Doença de índio, por Ligia Bahia

Por Ligia Bahia, originalmente publicado no Blog do Noblat

Recursos assistenciais modernos, financiados com verbas públicas para atender exclusivamente ricos, acirram desigualdades na saúde. A falta de posto, hospital, equipamento, médico, remédio e qualidade no atendimento para quem mais precisa corresponde à exuberante disparidade social, regional, étnica e racial nos indicadores de saúde.

O desacerto entre as necessidades e as chances de obter cuidados é o resultado da concentração de dinheiro do governo para a parcela da população mais saudável, com a insuficiência de assistência aos grupos vulneráveis. Logo, as carências não são generalizáveis.

Em 2010, o gasto per capita com saúde foi de R$ 726. Cada brasileiro teve direito em média a R$ 2 por dia, quando recorreu ao SUS. Para a população indígena, cerca de 300 povos que constituem uma das maiores diversidades étnicas e linguísticas do mundo, o valor foi bem menor, R$ 411.

Entre indígenas e não indígenas as desigualdades na saúde são flagrantes. Apesar do recente crescimento demográfico dos povos indígenas, os diferenciais entre a expectativa de vida, taxa de mortalidade de crianças e acesso ao sistema de saúde persistem.

A incidência de doenças infecciosas e parasitárias (malária, tuberculose, diarreia e pneumonia) é maior na população indígena. Além disso, o envolvimento de indígenas com a sociedade nacional e global, e as mudanças em seus sistemas de agricultura e extração em função da aquisição ou oferta de alimentos industrializados, causam obesidade, hipertensão e diabetes.

A Constituição de 1988, que reconheceu a organização social, línguas, costumes, tradições e os direitos originários sobre as terras que os índios ocupam, atribuiu ao SUS a responsabilidade pela saúde indígena.

Os distritos especiais de saúde indígena foram criados com o propósito de respeitar as diferenças socioculturais e, portanto, romper com a imposição dos referenciais e práticas terapêuticas ocidentais.

Consequentemente, a construção de espaços de interação entre as equipes do SUS e os povos indígenas é duplamente desafiante. As rotinas de atendimento aos povos indígenas requerem, frequentemente, adaptações a condições geográficas e demográficas e compreensão mútua das diferenças sobre os referenciais de causa das doenças.

A atividade de vacinação de povos indígenas, por exemplo, que pode exigir a subida e a descida de rios, depende do tempo da conservação de imunobiológicos no gelo. A doença, na perspectiva indígena, é entendida como uma ameaça coletiva, extensiva ao grupo de parentes e desencadeia estratégias de cuidados igualmente compartilhadas.

Para restabelecer a saúde é necessário re-harmonizar a ordem social e cosmológica. As “doenças de branco” são apenas como uma expressão sintomática de fenômenos muito mais complexos. A introdução de substâncias químicas no corpo tem um grau de importância relativamente menor do que uma viagem xamânica em busca da resolução dos problemas coletivos que propiciaram a eclosão da doença.

Com poucos recursos e sem a constituição de equipes do SUS com formação adequada, as desigualdades na saúde entre indígenas e não indígenas se acentuarão. Os persistentes problemas relacionados às terras, a educação e saúde ameaçam objetivamente a sobrevivência dos povos indígenas.

Constatam-se duas formas para abordar a saúde indígena no Brasil. A primeira entende que existem índios tão somente situados no território brasileiro, sem manter relação de pertencimento parcial ou integral para com o país, e a segunda considera que esses povos constituem o Brasil. São modos opostos de encarar o problema e sua solução.

Caso se considere que os índios moram em solo “nacional” por acaso, em função de processos sociopolíticos que não foram de sua própria escolha, as providências para atender seus problemas de saúde tenderão a contingentes. Se, ao contrário, concebermos que o brasileiro é índio, a saúde indígena constituirá um componente necessário e prioritário das políticas de saúde.

Em 2013, o Brasil vai realizar uma Conferencia Nacional de Saúde Indígena. As reivindicações dos povos indígenas incluem o aumento de recursos financeiros para saúde e participação nas decisões. A ocasião é propícia, em função da visibilidade das inúmeras manifestações públicas dos indígenas e não indígenas e dos avanços internacionais em relação aos direitos da saúde dos povos indígenas.

Como a comparação com outros países virou mania entre os atuais dirigentes da saúde, nada melhor do que pegar jacaré nessa onda.

O governo australiano acaba de anunciar seu plano de saúde para aborígines nacionais. A característica fundamental do plano é investir mais na saúde indígena e abordar o racismo que por muitos anos tem dificultado o acesso de indígenas australianos aos cuidados e aos serviços de saúde pública.

O compromisso estabelecido pelo Ministério da Saúde australiano é o de propiciar condições para que os indígenas tenham o mesmo status de saúde do restante da população e permitir que a compreensão holística sobre saúde dos indígenas seja praticada e investigada, com finalidades científicas mediante a cooperação entre iguais.

O Brasil precisa rever as concepções e as práticas que organizam a atuação do SUS na saúde indígena, a começar pelos investimentos e ruptura com a apresentação e representação do trabalho que envolve os cuidados aos povos indígenas como algo exótico. A retórica pró-diversidade ancorada no silêncio a respeito das desigualdades e etnocídio puxa o país para trás. Se os índios não tiverem saúde, não teremos saúde.

Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Impactos subavaliados em grandes obras

 
Por Márcio Santilli, coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do Isa.org.br
Publicado originalmente no em O Globo, 05/03/2013.

 

Infraestrutura é bom e todo mundo gosta. Facilita a comunicação, o transporte, o trabalho, a assistência, o escoamento de produtos. Melhora as condições de vida, o acesso à informação, o processo civilizatório. Os índios apreciam a instalação de poços artesianos que lhes tragam água limpa onde ela está ficando suja, a construção de casas, a abertura de pistas de pouso e de vias de acesso a comunidades remotas. Assim como o uso do celular, de sistemas de rádio e da internet.

Ocorre que implantar um grande projeto de infraestrutura numa região remota, ecologicamente sensível e onde é precária a presença do Estado, requer cuidados que reduzam os impactos negativos, potencializem os efeitos positivos para os que ali vivem e diminuam os custos gigantescos dessas obras e ainda o grau de sacrifício que o país precisa fazer para construí-las.

Não há razão para que uma grande obra não possa ser implantada com cuidados e sabedoria em relação ao território e à população afetada. Se pessoas terão que ser removidas, seria justo que fossem reassentadas ou indenizadas antes da mudança. Se uma linha de transmissão vai cruzar e impactar uma região com populações desprovidas de energia, seria lógico que pudessem se beneficiar dela. Se pessoas serão deslocadas para a sua construção, seria óbvio prover escolas, postos de saúde e residências para que pudessem trabalhar em melhores condições e sem que a sua presença promovesse a degradação das condições de vida dos habitantes anteriores do lugar.

Quando se trata de índios, que, assim como suas terras, não são removíveis, e dependem dos recursos naturais que possuem, os impactos diretos e indiretos de grandes obras podem trazer consequências trágicas e irreversíveis. O que pode nos parecer ridículo diante do benefício da luz, como um maldito bagre que não sobe barragem de hidrelétrica, pode representar para índios a perda definitiva de uma fonte essencial de alimento saudável.

