Conhecimento e respeito pelo Velho Chico

Poucos conhecem o São Francisco tão bem quanto aqueles que tiram seu sustento do rio. Os pescadores conhecem cada curva, barranca e pedra do seu local de trabalho. São barranqueiros e ribeirinhos, de Iguatama a Três Marias, que contam seus problemas, sugerem soluções e pedem ajuda para a preservação do Velho Chico.

conhecimento_2.jpgAos 60 anos de idade, José Maurício de Campos, conhecido como seo Mauricinho, tem mais de trinta só de pesca profissional nos arredores de Iguatama. Ele explica que no começo tinha peixe e água demais, e os pescados incluíam o surubin, dourado, pirá, agrumatã, piau e muitos outros.

Na opinião de seo Mauricinho, os maiores culpados são os ranchos montados na beira dágua, onde muitos turistas vão caçar e pescar, mesmo durante a piracema, época de desova, quando a pesca é proibida. Ele explica que a técnica é amarrar redes em canoas para encurralar o peixe. Além disso, ele diz que estão matando também as capivaras da região. "Eles acendem um cilibriu (farol) e iluminam o olho dela, aí ela fica boba e eles atiram".

“Espero que meus netos ainda vão pescar muito no São Francisco”, afirma seo Clotário. Foto: Fernando Zarur

Mesma opinião compartilha seu Zé Botinha, 75 anos, natural de Iguatama. Ele, que trabalhou como candango na construção de Brasília, diz ter voltado para sua terra em busca de um pouco mais de tranqüilidade. Assim, todos os dias, cata minhocas e, com uma vara de bambu, vai para a beira do rio pescar. Mas acha que, ultimamente, os peixes estão cada vez mais escassos: “tem dia que passo todo sentado aqui e só pego uns três mandizinho”, reclama, se referindo a quantidade e tamanho da espécie de bagre, comum na região.

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Seu Zé Botinha pesca com vara e linha em uma barranca do Velho Chico, única alternativa para os pescadores da região. Foto: Bruno Radicchi.

conhecimento_3.jpgSeo Clotário Pinheiro, 67 anos no São Francisco, 28 de pesca profissional, conta uma história parecida: poluição, pesca predatória e depredação. “Eu mesmo já ajudei a matar um pouco o rio, antigamente pescava na piracema, pescava com qualquer rede, hoje está tudo regulado, a malha tem um tamanho certo e a fiscalização está em cima”.

Rio abaixo, numa ponte sobre o São Francisco que divide os municípios de Abaeté e Martinho Campos, mora outro pescador chamado Paulo Emiliano. Aos 42 anos, o ex-policial reformado abandonou Belo Horizonte para morar num barraco improvisado debaixo da rodovia. “Não troco isso daqui por nada, é meu hotel cinco estrelas”, brinca.

“A gente não respeitava nada, pescava com rede tão fina que parecia forro de mesa”, brinca seo Mauricinho. Foto: Fernando Zarur

Acompanhado de dois cachorros, ele trabalha em fazendas da região e volta todo dia para seu lar. Nesse cotidiano há três anos, ele afirma ajudar na preservação do rio, retirando lixo da água. Os detritos mais comuns são garrafas, copos e sacos plásticos. Ele reclama da falta de consciência das pessoas: “no rio só se joga o que peixe come”.

Além disso, confirma das denúncias dos outros companheiros de profissão. Assim como em Iguatama, ali a fauna próxima ao rio também está minguando. “Paca, capivara, isso está desaparecendo. Fico ainda mais triste quando aparece gente aí para pegar passarinho”, conta Paulo.

Outro problema sério é a drenagem de lagoas marginais. Os fazendeiros costumam drenar essas áreas que servem como berçário de várias espécies de peixes para ganhar alguns metros de pasto. "Se quisermos ter peixes, temos de salvar essas lagoas" indigna-se Norberto, líder da Associação de Pescadores da represa de Três Marias, que tem mais de 1200 membros.

Para piorar a situação, uma lei mineira proibiu a pesca profissional ao longo do rio. Em busca de um culpado para a diminuição de peixes no São Francisco, acharam uma classe fácil de se culpar: os pescadores. Dessa forma marginalizam ainda mais os pescadores, já empobrecidos, que agora precisam agir fora da lei. “Há 35 dias aguardamos o salário desemprego que o governo federal prometeu aos pescadores da região”, reclama Norberto.

