No Alto Xingu, sertanista morto é homenageado no Kuarup entre kuikuros e kalapalos

O sertanista Apoena Meireles, assassinado no ano passado em Rondônia, foi um dos homenageados no Kuarup que terminou hoje (26) na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, no Parque Indígena do Xingu. O Kuarup é uma celebração fúnebre de mortos ilustres do Xingu e, desde que os índios começaram a ter contato mais intenso com os brancos, passou a incluir também a homenagem a brancos que tiveram alguma relação com a causa indígena.

A cerimônia, que se dá sempre nesta época do ano, pode acontecer em qualquer uma das aldeias das 14 etnias que habitam a região meridional do parque, o chamado Alto Xingu. Para isso, é preciso que haja um morto ilustre (chefe ou parente de um chefe) a ser homenageado. Este ano, já tinha acontecido um Kuarup na aldeia Waurá, quinze dias atrás.

No Kuarup que terminou hoje, os homenageados principais dos Kuikuro foram Nahu e Sesuaká, pais de Jakalo, um dos principais líderes kuikuro, além de um morto kalapalo; povo que é o principal aliado dos Kuikuro. Ao todo, foram quatro troncos decorados em homenagem aos mortos. Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nahu era um dos três únicos xinguanos que falava português na época da implantação do Parque Indígena do Xingu, nos anos 60. "Por isso ele se tornou intermediário
importante e ganhou prestígio, apesar de não pertencer a uma família tradicional de chefes",
explica ele. Há cinco anos, Fausto auxilia os Kuikuro em um projeto de preservação da sua memória tradicional.

"O Kuarup é a festividade mais conhecida dos povos indígenas do Brasil", afirmou o presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Pereira Gomes, que acompanhou o Kuarup na aldeia Kuikuro entre ontem e hoje. "Apoena foi desde os 17, 18 anos uma pessoa dedicada aos índios. O pai, Francisco Meireles, também foi, e conheceu os índios daqui nos anos 40. Então, é como se fosse uma linhagem de indigenistas, e esse reconhecimento é emocionante para nós." Gomes lembrou que foi ele próprio quem tinha convidado Apoena a voltar para o trabalho na Funai, já que o sertanista estava aposentado.

No ano passado, Apoena, que, na década de 60, ainda adolescente, aos 17 anos, tinha ajudado a contatar os Cinta-Larga, índios tupi de Rondônia, foi auxiliar a Funai na mediação do caso em que cerca de 29 garimpeiros foram mortos pelos índios na área indígena Roosevelt. A área vive conflito pela posse de uma jazida de diamantes. Desde o fim de 2003, ele era coordenador regional da Funai em Rondônia. Apoena foi assassinado por um adolescente quando saía de um caixa eletrônico em Porto Velho.

Projeto que autoriza implantação de usina de Belo Monte (PA) é aprovado pela Câmara

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 6 de julho, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 1.785/05, que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, na chamada Volta Grande do rio Xingu, na altura dos municípios de Altamira e Anapu, no Pará. O projeto segue agora para apreciação do Senado. A obra, uma das mais polêmicas já projetadas no País, pode afetar diretamente a vida de nove povos indígenas que vivem na região e vem suscitando mobilizações e intensos protestos do movimento social da Amazônia nos últimos dezessete anos (veja o especial A Polêmica de Belo Monte).

Desde o final dos anos 1970, sucessivos governos tentaram implantar a UHE, originalmente denominada Kararaô. Em 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF) paralisou a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) sobre o projeto atendendo um pedido do Ministério Público Federal (MPF), que então argumentava a inexistência de autorização do Congresso Nacional para o empreendimento. O governo Lula assumiu seu mandato com a promessa de rediscutir e reavaliar a implementação da usina.