Se uma grande obra deverá provocar um rápido adensamento populacional em região sensível, é previsível o aumento da pressão sobre os recursos naturais e o risco de invasão das terras e da introdução de doenças, além de outros malefícios fatais para os índios. Seria muito pretender que o Estado estivesse presente desde antes do seu anúncio para evitar suas piores consequências? O fato é que o planejamento socioambiental das grandes obras não avançou em nada. Ao contrário, parece que ainda vivemos nos tempos de ditadura. Os impactos são subavaliados, as medidas compensatórias são insatisfatórias e não são implementadas conforme planejadas. Pior: as concessionárias não são responsabilizadas. E há quem chame esse processo de desenvolvimento sustentável.

Nem as lições deixadas por desastradas experiências do passado são levadas em conta pelos planejadores do futuro. Foram os casos de Carajás, Balbina e da Transamazônica que deixaram sequelas, e chegaram a desenvolver providências mitigatórias tardias e insuficientes.

Até os engenheiros deveriam saber que, se terras indígenas e unidades de conservação constituem 40% da Amazônia, qualquer grande obra deverá impactá-las de várias formas. Os projetos de engenharia bem que poderiam aprender a conversar com elas. Preveni-las, protegê-las, beneficiá-las, incluí-las.

Mas o que conta é: “acelerar para o país (supostamente) não parar”. O que vier no sentido de “ponderar”, será tratado como inimigo. Assim, “índios”, “meio ambiente”, “Ministério Público”, “Tribunal de Contas” e a própria “mídia elitista” que, a despeito de inflamados editorais em prol de “acelerar”, noticia casos de corrupção em obras de infraestrutura emergem na cena política como “entraves ao crescimento”.

Vale tudo o que for parente de “acelerar”: pagar propina, multiplicar o custo das obras, cooptar votos no Congresso, detonar ambientes e populações, em nome de necessidades prementes da nação. O elevado e evitável custo dessa aceleração fica mesmo para Deus e as futuras gerações.

 

Belo Monte: respeito à Constituição já!

Avaaz.org

As obras de Belo Monte foram paralisadas na semana passada, mas agora a Advocacia-Geral da União quer ir direto ao Supremo Tribunal Federal para continuar as obras sem que se respeite a Constituição, que determina que os índios devem ser consultados. Não podemos permitir isso!

Na semana passada, uma decisão histórica do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) decidiu pela suspensão imediata das obras de Belo Monte porque até agora os índios, que serão diretamente afetados pela obra, não puderam emitir sua opinião sobre a mega-usina. Nesse exato momento, a nossa única chance de manter Belo Monte paralisada está nas mãos do Ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, e isso pode acontecer a qualquer momento nas próximas horas!

Uma Amazônia sustentável, com respeito aos povos indígenas e ao equilíbrio da vida natural do planeta, está em risco iminente —Vamos inundar a caixa de mensagens do Presidente do STF com e-mails pedindo que a Constituição seja respeitada. Envie uma mensagem para o Ministro Ayres Britto clicando abaixo, e divulgue para todos urgentemente:

http://www.avaaz.org/po/stf_pare_belo_monte_a/?bOMXLab&v=17381

Belo Monte é um Golias no coração da Amazônia e vem dividindo a opinião dos brasileiros. Mas todos concordam que uma obra de tamanho impacto não pode ser feita sem o cumprimento da Constituição, que afirma que este tipo de obra só pode acontecer se os índios forem ouvidos. Pela lei, os índios não terão a última palavra, mas continuar a obra sem conhecer a posição dos povos indígenas é uma atitude incompatível com uma democracia pluralista como o Brasil.

O licenciamento de Belo Monte pelo IBAMA estabeleceu uma série de condicionalidades que não vêm sendo cumpridas na execução da obra. Uma decisão do STF mantendo a interrompção dos trabalhos é a melhor oportunidade que nós temos para que o processo de destruição da Amazônia passando por cima da lei seja interrompido.

Envie uma mensagem agora para o Ministro Ayres Britto e, em seguida, divulgue para todos:

http://www.avaaz.org/po/stf_pare_belo_monte_a/?bOMXLab&v=17381

No passado, ajudamos o maior movimento de combate à corrupção eleitoral do Brasil dando apoio na mobilização da Lei da Ficha Limpa e até que ela virasse realidade. E em todo o mundo, membros da Avaaz têm ajudado a soar o alarme para as injustiças, salvar vidas e fazer a diferença. Vamos nos unir mais uma vez, e mostrar nossas vozes e coragem para salvar a Amazônia de uma vez por todas.

Acusados de assassinato de líder indígena na Raposa Serra do Sol são absolvidos

Alex Rodrigues – Agência Brasil

Após dois dias de um julgamento que mobilizou índios e produtores rurais e teve seu início adiado por seis vezes, o Tribunal Regional Federal (TRF) de Roraima absolveu, por falta de provas, os três acusados pelo assassinato do líder macuxi Aldo da Silva Mota, 52 anos, morto a tiros em janeiro de 2003. A sentença foi anunciada no início da manhã de sábado (19).

Para organizações indigenistas e ambientalistas, o assassinato de Mota é um dos vários crimes cometidos em função da disputa por terras durante o processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Seu corpo foi encontrado por parentes, dias após ter desaparecido. Estava enterrado em uma fazenda de Uiramutã, cidade criada em 1995. À época, a Fundação Nacional do Índio (Funai) já havia identificado a área como terra tradicional indígena.

Na época do crime, a fazenda onde o corpo de Mota foi encontrado era ocupada pelo ex-vereador Francisco das Chagas Oliveira da Silva, conhecido como Chico Tripa, inicialmente acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de ter contratado Elisel Samuel Martin e Robson Belo Gomes para matar o índio macuxi.

Segundo a assessoria do Ministério Público Federal (MPF) no estado, o procurador Ângelo Goulart Villela tem até esta sexta-feira (25) para analisar a possibilidade de recorrer contra a sentença do juri.

Já o Conselho Indígena de Roraima (CIR) promete recorrer da decisão. Dizendo-se surpreso com a decisão, o coordenador geral do CIR, Mário Nicácio, disse que o conselho e a família de Mota vão tentar evitar que o processo volte a ser julgado no estado.

“Não aceitamos a decisão. A família vai recorrer, com assistência jurídica do CIR, e nós vamos manter nossa mobilização por justiça”, disse Nicácio, por telefone, à Agência Brasil. O coordenador questionou a composição do juri, composto por duas mulheres e cinco homens e presidido pelo juiz federal Helder Girão Barreto, e a postura do próprio MPF.

“Desde o início, notamos, no juri, um pré-julgamento pelo fato de Aldo ser um índio e viver na reserva e uma sede de vingança pela demarcação da Raposa Serra do Sol. E questionamos também a postura do MPF, que, no papel de advogado de acusação, em vez de defender os interesses indígenas, pediu a absolvição do Chico Tripa por falta de provas”, disse Nicácio.