Todos apresentam também soluções para os problemas que o rio enfrenta. Seo Clotário reivindica que se durante os três meses que dura piracema não se pode pescar, medida que considera certíssima, que os pescadores recebam incentivos para plantio ou outra atividade. Seo Mauricinho, bastante afinado com o colega, está esperançoso. "O rio tem salvação, acho que este trabalho de revitalização é muito bom. Espero que meus netos ainda vão pescar muito no São Francisco", diz.

Os pescadores da represa de Três Marias planejam vôos mais altos. Já há projetos de pecuária de pescados às margens do São Francisco, e uma alternativa para o sustendo dos pescadores é a criação de peixes em tanques, mas com qualidade de agronegócio. “Se o projeto que começou em Januária der certo, vamos começar ainda este ano”, espera Norberto.

Impactos Ambientais no Velho Chico

Se o São Francisco tem problemas desde sua nascente, foi no remanso da represa de Três Marias onde a Expedição Américo Vespúcio encontrou os maiores impactos ambientais. O próprio reservatório, inaugurado em 1961, gera problemas irreversíveis para o rio.

Podemos dizer que este impacto foi calculado, afinal, o país precisa de energia e estamos num momento difícil, em que é necessário rediscutir os modelos energéticos brasileiros. A situação no reservatório, por exemplo, é crítica. Segundo dados da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a usina está funcionando com apenas 9,6% da capacidade útil, percentual que deve ser comemorado, devido a recuperação do nível da água pelas chuvas. Antes o índice estava abaixo dos 8%.

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Árvores submersas aparecem devido ao baixo nível d´água no reservatório da represesa de Três Marias, MG. Foto: Fernando Zarur

Quando o reservatório chegar a zero, não haverá água saindo para o São Francisco. A barragem continuará com água, mas esta não chegará ao rio porque a represa não tem válvula de pé, uma espécie de saída de emergência para níveis muito baixos. E como a represa chegou a níveis tão baixos? Há várias respostas, mas durante anos Três Marias é a válvula que regula o fluxo d’água para o Velho Chico.

Três Marias deixou de representar muito na produção de energia nacional, abastecendo apenas Belo Horizonte e algumas cidades da região norte de Minas. Sua principal função tem sido regular o nível do lago de Sobradinho, vários quilômetros abaixo no rio. Ainda nesse momento, o volume das águas que entram na represa é de 180 m³/segundo, enquanto as turbinas trabalham com uma vazão de 400 m³/s. A Cemig, dona da represa, garante que não há possibilidade de que o rio pare, mas para quem nunca pensou que a represa estaria tão baixa, ainda restam dúvidas.

Uma das pessoas que mais duvida da real responsabilidade de empresas e órgãos reguladores é Vicente de Paula Rezende, fundador da ong Voluntários Integrados em Defesa Ambiental, Vida. Sobre a represa, ressalta que o negócio ainda é muito lucrativo, e que a água a mais que sai tem destino certo: “a água virou commoditie, estamos trocando água por quilowatts”.

Há algumas ações que podem ser tomadas para reverter esse quadro, mas a maioria se afasta da barragem. Entre o Paraopeba, principal afluente do Velho Chico na região, e o próprio São Francisco, há uma área com cerca de 1600 km², onde 80% dos solos estão expostos e em processo de desertificação. É o que acontece quando há desmatamento e mau uso do solo. Para se somar ao problema, várias áreas foram reflorestadas com eucaliptos, que suga o solo a grandes profundidades, secando nascentes.

Os desmatamentos coincidem com as regiões de nascentes e veredas, as principais fontes de água para o São Francisco e seus afluentes. “Revitalizar o rio é antes de mais nada resgatar as veredas, que são as mães das águas”, defende Vicente. Duas ações são propostas por ele: defender o que ainda está intacto e reter as águas de chuva com pequenas barragens nas propriedades rurais.

Com ele concorda Ruy Jarí, agente de fiscalização do Ibama de Três Marias: entre as ocorrências mais comuns estão garimpos artesanais de diamante, no rio Abaeté, altamente degradantes; carvoarias queimando matas nativas; esgotos de grandes cidades, como Belo Horizonte e Betim; e uso de agrotóxicos à margem do Velho Chico. Para fiscalizar tudo isso, ele conta com apenas dois barcos, um carro e quatro funcionários.

