração com outras terras que não tenham recursos minerais em seu interior.
Esse anteprojeto, em elaboração há mais de dois anos dentro do Poder Executivo, se encontra atualmente na Casa Civil, à espera de um acordo final entre os ministérios. Segundo a Funai, ele será apresentado e discutido com os povos e organizações indígenas antes de ser enviado ao Congresso. Mas não parece ser essa a disposição dos demais ministérios, principalmente do Ministério de Minas e Energia.