A assessoria do Ministério Público Federal confirmou que o procurador Ângelo Goulart Villela não viu indícios da participação do fazendeiro Chico Tripa no crime, razão pela qual pediu sua absolvição e confirmou que o procurador pediu a condenação de Elisel Samuel Martin e Robson Belo Gomes. Martin e Gomes também foram absolvidos pelo juri por falta de provas.

A assessoria do MPF não quis comentar as declarações do coordenador geral do CIR.

Edição: Fábio Massalli

A Carta do Cacique Seattle

Em 1855, o cacique Seattle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios.

Chief Seattle
Chefe Seattle (Foto: Wikipedia)

Mesmo tendo sua autenticidade contestada, a suposta carta toca em pontos crucias das diferenças filosóficas de como nos relacionamos com a natureza. O desabafo do cacique – autêntico ou não – tem uma incrível atualidade.

Segue a carta:

“O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade.

Nós vamos pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não empalidecem.

Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha.

Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo.

Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita.

Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.

Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite?

Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d’água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.

Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem.

Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra.

Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a um dia descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência.

Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se soubéssemos quais as esperanças transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã.

Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós.

E por serem ocultos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos na venda é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os nossos últimos dias como desejamos.

Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos.

Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueça como era a terra quando dela tomou posse. E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos.

Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.”

Memória Afetiva dos Irmãos Villas-Boas e do Parque do Xingu

 

[box]
Das férias adolescentes a pesquisas científicas entre os índios do Xingu, o rico relato pessoal de George Zarur nos revela o ponto de vista do garoto que virou antropólogo ao conviver com índios e personalidades que guiaram momentos históricos, como o esforço para a criação do Parque Indígena do Xingu.  A relação com os índios e as pessoas que construíram o indigenismo brasileiro influenciaram a vida do futuro cientista e professor.
[/box]

George Zarur

The Villas-Bôas brothers
Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Boas (via Wikipedia)

A amizade com os irmãos Villas-Boas, que enriqueceu minha existência, teve início em 1960 no Governo de Juscelino Kubitsheck, quando meu tio Nelio de Cerqueira Gonçalves foi designado Presidente da Fundação Brasil Central (FBC). A FBC construía na Ilha de Bananal, um hotel de turismo com projeto de Oscar Niemeyer, um hospital e uma pista de pouso. Hoje, as ruínas dessas obras são “curiosidade histórica”.

Após a saída de Rondon do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas, revoltados com os desmandos e a corrupção que tomaram conta do órgão indigenista encontraram abrigo na Fundação Brasil Central. Envolvidos na “Operação Bananal”, Orlando e Cláudio ensinavam os brancos a respeitar os índios e a valorizar sua maneira de ser, enquanto Leonardo tocava as obras civis. Assisti a manobras de impressionantes balsas, sob o seu comando, capazes de carregar quatro caminhões caçamba “FNM”. Os comboios eram impulsionados rio acima por heróicos motorzinhos de popa suecos da Marca “Archimedes” de 12 hp, cuja importância ainda será reconhecida para a história da Amazônia. A ouvir o “tactactac” dos Archimedes, presenciei a chegada à Santa Isabel do Morro, na Ilha de Bananal, de regatões de origem árabe, os barcos carregados de uma inacreditável diversidade de quinquilharias. Traziam encomendas de índios e sertanejos, negócios celebrados há muitos meses. Alimentos cortes de chita, panelas e bules de alumínio, cobertores, redes, alpargatas, brinquedos, exemplares de revistas e muito plástico.

Parque do Xingú

Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro, importante força na criação do Parque Indígena do Xingú (via Wikipedia)

Em 1961, durante o governo Jânio Quadros, Orlando e seus amigos usaram, por vezes, nossa casa em Brasília para encontros que levariam à criação do Parque do Xingú. Reuniram-se com José Aparecido de Oliveira (Chefe de Gabinete de Jânio Quadros), Jorge Ferreira, (jornalista do “O Cruzeiro”) e Clemente Mariani.

No Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, apresentados a Orlando por Noel Nutels, redigiram argumentos para justificar a criação do Parque. O segundo filho de Orlando, atuante em defesa dos interesses indígenas, foi batizado com o nome de Noel, em homenagem a Nutels. Em 1961 saiu, finalmente, o decreto de criação do Parque, embora enorme área fosse subtraída da proposta original dos Villas-Boas.

A fundação do Parque do Xingú representou importantíssimo movimento na história das relações entre índios e brancos no Brasil. Integrou a revolução cultural que inventou Brasília, a bossa nova, Grande Sertão: Veredas” e “Formação Econômica do Brasil”. Rondon, nos primórdios do século XX, assegurou aos índios o direito à vida, em um tempo em que o evolucionismo biológico preconizava sua extinção física.

Os Villas Boas iniciaram uma nova era em que a diversidade cultural e a garantia da terra eram consideradas pilares da política indigenista. Lutaram pela gradativa tomada de consciência pelos índios do valor de sua identidade e da importância de sua organização política. A resistente identidade dos índios do Xingú deve-se, em primeiro lugar, ao seu próprio discernimento, mas também, a longas conversas dos finais de tarde que líderes, como Megaron e Aretana, mantiveram com Cláudio e Orlando por anos a fio.

Irmãos Villas Boas

Orlando e Cláudio Villas Boas (J.P. arquivo da família Villas Bôas, Wikimedia)
Orlando e Cláudio Villas Boas (J.P. arquivo da família Villas Bôas, Wikimedia)

Em 1961, antes de minhas férias de Julho no Xingu, Orlando acompanhou-me, a pedido de minha mãe, a uma das poucas lojas de Brasília, para comprar meu presente de aniversário de quinze anos. Não tirou os olhos de uma carabina calibre 22 fabricada na então Tchecoeslováquia, popularmente conhecida por “CZ”. O nome tcheco era tão complicado que a abreviatura bastava para a identificação. Desejava outra coisa, uma bicicleta a motor, como uma “Mobilete” (Caloi) ou “Monareta” (Monark), mas Orlando convenceu-me com o argumento de que “aquela era a arma dos índios e dos sertanistas”. Tenho-a até hoje e a trato como uma jóia.

Orlando era um comunicador espontâneo, uma fonte perene de afeto, o que o fazia capaz de tranqüilizar índios pintados para a guerra ou de conseguir o apoio dos políticos de Brasília. Fascinavam sua inteligência e vivacidade. Cláudio era quieto e estudioso. Podia discorrer por longos períodos sobre Filosofia do Direito, capacidade que aliava à de exímio atirador. Ficava por horas, sem errar uma única vez, a atirar de revolver em folhinhas vistas com dificuldade a boiar a mais de trinta metros na correnteza do Xingu. Leonardo faleceu em 1963 e o antigo Posto Indígena “Capitão Vasconcelos” passou a se chamar “Posto Leonardo Villas-Boas”.

Xingu: guerra, aventura e antropologia

Continuei a visitar o Xingu. Em 1963, uma caminhada de cerca de seis quilômetros por estreita trilha na mata separava o Posto Leonardo da Aldeia Kamaiurá. Hoje, a estrada que a substituiu não chega a ser uma rodovia, mas permite o trânsito de caminhões. Em companhia de dois estudantes da Universidade de Brasília, cheguei à aldeia Kamaiurá, cuja população preparava-se para abandoná-la devido a um iminente ataque dos índios Txicão, denominados Ikpeng, nos tempos de hoje. Retornamos correndo para o Posto Indígena, quando fomos ultrapassados por Kamaiurás em fuga, muito mais rápidos. Encontramos ameaçadoras flechas txicão a sinalizar árvores da trilha, segundo o clássico artifício de guerra psicológica.

