Manejo Florestal, grilagem de terras e presença do Estado de Direito na Amazônia

O Projeto de Lei n◦ 4776/2005, que dispõe sobre a concessão de florestas públicas para a exploração madeireira, vem provocando forte polêmica entre ambientalistas, especialistas em florestas e questões amazônicas, autoridades governamentais e membros do Congresso Nacional. Matéria extensa e complexa que dá gancho para interpretações variadas e suscita intermináveis discussões, focadas com maior vigor na Amazônia. Mas, é bom lembrar, que o PL incide também sobre outros biomas como a Mata Atlântica, o Cerrado e a Caatinga, nos quais o interesse se volta para as florestas plantadas e os subprodutos da exploração florestal.

O ISA publicou notícias e análises exaustivas sobre o texto do Projeto de Lei n° 4776/05, e não cabe retomá-las aqui de forma sistemática, para nos concentrarmos em três grandes questões subjacentes a essa discussão, que vão além da letra da lei proposta, como o manejo florestal, a grilagem e o Estado de Direito na Amazônia.

Algumas das críticas ao PL se fundamentam nas disposições que prevêem a concessão de áreas extensas às empresas privadas, para regimes de exploração de longo prazo, até 60 anos, considerados excessivos, ensejando receios de que impliquem na privatização de terras públicas e até na “internacionalização” da Amazônia (no caso de concessões a empresas estrangeiras). Essas críticas possivelmente decorrem de leituras do PL sob a ótica das políticas fundiárias formais, que se orientam para módulos agrários de menor extensão apropriados à produção agropecuária.

A este respeito, a lógica do manejo florestal, para contrapor-se efetivamente à mera extração florestal, responde satisfatoriamente a estas críticas, pois não se pode imaginar que a exploração florestal possa pretender alguma sustentabilidade ambiental atuando em pequenas extensões de terra, ou em curtos ciclos produtivos, pois não haveria possibilidade de regeneração ou reposição dos estoques explorados. Já os receios de que a posse duradoura de particulares sobre as terras possa gerar direitos de propriedade, ou resultar em alienação da soberania do estado, nos parecem exagerados, ou, de qualquer forma, deveriam remeter à discussão de outros dispositivos legais mais objetivamente relacionados, que não este PL.

Por outro lado, estamos longe de dispor de certezas científicas sobre a sustentabilidade do manejo de florestas nativas e heterogêneas. No mínimo, a exploração, mesmo seletiva, implica o empobrecimento da floresta, não apenas pela redução na população de espécies economicamente mais valorizadas, mas pelo impacto à própria biodiversidade, além da abertura de estradas e picadas que fragilizam a floresta e favorecem a sua fragmentação. Portanto, a concessão florestal não é uma panacéia de proteção florestal, mas apenas um mal menor, quando comparada à mera apropriação ilegal das terras e dos seus recursos que prevalece no modelo, até aqui predominante, de ocupação predatória da Amazônia.

Porém, o melhor, do ponto de vista da integridade da floresta, seria a sua preservação até que existam soluções técnicas e científicas que garantam a sustentabilidade da exploração florestal. Mas a sobrevivência das populações, ou dos empreendimentos que dependem dessa exploração estaria prejudicada, o que põe em xeque a viabilidade política desta opção. Aliás, o projeto conta com o apoio destas populações porque prevê o reconhecimento de suas áreas antes que sejam destinadas à concessão.

Além disso, a tese de que a valorização dos produtos da “floresta em pé” é a alternativa estratégica à sua substituição por áreas de pastagem ou cultivo também estaria comprometida pela eventual indisponibilidade, ainda que temporária, dos recursos madeireiros, que já têm algum valor reconhecido no mercado.

Portanto, assim como as críticas ao PL têm um fundo legítimo de desconfiança, no sentido de que o menos mal não deve ser festejado, parece lícito que o governo necessite de melhor instrumento legal para tentar gerir o bonde desgovernado da indústria madeireira. A intervenção do ISA e de outras ONGs nesse processo se deu nestes limites, reivindicando a discussão pública do PL antes do seu envio ao Congresso e sugerindo alterações que minimizam os riscos da lei, que foram acolhidas, até aqui, em grande medida.

Mas há outras questões de fundo relacionadas aos méritos e aos riscos do PL. Subjacente a ele há uma tática para tentar separar a máfia da grilagem da máfia da exploração predatória. No modelo atual elas andam juntas, pois a segunda depende da primeira para atestar, ainda que de forma precária ou criminosa, a disponibilidade de áreas “privadas” para a exploração florestal, o que deixa de ser necessário no regime de concessões. Para os grileiros ficam as penas da lei, para os madeireiros se abre uma alternativa legal. Parece-nos uma tática correta e indispensável para qualquer esforço que pretenda controlar a situação de fato.

No entanto, como poder concedente, o estado estará, sob o proposto marco legal, inteiramente comprometido com o que vier a acontecer nas áreas concedidas, para o bem ou para o mal. Da atual condição de omisso ou conivente, o poder público passará a protagonista. Não haverá como dissociar a responsabilidade do concessionário da do poder concedente. E isto põe em questão, mais do que nunca, a capacidade, ou incapacidade, do estado (governo federal) em atuar no chão. Por essa razão a participação da sociedade civil organizada na fiscalização dos mecanismos de segurança e dos recursos financeiros previstos no projeto é crucial.

Ao dispor sobre a criação do Serviço Florestal Brasileiro, o PL reconhece, implicitamente, a incapacidade crônica do IBAMA em gerir a política florestal, que, de resto, ficou extravagantemente demonstrada com a recente Operação Curupira, que desbaratou a “máfia verde” incrustada nos setores público e privado. Por um lado, parece correto o princípio de que não deve ser o mesmo agente público responsável por conceder e por fiscalizar as concessões. Por outro, a providência sugere que poderá haver mais capacidade para conceder, mas nada garante que haverá mais capacidade para fiscalizar. E se esta não houver, o poder concedente será objetivamente responsável por qualquer estrago que vier a ocorrer.

Assim, a questão decisiva sobre se a nova lei representará vantagem ou desvantagem comparativa em relação ao modelo atual está além da letra da lei e remete à questão da capacidade do estado em operar com um mínimo de eficiência nas situações concretas locais. Sem isto, o PL pode vir a ser mais uma lei a ser burlada. E para isto será necessário muito mais do que o PL: a superação do crônico divórcio entre a burocracia e a realidade, entre a postura cartorial do estado, que pode ser subvertida, e a sua eventual capacidade de estar presente e de operar efetivamente em regiões remotas.

Os céticos dizem que a questão do estado não tem solução (pelo menos à vista), e a experiência real do passado e do presente justificam o seu ceticismo. Por exemplo: os cargos de confiança a serem criados no âmbito do Serviço Florestal serão preenchidos por indicações da base política dos governos? Alguém garante que não?

O ISA entende que o PL (e a lei que dele deve decorrer) não constitui a sangria desatada ou o retrocesso que muitos apontam, assim como não garante, por si mesmo, uma política florestal saneada. Acatamos o intento do governo em dispor de um novo instrumento legal, mas nos resguardamos para cobrar o que nos parece mais essencial: a efetiva vontade política de se fazer presente no chão e de aplicar a legislação, o que é incompatível com o loteamento da administração segundo interesses políticos locais, freqüentemente associados aos interesses do modelo predatório.