A resistência das populações locais à obra mantém-se firme mesmo com as várias alterações incluídas nos planos originais: o reservatório da usina passou de 1.225 para 400 quilômetros quadrados e a estimativa de energia que poderá ser produzida, segundo o governo, passou de 11 mil para 5 mil megawatts. Além dos povos indígenas da região, a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), o Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri/Regional) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre várias outras organizações, são contrários à construção. A principal reclamação desses setores é de que nunca foram ouvidos em relação ao problema durante todo este tempo. A Constituição Federal afirma que o aproveitamento dos recursos hídricos em Terras Indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”.

Comunidades querem ser ouvidas

“Os governos anteriores sempre quiseram enfiar o projeto goela abaixo. As comunidades nunca foram ouvidas ou foram ouvidas de forma tendenciosa. Isso continua do mesmo jeito”, critica Antônia Melo da Silva, coordenadora regional do GTA. Ela conta que muitas das empresas interessadas no empreendimento já estão divulgando que ele foi autorizado. “O que sempre reivindicamos é a elaboração de um estudo para o desenvolvimento econômico sustentável de toda a Bacia do Xingu, que apontasse alternativas como a pesca e o turismo ecológico.” Antônia diz que o grande movimento que lutou contra Belo Monte durante os anos 1990 irá retomar suas ações a partir de agora. De 13 a 15 de julho, em Altamira, um seminário com a presença de vários especialistas irá discutir com a comunidade todas as implicações da construção da usina. No dia 14, também será lançado o livro Tenotã-Mõ, Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no Rio Xingu, que tem a participação do ISA (confira serviço abaixo).

“Os estudos não foram concluídos. Então como o Congresso pode autorizar alguma coisa que não conhece? Além disso, a Constituição deixa claro que as comunidades afetadas devem ser ouvidas antes da autorização”, defende o advogado do ISA Raul Silva Telles do Valle. Ele lembra ainda que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, também fala em “anuência prévia” das comunidades interessadas sobre projetos semelhantes. “Esta autorização é ilegal e inconstitucional.”

O deputado Fernando Ferro (PT-PE), autor do PDC 1.785/05, acredita que ele se refere apenas à permissão para o reinício e a revalidação de estudos preliminares e que as comunidades locais serão consultadas a partir de agora. Apesar disso, o texto aprovado pela Câmara afirma que “é autorizado o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte (…) após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar necessário.” Por outro lado, o deputado também não esconde sua posição favorável à usina. “No curto prazo, o País só tem duas alternativas para sua necessidade de energia: ou aproveitamos o potencial hidrelétrico da região Norte ou investimos em usinas nucleares. Em relação a estas últimas sou contra.” O parlamentar considera que os impactos ambientais e sociais de Belo Monte podem ser mitigados.

Falso dilema

"Optar entre a construção de hidrelétricas ou de usinas nucleares é um falso dilema. Se não discutirmos seriamente o destino da energia gerada e quais são os limites socioambientais para a expansão das usinas, em médio prazo teremos que aceitar a construção de hidrelétricas e também de usinas nucleares”, avalia Raul Silva Telles do Valle. Ele defende que é preciso rediscutir não só formas de melhor aproveitamento da energia elétrica mas, principalmente, a opção de continuar direcionando 27% de toda a energia gerada apenas para as indústrias eletrointensivas, como a de alumínio, de siderurgia e de celulose. “Só para citar um exemplo, a quantidade de energia utilizada para produzir alumínio para exportação, no ano de 2000, seria suficiente para abastecer mais de 870 mil famílias durante oito anos. Temos, portanto, que avaliar se realmente é necessário expandir dessa forma, a um custo social e ambiental altíssimo, a geração de energia."

Para o deputado Fernando Ferro o que existe é um certo preconceito em relação às hidrelétricas. “Este tipo de opinião é motivado por interesses de alguns setores industriais que querem investir em outras alternativas energéticas, como as termoelétricas”. O parlamentar insiste que o PDC apenas pretende regularizar o andamento de estudos que já têm mais de 20 anos. “Em sua ação, o MPF deixa claro a necessidade de autorização do Congresso Nacional. A partir de agora, essas pesquisas poderão ser aprofundadas.”