Descalço, fui picado na sola do pé por um animal que não consegui ver, mas, é claro, pensei imediatamente em alguma cobra venenosa. Minha perna ficaria em breve totalmente imobilizada. Cheguei ao Posto Leonardo pulando em um só pé, abandonado por meus colegas que preferiram sua segurança à companhia de um saci pererê improvisado. Fui examinado por Paulo Vanzolini e pelo médico e antropólogo físico Pedro Lima. O diagnóstico foi “picada de Formigão”, a célebre formiga Tocandira. Paulo Vanzolini cantarolava músicas caipiras e ensaiava as letras de um futuro grande sucesso. No dia seguinte já voltava a andar normalmente.

Devido à ameaça de ataque iminente, o Posto Leonardo se transformara em campo de refugiados que buscavam a proteção dos “caraíbas” (termo que designava os “brancos”). Centenas de pessoas, quase a totalidade dos índios do Xingú, passaram a noite acordadas, em estado de pânico coletivo. Era tanta gente aglomerada ao redor das casas do Posto, que não havia espaço para se deitar. Além do que, dormir não seria possível, dada a conversa gritada, nervosa, dos presentes. Muitos passaram sede, com medo de descer os quinze metros que separavam o Posto do Ribeirão Tuwatuwari. Muitos passaram fome, pois, na fuga apressada tudo tinham deixado na aldeia e os mantimentos do posto rapidamente se esgotaram.

Após três dias, constatou-se que os Txicão tinham se distanciado e os refugiados voltaram para suas aldeias. O medo tinha suas razões, pois os Txicão haviam atacado recentemente a Aldeia Waurá, de onde seqüestraram duas mulheres. Rondaram diversas outras aldeias.

Em 1964, estudante do ensino médio, acompanhei ao campo, o antropólogo Eduardo Galvão. Galvão, hoje quase esquecido, foi o primeiro brasileiro a conquistar um Ph. D em antropologia no Exterior, na Columbia University, com Charles Wagley, que mais tarde seria também meu orientador. Gozava de merecido prestígio. Bondosamente designou “monitor” o estudante que ajudou a carregar as peças de uma coleção etnográfica que permanece até o presente sob a guarda da UNB. Pedro Agostinho da Silva, aluno pós-graduado de Galvão, ensinou-me a fazer o diário de campo. Incumbiram-me da descrição dos objetos trocados na cerimônia comercial denominada “Moitará”.

O milagre da comunidade Iawalapiti

Menina Yawalapiti brinca na estrutura da nova oca de seu tio
Menina Yawalapiti brinca na estrutura da nova oca de seu tio

Os xinguanos sofreram pesadamente com epidemias trazidas pelos brancos, contra as quais populações indígenas isoladas não possuem defesas. Particularmente cruéis foram os efeitos da epidemia de sarampo de 1954, quando etnias inteiras desapareceram. Após esses devastadores surtos de gripe e sarampo, a malária endêmica transformou-se no principal fator a diminuir a esperança de vida dos índios do Xingu. Pelo que fui informado quase desapareceu, mas estaria a recrudescer recentemente.

A uma distância de pouco mais de 1 km do Posto Leonardo existia uma casinha habitada pelos sobreviventes Iawalapiti encontrados por Orlando entre os Kamaiurá. Ali viviam pouco mais de uma dezena de pessoas em torno dos seus gentis líderes, os irmãos Kanato e Sariruá. Orlando e Cláudio reconstituíram diversas aldeias, permitindo o reviver de comunidades inteiras. Saíam reunindo os sobreviventes de tribos dizimadas espalhados nas aldeias que restaram. Atualmente, centenas de descendentes dos moradores daquela casinha vivem em uma bela aldeia na confluência do Ribeirão Tuwatuwari com o Rio Kuluene.

A impressionante recuperação demográfica de populações como a xinguana é motivo de júbilo para quem acompanha a situação dos índios brasileiros. Cumpre ressaltar o papel desempenhado pela Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Federal de São Paulo) no Alto Xingu. Vi o médico Roberto Baruzzi, professor da instituição e seus alunos se desdobrarem na assistência e em pesquisa sobre a saúde indígena, campo do conhecimento específico por eles delimitado. Na Escola Paulista foi criada a cadeira “Saúde Indígena”, cuja área de atuação era o Parque do Xingu.

 

As ameaças ao cotidiano Xinguano

O Xingu dos anos 60 era uma terra contestada por brancos que tentavam seguidamente invadi-la.

Caçadores de peles de animais como onça e ariranha de quando em quando adentravam a região do Djauarum. Os índios avisavam Cláudio que saía em perseguição dos invasores. Certa vez, ao lado de Cláudio, persegui caçadores de pele denunciados pelos gritos de uma ariranha ferida à bala, que produzia um som agudo que lembrava o de um ser humano em desespero. Houve troca de tiros na qual usei meu presente de aniversário, mas os invasores conseguiram fugir graças a um motor de popa mais potente. Por vezes, eram capturados e recebiam de Cláudio e Orlando a informação de que não deveriam mais retornar, pois se o fizessem ficariam à mercê dos índios. Assim foi preservado o Parque do Xingu.

Em 1965, Eduardo Galvão e outros professores foram exonerados da UnB por razões políticas. Quase todo o corpo docente da Universidade demitiu-se solidariamente. Estudante de graduação passei um período com Herbert Baldus no Museu Paulista, mas retornei à Brasília e me formei em economia. Só voltaria à antropologia no último ano da universidade com a chegada de Roque Laraia e Júlio César Melatti do Rio de Janeiro. Mas o contato com Orlando e Cláudio não foi perdido, amigos da família, que sempre nos visitavam em Brasília.

Retornei ao Xingu em 1971/72, acompanhado de minha esposa, a antropóloga Sandra Beatriz Zarur, para a pesquisa de campo da minha tese de mestrado no Museu Nacional. Lá estavam os Villas-Boas. Orlando no Posto Leonardo no Sul do Parque. Cláudio, desde os anos 60, no Posto do Djauarum, que assistia os grupos do Norte da área: Suyá, Kayabi, Juruna e Kayapó Txucahamãe.

Os assim denominados “xinguanos”, distribuídos segundo uma distância maior ou menor do Posto Leonardo, compõem a “área cultural do Alto Xingu” descrita por Galvão. Compartilham uma cultura comum, apesar das diferenças lingüísticas. O Alto Xingu é a melhor prova negativa da hipótese de Sappir-Whorf, que postula relações diretas entre língua e cultura, pois com línguas diversas, os xinguanos têm os mesmo costumes, rituais e sociedade. Já os habitantes do Norte do Parque têm culturas contrastantes e línguas diferentes. Sua única forma de articulação provinha da influência do Posto do Djauarum. Nessa viagem de 71/72 permanecí quase todo o tempo na pequena e distante Aldeia Aweti, no Alto Xingu.