A situação no lago foi agravada em 1968, sete anos após o início das atividades da represa de Três Marias, com a instalação às margens do rio da Companhia Mineira de Mineração (CMM), uma fábrica de zinco de propriedade do grupo Votorantin. Os dejetos eram despejados no rio e, segundo os pescadores, de 1968 até 1990 a mortandade média de pescado no reservatório chegou a 10 toneladas por ano. Em 1991 a CMM iniciou um trabalho de conservação ambiental, retirando a saída de dejetos e tentando recuperar o impacto ambiental.

Ao lado da fábrica há uma verdadeira montanha de lama com altas concentrações de metais. “Nós não escondemos o que fizemos no passado, mas a CMM tem se empenhado em consertar o estrago”, defende-se Edimárcio Araújo Prudente, técnico em meio ambiente que trabalha na empresa, reportando que uma nova área de depósito está em construção, e 260 toneladas por dia de dejetos serão retirados do monte já existente. A operação de retirada deve durar 20 anos.

Reservatório de Três Marias: regulador do São Francisco

A conservação do lago de Três Marias é uma tarefa que envolve diversos órgãos públicos e setores da sociedade. Entretanto, a manutenção da vida aquática na região tem como maior especialista o professor Yoshimi Sato. Doutor em Ecologia e Recursos Naturais, ele acompanha a vida dos peixes da lagoa desde a inauguração da Estação de Hidrobiologia e Piscicultura de Três Marias, em 1976.

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Tanque para reprodução de peixes na Estação de Hidrobiologia e Piscicultura da Codevasf. Foto: Bruno Radicchi.

Sato chegou à região no momento em que ganhava força o movimento ecológico, e os problemas para a manutenção da vida aquática local chamaram sua atenção. Como chefe da estação mantida pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), ele desenvolveu, em mais de 25 anos de trabalho, diversos projetos de estudo de impacto ambiental, mortandade e repopulação dos peixes no lago.

Mesmo com os trabalhos desenvolvidos por Sato e outros ambientalistas, a degradação do ecossistema do reservatório continua preocupante. “O trecho que vai da nascente até Pirapora e inclui a barragem de Três Marias é o mais importante do vale. É o nascedouro e maior reduto de peixes do São Francisco, e a região que mais contribui com águas para o rio. Se isso não for preservado, nós vamos deixar pouca coisa para as gerações futuras”, explica.

professorsato.jpgUm desses problemas é a destruição das lagoas marginais, melhor lugar para reprodução dos peixes. Segundo dados da Codevasf, na região de Iguatama-MG, em 1982, existiam cerca de 80 lagoas, sendo 28 permanentes. Atualmente, o total não chega a 20. "Temos que recuperar estes berçários naturais. As lavouras de cana e pastagens estão dominando e acabando com as lagoas", afirma Sato.

Outro fator de desequilíbrio é a introdução de espécies exóticas ao rio. Entre elas estão o tucunaré e o bagre africano, predadores que não existiam na região e foram trazidos por pesque-pagues e, principalmente, por projetos do governo. Estes peixes se adaptaram bem na região e passaram a devorar filhotes e peixes nativos.

Para o professor Yoshimi Sato, embora já em estado adiantado, a degradação do São francisco ainda é recuperável. Foto: Fernando Zarur

Sato explica que existem poucas alternativas para a manutenção do meio-ambiente regional. “A degradação do baixo São Francisco é irrecuperável”, afirma, para logo depois dizer que o Velho Chico ainda tem salvação. Parte dessa solução viria com a reintrodução de espécies nativas – trabalho apenas paliativo – e a preservação das lagoas marginais.

Entre as soluções propostas, Sato descarta as “escadas” e “elevadores” para peixes. Em sua opinião, muitos peixes não conseguem subir os níveis, e os que conseguirem encontrarão condições desfavoráveis para reprodução e não poderão voltar. A água no reservatório está parada, é transparente, tem temperatura diferente da ideal, falta de oxigênio, entre outros problemas apontados por ele.

“Precisamos conhecer os interesses por trás dessas ações”, alerta Sato. “Se você perguntar para qualquer morador das cidades da região, todos serão a favor das tais escadas, mas não conhecem a real situação”. Sato explica também que as autoridades optam por este tipo de obra porque querem dar uma resposta à população. “Acho que as escadas são um pretexto para dar dinheiro para as empreiteiras”, conclui Sato.