Os dois postos indígenas funcionavam como centros de assistência à saúde. Pessoas doentes buscavam os cuidados competentes da enfermeira Marina Villas Boas, esposa de Orlando. Vilinhas, Orlando Villas Boas Filho, hoje Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, chorava forte como é dever de todo bebê. Estivesse Cláudio entre nós, estaria orgulhoso a provocar o sobrinho para debater Filosofia do Direito. Foi no improvável cenário do Djauarum, que ouvi Cláudio falar em Hans Kelsen.

Orlando e Cláudio procuravam manter os índios em suas aldeias, distantes dos postos. Com boas razões, consideravam nefasta a relação muito próxima com “civilizados”. Desestimulavam o contato com estranhos. Além da transmissão de doenças preocupavam-nos a desestruturação do modo de vida tradicional e a perda da identidade. Travaram duras lutas com missionários que tentavam adentrar o Xingu com a Bíblia sob o braço. Enfrentaram garimpeiros e os já mencionados caçadores de peles. O contato da grande maioria dos índios do Alto Xingu com não índios dava-se essencialmente no Postos, onde obtinham bens que, rapidamente, se tornaram indispensáveis, como facas e facões, machados, panelas de alumínio, tesouras e anzóis.

Era grande a preocupação dos Villas-Boas com a base aérea do Jacaré, situada a algumas poucas dezenas de quilômetros do Posto Leonardo. Ali moravam o sargento que a comandava e alguns soldados. Era o próximo pouso do Correio Aéreo Nacional (CAN) após o Posto Leonardo. Tornou-se um ponto de contato entre índios e brancos não controlado pela administração do Parque. Era foco de disseminação de doenças, inclusive de doenças sexualmente transmissíveis. Um tema popular de pintura corporal entre os xinguanos era o escudo da FAB. A relação com a FAB era complicada, pois o Parque dependia inteiramente dos aviões do CAN.

Contrastes: o Xingu no século XXI

Voltei ao Parque apenas em 2004, quando, na grande aldeia Iawalapiti dos tempos atuais, todos os índios do Alto Xingu prestaram merecida homenagem a Orlando, com a realização de um belo Kwarup, festa para mortos ilustres. Marina e filhos honraram-me ao me convidar para ocupar no ritual posição junto à família Villas-Boas.

Fila de índios se apresentando para cerimônia do Kuarup (Noel Villas Boas, Wikimedia)
Fila de índios se apresentando para cerimônia do Kuarup (Noel Villas Boas, Wikimedia)

Pude constatar, nessa rápida visita, que não se bebe mais água dos rios e ribeirões do Alto Xingu, pois a poluição das nascentes obrigou à perfuração de poços artesianos. A tradicional cena das mulheres equilibrando um caldeirão na cabeça na beira do Ribeirão tornou-se mais rara. Motocicletas, tratores, caminhões e barcos a motor de propriedade dos índios transitavam entre as aldeias.

Nos velhos tempos, após cruzar o cerrado do Vale do Araguaia, com escalas em Aragarças e Xavantina, os DC3 da FAB (restos norte-americanos da Segunda Guerra Mundial) voavam sobre uma mata sem fim, até pousar no Posto Leonardo. Hoje, os limites do Parque são evidentes do ar, pois é reta a linha demarcatória que separa a mata verde escura do Parque dos intermináveis cultivos de soja, que, com fertilizantes e agrotóxicos poluem as águas dos formadores do Xingu.

Os índios do Alto Xingu não se alimentavam da carne dos grandes mamíferos. A principal fonte de proteína era o pescado. Os únicos mamíferos caçados eram macacos. Em 1972, em um campo próximo às então aldeias Aweti e Mehinakú, presenciei, do alto de uma pequena elevação, a uma cena extraordinária, que lembrava os filmes das savanas africanas. Centenas, talvez milhares, de veados e cervos pastavam pacificamente, sem medo dos seres humanos. Estavam acostumados com o convívio com os índios do Xingú que não lhes trazia perigo. Soube que décadas mais tarde, em gesto de boa vizinhança, os xinguanos convidaram os índios xavante para caçar nesse campo. Com o uso do fogo na caçada, em um único dia os caçadores Xavante teriam matado mais de 30 veados e cervos.

No Xingu da década de 70 não havia circulação da moeda corrente nacional. Tampouco havia uma “moeda” local que servisse de meio de troca. Além dos poucos objetos pessoais que cada pessoa possuía, de alto valor eram as contas de miçanga cor azul rei fabricadas na então Tcheco-eslováquia, que só podiam ser encontradas na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Utilizavam-nas na elaboração de colares e pulseiras que funcionavam como ornamento, e símbolo de prestígio. Algo parecido com “jóias” na sociedade européia. Possuí-las, no Xingu era uma forma de entesourar riqueza. Aceitavam, mas com pouco entusiasmo, a miçanga de fabricação nacional, menor, vermelha ou azul clara.

Os índios, com a exceção dos que moravam nos postos não costumavam usar qualquer vestimenta. E se o faziam era como enfeite, não como abrigo para o frio, ou menos ainda, devido às noções de pudor importadas da sociedade ocidental.

 

O exemplo de bem estar da vida xinguana

Era uma vida cotidiana relaxada e alegre. Nunca presenciei o castigo físico de crianças. O tempo fluía lentamente com reuniões de todos os homens no final da tarde em frente à casa das flautas, nas quais as mulheres não podiam entrar. A rotina diária era bem diferente para homens e para mulheres. Enquanto essas ficavam, a maior parte do dia, em pequenos grupos perto da luz da porta das grandes casas xinguanas conversando, ralando mandioca e em outras atividades domésticas, os homens passavam um bom tempo nas redes, a pescar ou conversar em frente à casa dos homens.

Havia notável sincronia entre o bem estar individual, a vida ritual e a vida econômica, equilíbrio que pode estar abalado nos tempos atuais. Os xinguanos eram altamente “individualistas”, isto é, os anseios e necessidades individuais ocupavam um primeiro plano e eram respondidos pela sociedade. Sem querer idealizar a vida tradicional do Xingu, pode-se afirmar que a sociedade era concebida como um instrumento para o bem estar e felicidade da maioria dos indivíduos. Porém, o complexo da feitiçaria criava uma situação de tensão permanente.

Trabalhava-se muito pouco, segundo alguns cálculos, os homens, em média, três horas e meia. As mulheres talvez uma hora a mais. O resto do tempo era dedicado a dançar e a conversar. Todo começo de manhã o “capitão” da aldeia fazia um discurso tendo como tema, por exemplo, a necessidade de “vencer a preguiça”. Tinha-se, em geral, o suficiente para uma boa alimentação, muito melhor do que a de nossos pobres urbanos e uma vida saudável e tranqüila, apesar da malária que grassava e da lembrança terrível de epidemias devastadoras. As crianças enchiam os pátios com o som alegre das brincadeiras. A população estava em franco crescimento.

O Parque do Xingú era uma área isolada, protegida pelas distâncias e pela floresta. O único acesso dava-se por vôos supostamente semanais dos DC3 do Correio Aéreo Nacional, por um dos quais, certa vez, esperei mais de mês em Goiania. Hoje é accessível por estradas. Além das fazendas que o cercam, centros urbanos, como Canarana, crescem em suas fronteiras. O contato com os brancos tornou-se permanente.

Só espero que no Xingu seja para sempre ouvida a alegria ruidosa das crianças livres.

Que seus pais conservem a capacidade de se horrorizar com os castigos sofridos pelos filhos dos caraíbas.

Que os velhos continuem respeitados e honrados. E que todos vivam em ambientes de solidariedade e afeto desconhecidos pela cultura ocidental contemporânea.

Uma terra em que, como dizia meu querido amigo Orlando: “seja o velho, dono da história; o homem, dono da aldeia; e a criança, dona do futuro”.

 

[album id=5 template=extend]

A tarefa de levar aos brasileiros a realidade indígena

Cid Furtado, carta de abertura da 1ª edição da revista Brasileiros de Raiz

Em pleno século 21, o Brasil, tão reconhecido na aldeia global antevista pelo grande teórico da comunicação, Marshal Macluhan, tem dificuldades para reconhecer sua cultura original. Sua identidade mais pura. Permite assim, que a sociedade desconheça os habitantes da terra que existiam antes de a chamarmos Brasil. Milhões de índios tiveram suas vidas ceifadas pelo conquistador português e, ainda hoje, este País moderno permite a continuidade deste massacre, ensinando em suas escolas a história contada pelo vencedor, tratando-os com descaso e tornando-os invisíveis aos olhos da sociedade e governos.

Os indígenas só ganham visibilidade quando decidem lutar por seus direitos, enfrentando nossos preconceitos, ou quando surge um conflito com a sociedade não-índia. Essa situação, causada pela combinação de falta de informação e de iniciativa em mudá-la, foi o ponto de partida de nossa proposta de criar a revista Brasileiros de Raiz. Em suas páginas, vamos nos impor, permanentemente, a tarefa de levar ao cidadão brasileiro, informações sobre a realidade das comunidades indígenas de todo o País. Casualmente, enquanto preparávamos sua primeira edição, duas histórias nos chamaram a atenção para a importância do trabalho que pretendemos fazer.

Meu filho de 15 anos, cursando o 2º ano do ensino médio, numa das escolas consideradas de melhor nível de Brasília, explicou-me, conforme ouvira de seus professores, porque os indígenas teriam sido massacrados pelos colonizadores: “porque os portugueses presenciaram atos de antropofagia e teriam sido levados a crer que as comunidades indígenas brasileiras, de forma geral, tinham esta prática”. Esta seria a justificativa para os massacres.

O segundo relato aconteceu durante uma conversa recente com um ex-presidente da Funai. Ele me disse que seu filho, na 3ª série do ensino fundamental, também havia recebido informações, no mínimo distorcidas, estampadas em livro adotado por parte da rede de ensino da Capital Federal. Diz o livro que a chegada de escravos negros no Brasil deve-se ao fato de o índio não aceitar trabalhar.

Na verdade, na grande maioria das sociedades indígenas, homens e mulheres têm diferentes atribuições na comunidade. O indígena brasileiro não se adaptava a diversas práticas dos colonizadores, por diferenças culturais e muitos outros fatores como abrir mão de seu modo de vida, de sua liberdade e independência ou cumprir funções, tradicionalmente exercidas por mulheres nas comunidades indígenas. Detalhes culturais que fizeram e fazem toda a diferença na hora de analisar as questões indígenas.

Assim como muitos simpatizantes das causas indígenas, acreditamos que recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre os legítimos Brasileiros de Raiz, é uma importante contribuição para contarmos a verdadeira história dos povos indígenas.

[box]

Revista Brasileiros de Raiz

A revista Brasileiros de Raiz surgiu como uma publicação dedicada exclusivamente à questão indígena com o intuito de trazer informações sem preconceitos sobre a realidade indígena brasileira. Para saber mais, entre em contato com redacao@brasileirosderaiz.com.br ou ligue para (61) 3202 30 92.
[/box]

Enhanced by Zemanta

10 anos de Rota Brasil Oeste: nos passos dos irmãos Villas Boas

Brasília ainda se espreguiçava quando pulei da cama, lavei o rosto para curar a noite mal dormida, comi algo rápido e me despedi de quem estava acordado. Era Abril de 2001, há pouco mais dez anos atrás.

Na garagem, o Santana prata – emprestado por minha avó – esperava devidamente decorado com os adesivos colados de última hora que comprovavam o apoio fundamental de empresas e indivíduos que acreditaram na ideia de revisitar os lugares e resgatar a história dos irmãos Villas Boas e da Expedição Roncador-Xingu.

A viagem que estava prestes para começar, na verdade, foi iniciada quase por acaso. Dois anos antes de iniciarmos a viagem, ao lado de três amigos (Bruno, Fábio e Pedro), todos alunos do curso de Comunicação da UnB, decidimos fazer um projeto final de curso que unisse algumas de nossas paixões: viajar, fotografar e escrever.

Como viabilizamos o projeto

Como a premissa em comum acordo, nos faltava decidir aonde ir e qual tema enfocar. Em meio a estas discussões, o acaso nos favoreceu. Ao atender o telefone na casa dos meus pais um dia, do outro lado da linha falava Orlando Villas Boas. Orlando era um antigo amigo da família e aconteceu de ligar naquele dia.

A ficha, literalmente, caiu na hora. Esta era uma oportunidade de adicionar uma dimensão histórica ao projeto. Sentamos para conversar e mudamos o rumo da ideia: passamos a trabalhar com o objetivo de revisitar a história dos irmãos Villas Boas e da Expedição Roncador-Xingu quase 60 anos depois de seu início.

Queríamos percorrer os mesmos caminhos, visitar as cidades fundadas e conversar com os pioneiros que viveram este desbravamento do Brasil central. Registrando tudo com fotos e textos sobre o que encontrávamos no caminho.

Passamos a canalizar nossos estudos nesta direção. Pesquisamos livros, artigos e arquivos fotográficos. Realizamos um amplo projeto de marketing para atrair patrocinadores. Entrevistamos pesquisadores e lideranças indígenas. Estabelecemos contatos e contamos com apoio da FUNAI, especialmente o privilégio de sermos acompanhados pelo indigenista Guilherme Carrano, que teve a paciência de nos aguentar e mostrar o quanto ainda éramos ignorantes e ingênuos.

Recebemos a ajuda de professores e empresas. Sem dinheiro para pagar hotel, em algumas cidades onde passamos fomos acolhidos por famílias, como a de seu Pedro, em Barra do Garças, e indivíduos, como Lúcia Kirsten em Nova Xavantina. Personalidades fantásticas, personagens de um Brasil autêntico e corajoso.

Acima de tudo, no entanto, nos marcou o carinho e dedicação com os quais fomos tratados pela família Villas Bôas. Não só tivemos o privilégio de ouvir os depoimentos de Orlando e Marina em primeira mão, mas fomos recebidos como filhos, com direito a bife com arroz e feijão no almoço (que Orlando comeu acompanhado de panetone!).

Quanto mais líamos, mais nos impressionávamos com a dimensão da aventura dos irmãos Villas Bôas e o quão pouco sabíamos sobre o que talvez tenha sido o maior projeto de colonização realizado no século XX e que culminou com a construção de Brasília – nossa cidade natal. Tão conhecidos nas décadas de 60 e 70, Cláudio, Orlando e Leonardo eram, na época nomes, estranhos para gerações mais novas.

Aventura digital

Além disso, para viabilizar nossa ideia de projeto “multimídia”, escolhemos publicar notícia directo da viagem via Internet, o que se tornou uma aventura à parte. Parece algo trivial, mas em 1999 a rede era um nicho que apenas começava a ser explorado. Ainda não havia, por exemplo, sistemas estabelecidos que facilitassem a administração de conteúdo. Isso para não falar da falta de estrutura para transmissão de dados.

Neste sentido, tivemos nosso lado de pioneirismo. Na época conseguimos apoio da operadora de telefonia via satélite Globalstar, que estava prestes a inaugurar a transmissão de dados para seus aparelhos. Inauguramos o serviço, que funcionava em 9600kbps (minha internet de casa hoje é mais de 100 vezes mais rápida!) e foi lançado dias antes de partirmos em abril de 2001. Assim, nos tornamos os primeiros jornalistas a realizar a atualização e publicação de um site de internet direto do Xingu e do interior do Centro-Oeste.

Meses antes de iniciar a viagem, Fabio descobriu um obscuro serviço na Internet chamado “blogger”. A ferramenta foi a solução para não termos de programar o HTML na mão e nos permitiu atualizar o site praticamente todos os dias e ainda ter algumas horas de sono. Nunca imaginávamos que alguns anos depois o termo “blog” seria associado a uma revolução na comunicação.

Foram dois anos de intensa pesquisa, mas nada podia nos preparar para a experiência de vida que iríamos ter ao acelerar o carro e deixar Brasília naquela manhã de Abril.

10 anos depois

Nos cerca de 30 dias em que percorremos cidades, estradas e rios que levaram décadas para ser explorados, descobrimos um Brasil ignorado pelas lentes da novela-das-oito, de impressionante riqueza étnica e cultural.

Também nos defrontamos com a violência, preconceito e desafios de regiões onde a lei do mais forte ainda se impõe de maneira cruel.

De dentro do Xingu, publiquei um artigo no qual citava grandes problemas que, na minha opinião, haviam se destacado: educação, preservação cultural, pressões econômicas e devastação ambiental.

Acredito que estas ainda são questões essenciais para o indigenismo nacional.

Educação e preservação da identidade cultural continuam como pauta constante de discussão e, como tudo que diz respeito ao índio, apresenta realidade extremamente heterogênea.

Nestes dez anos que se passaram e nos quais continuei acompanhando a questão indígena, mesmo que nem sempre estivesse dedicado ao assunto, nada me chocou tanto, quanto o preconceito em relação ao índio.

O maior exemplo disso é que num momento de ampla discussão sobre os direitos de minorias, como o atual, a questão sequer é citada. Aliás, o maior indício do nível deste preconceito é que muita vezes sequer é classificado como tal.

O pré-julgamento se manifesa muita vezes na forma de uma visão romântica e paternalista. o “puro e bom nativo” – conceito que sobrevive desde o século XIX.

Mas dano maior é causado por sua versão mais virulenta. É comum escutarmos frases que classificam o índio como um enxerto na sociedade nacional, algo que está aí para ser expurgado ou absorvido. Desde que desapareça.

Este problema é ainda maior nas comunidades ao redor de grandes reservas, onde o modo de vida indígena é visto como um atraso para a região. Como nos disse Valdon Varjão, primeiro político a entrevistarmos em nossa viagem: “desvirtuaram a intenção original que era colonizar toda essa região construindo estradas e novas cidades. A idéia não era catequizar índio e nem fazer Parque Indígena”.

Em 2001, quando visitamos a reserva xavante de Pimentel Barbosa, ouvimos diversos relatos dos atritos de índios e não-índios. Um cacique local nos contou – aos prantos – a situação da filha pequena que havia sido largada no corredor do hospital local, sem atendimento adequado, enquanto outros pacientes recebiam prioridade. Descobriu-se que a menina sofria de pneumonia e ela sobreviveu graças a iniciativa de uma enfermeira piedosa.

Nos quatro primeiros meses de 2011, 34 crianças da comunidade Xavante de Campinópolis morreram por falta de atendimento médico, muitas delas mortas por pneumonia.

Pressões econômicas e destruição ambiental caminham juntas a passos largos. Quando visitamos as comunidades, uma dos maiores ameaças ao seu modo de vida era o desmatamento e a poluição das cabeceiras dos afluentes do Xingu. Os rios são a principal fonte de alimentação e água para a região.

Na semana em que visitamos o Parque, o Brasil passava pelo auge da crise do apagão. Nunca íamos imaginar que a proposta de solução para o problema se tornaria na próxima grande ameaça à região.

As nascentes dos rios continuam sob a mercê da expansão agrícola desenfreada, mas hoje o grande perigo vem do norte: a construção da usina de Belo Monte. Fruto de uma concepção falida de desenvolvimento, seu impacto ambiental promete ser devastador.

Ironicamente, o debate mais avançado sobre desenvolvimento em nível internacional caminha na direção de conceitos há muito praticados e dominados pelo índio, como o efetivo equilíbrio entre exploração e preservação da natureza.

Há, por exemplo, uma forte e inovadora corrente de economistas com argumentos sólidos para não medirmos a riqueza de um país apenas pelo seu produto interno bruto. Isto já é feito com o índice de desenvolvimento humano e agora pretende-se estender o conceito para medirmos o valor econômico aos “serviços” prestados pelo meio-ambiente, como água potável, segurança alimentar, combate natural a pragas, etc.

Sob esta ótica do potencial econômico da natureza, chamada biocapacidade, o Brasil é a maior potência mundial (Relatório Planeta Vivo 2010, WWF). O grande risco é que ainda olhamos para estes recursos como se fossem bens infinitos a serem explorados inesgotavelmente. Neste sentido, ainda temos muito a aprender com quem enxerga a natureza não como dádiva divina, mas como a divindade em si.

Aragarças e Barra do Garças

Nossa primeira parada foi também a base de partida da expedição Roncardo-Xingu nos anos 40 e, mais tarde, também foi importante para o trabalho da Fundação Brasil Central.

Ouvimos uma declaração de Valdon Varjão, ex-garimpeiro, ex-senador biônico durante o governo militar, que resume a visão do “índio como atraso” para o país:

“Acho que os irmãos Villas Bôas desvirtuaram a intenção original (da expedição Roncador-Xingu) que era colonizar toda essa região construindo estradas e novas cidades. A idéia não era catequizar índio e nem fazer Parque Indígena.”

Um conceito desenvolvimentista antiquado, ligado à ideia do progresso como asfalto, fumaça e exploração desenfreada da natureza.

Nova Xavantina

Vivenciamos na pele algumas das tensões que estavam acesas na região. Próximo à cidade está o lendário garimpo de Araés, que fomos visitar. Chegando lá encontramos um grupo de garimpeiros que estavam no local ilegalmente. Desci do carro de peito aberto, com a coragem que só os ignorantes têm e fui recebido por senhor que agarrou minha camisa e logo revelou o fio do facão que ocultava nas suas costas. Felizmente, tudo acabou bem. Explicamos que não éramos na polícia e o porquê da nossa visita e eles concordaram em nos ceder uma entrevista. É claro, concordamos com absolutamente todas as opiniões deles.

Também nos levaram para ver a dimensão do estrago do garimpo na natureza local. De volta à cidade entrevistamos Sinvaldo Vieira Rodrigues, ex-garimpeiro que sofria de silicose, doença terminal causada pela respiração do pó da pedra. Ele nos contou que perdeu o irmão e mais de sessenta colegas vítimas do mesmo mal ou acidentes de trabalho nas minas. “A única coisa que o Araés já fez foi matar muita gente”, dizia.

Água Boa e Canarana

No final da década de 1960, o Governo Federal criou diversos incentivos à colonização do centro-oeste brasileiro. As oportunidades chamaram a atenção de agricultores gaúchos. Como várias outras localidades, Água Boa e Canarana foram fundadas por estes pioneiros.

Em 2001, a região era uma interessante mescla étnica, mas também palco de preconceito violento e muitos atritos. O problema é maior na região não apenas pela proximidade e choque de culturas, mas também pela incompetência do estado, que cedeu terras a agricultores dentro de áreas de ocupação indígena tradicional. Anos mais tarde, o mesmo estado que incentivou a ocupação da região expropriou vários pequenos produtores para criar reservas indígenas.

O ônus desta falta de preparo dos governos é pago até hoje, tanto por agricultores, quanto por índios.

Pimentel Barbosa, Xavantes

Passamos apenas uma tarde numa conversa rápida com os antigos sobre a chegada do não-índio à região. “O pessoal sabia que tinha outro povo por causa do jeito diferente da queimada, da fumaça. (…) Eu pensava que eles estavam todos pintados, por causa do pêlo na cara e no corpo”, nos contou Rupawe, que era adolescente quando duvidava dos boatos sobre “brancos” na região.

Menos protegidos que os xinguanos, os Xavantes conquistaram seu espaço com muita luta. Como nos contou Sereburã: “Nós mesmos tocamos os fazendeiros. Por isso que temos este espaço (reserva de Pimentel Barbosa) pequenininho hoje. Pra branco é grande, pra nós é pequeno. (…) Agora vivemos aqui, espero que vocês (não-índios) respeitem a gente e nossos direitos”.

Posto Leonardo, Xingu

Nada podia nos preparar para o que nos esperava no Xingu, um dos mosaicos étnicos mais ricos do mundo. O impacto daqueles meros dez dias é sentido até hoje. Estar lá nos levou a questionar e reavaliar diversos valores, ideais e outras tantas coisas que enxergamos como “naturais”. Era como se olhávamos a nossa realidade como algo estranho e artificial.
Finalmente entendemos o que levou três irmãos a abandonarem suas confortáveis vidas urbanas para se embrenharem por mais de 30 anos em uma luta contínua, enfrentando mata fechada, doença, violência, politicagem etc: a preservação da diversidade humana.

Quartiero deixa Raposa após destruir outra sede de fazenda e mobilizar grande aparato policial

O produtor de arroz Paulo César Quartiero provocou a mobilização de um grande aparato policial por quase 12 horas para deixar a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), um dia após o fim do prazo dado pela Justiça para a saída espontânea dos não-índios da reserva.

Ele recebeu em torno de 25 agentes da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança sentado sozinho em frente à segunda sede de fazenda que mandou demolir.

O rizicultor disse que, após “desbravar Roraima”, não aceitaria “ser tirado como um cachorro” por “brucutus anabolizados” e só aceitou sair de lá quando recebeu um mandado de desocupação escrito à mão pelo presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, desembargador Jirair Meguerian. O produtor definiu como “muito amadorismo” escrever um mandado debaixo de um pé de manga.

O desembargador informou a Quartiero que a União se responsabilizaria pela colheita dos 400 hectares de arroz plantados na fazenda, com posterior indenização, desde que o produtor disponibilizasse suas máquinas para o trabalho. O rizicultor – que expandiu áreas plantadas na região quando o processo de demarcação já estava em andamento – reagiu com indignação.

“Esse pessoal do governo não sabe colher e ainda vão estragar minhas máquinas. O senhor [Jirair Meguerian] vem aqui, toma o que é meu sem prazo nenhum, me obriga a retirar gado na marra, me toma o arroz. Só falta a mulher, os filhos e tudo”, reclamou Quartiero, ao dizer que não cederá as máquinas em hipótese alguma. “Se eu tiver que ceder meu maquinário, prefiro colocar fogo em tudo”, acrescentou.

“Não posso discutir o mérito. Estou apenas fazendo cumprir a decisão judicial”, respondeu Meguerian, lembrando que decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que selou a manutenção da demarcação contínua da reserva, com saída dos não-índios, tinha execução imediata. Quartiero chegou a propor colher o arroz a partir da próxima quarta-feira (6) e entregá-lo à União, para receber depois e para que o alimento não se perca, mas o presidente do TRF da 1ª Região reiterou que isso não seria possível.

Durante mais de cinco horas – entre o final da manhã e a chegada de Jirair à Fazenda Providência , no fim da tarde –, Quartiero, deitado em uma rede, leu por mais de uma vez o mesmo jornal. Chegou a se declarar desempregado e sem-terra. Suas roupas estavam sujas porque, segundo ele, virou a noite providenciando retirada de materiais. Policiais, agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais e Renováveis (Ibama) que permaneceram durante todo o tempo na fazenda foram orientados pelo desembargador a não efetuar uma prisão.

Questionado pela Agência Brasil sobre o seu futuro na atividade produtiva, Quartiero disse ter se entusiasmado com propostas do governo da Guiana, que cederia terras ao produtor por até 99 anos. Mas não deu suas fazendas na Raposa Serra do Sol como caso perdido. “Minha história aqui não acabou. Foi só um capítulo. Houve muita ilegalidade no processo e ainda tenho esperança que mais gente reconheça isso.”

Nos próximos meses, entretanto, Quartiero terá de responder por condutas irregulares que cometeu ou que lhe foram atribuídas. A destruição das sedes de suas duas fazendas, cuja ordem ele admite ter dado, deverá ser configurada como crime, porque as benfeitorias já tinham sido indenizadas pela União. O Ibama aplicou-lhe multas por degradação ambiental, que somadas chegam a R$ 50 milhões. “Isso é retaliação política”, comentou o produtor.

A Fazenda Providência já tem novos donos. O tuxaua (cacique) Avelino Pereira, da comunidade Santa Rita, anunciou que dez famílias indígenas viverão na área, onde pretendem plantar arroz, feijão, milho e macaxeira. O grupo já teria máquinas agrícolas. São silvícolas ligados à Sociedade dos Índios Unidos em Defesa de Roraima (Sodiu-RR), entidade que sempre se posicionou favoravelmente à permanência dos arrozeiros. “Ele [Quartiero] sempre foi nosso parceiro, legal com a gente, muitos índios trabalharam com ele. Podia ter deixado a casa para nós, mas fazer o quê, achou melhor de outro jeito. A gente constrói uma”, lamentou Avelino.