O passo que faltava

O deputado Zé Geraldo (PT-PA), que tem sua base eleitoral na região e conhece os movimentos sociais locais, também considera que o prosseguimento dos estudos sobre a usina atende uma expectativa legítima e que a posição contrária à obra não é majoritária entra as organizações da sociedade civil. “De qualquer forma, as cidades da região precisam saber se vai haver ou não hidrelétrica. Depois dos estudos podemos sentar e discutir melhor com todos os interessados.” Apesar de repetir que o PDC 1.785/05 apenas autoriza pesquisas preliminares, Zé Geraldo também não esconde sua opinião sobre a usina: “Existe em todo o País medo de hidrelétrica. Isso ocorre pela maneira autoritária com que elas sempre foram feitas. Agora é diferente. Quanto à posição contrária de alguns setores, temos de discutir se ela é a mais correta.”

Zé Geraldo nega ainda que o governo esteja impedindo qualquer tipo de discussão sobre o problema. Questionado sobre a necessidade de o Congresso ouvir as populações atingidas, o deputado também acha que o momento propício ocorrerá a partir de agora. “O governo Lula já está indo para o segundo semestre de seu terceiro ano. Se tivermos de ouvir as comunidades antes disso… Acho que tem de ser assim, mesmo porque não há questionamento sobre a legalidade dos estudos em si.” O parlamentar não deixa dúvida sobre a intenção da administração Lula em relação à obra: “O governo tem toda a vontade de começar a construção da usina”.

Em virtude da pressão exercida por vários setores econômicos e da disposição da administração Lula em levar adiante empreendimentos desse tipo, a aprovação definitiva do PDC pelo Senado poderá ser considerado, na prática, o passo que faltava para o início efetivo da obra. A ascensão da antiga ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff,

ao cargo de chefe da Casa Civil da Presidência da República acrescenta mais um componente a uma conjuntura já favorável à construção de novas hidrelétricas no País. A pretensão do governo federal em implantar projetos semelhantes (sem discutí-los com a sociedade e apesar dos protestos de vários segmentos organizados) pode ser exemplificada também pela concessão da Licença de Operação, no último dia 5 de julho, à usina de Barra Grande, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. A obra foi feita com base em um EIA reconhecidamente fraudulento e é apontada como o maior escândalo ambiental dos últimos anos (confira).

Um dos vários pontos polêmicos sobre Belo Monte continua dizendo respeito ao real potencial energético da usina – mesmo depois da redução da estimativa originalmente prevista. Por simulações feitas para o período de 1931 a 1996, a usina só seria capaz de garantir uma potência de 1.356 MW ao longo do ano, com picos de 5 mil MW durante apenas três meses, aponta o professor Oswaldo Sevá, da Unicamp, em artigo do livro Tenotã-Mõ. Isto é, a potência máxima de 5 mil MW apregoada pelo governo só seria possível durante uma pequena parte do ano.

Pelo menos 33% da vegetação das nascentes do rio Xingu já foram destruídas

A degradação ambiental já destruiu 33% da vegetação do cerrado das nascentes do Rio Xingu e de seus afluentes. Essa é a informação do secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco. Na sua avaliação, indígenas e produtores rurais estão se mobilizando pela primeira vez em favor da preservação da bacia. As discussões acontecem durante o “Encontro sobre Nascentes do Xingu”, que está sendo realizado em Canarana, no Mato Grosso, até esta quarta-feira (27).

“Há, pela primeira vez, um debate franco, aberto entre o setor não governamental e o setor empresarial”, disse Capobianco. “Se for possível encontrar um caminho comum entre esses segmentos, certamente, isso será muito importante porque abre um espaço de cooperação dinâmico, inovador que nos ajudará a implantar uma nova agenda positiva na região”.

A expectativa sobre os resultados do seminário é alta. Segundo o secretário, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pretende receber os organizadores do evento para conhecer o resultado de seis dias debate.

A bacia do Rio Xingu atravessa dois importantes biomas brasileiros, o Cerrado e a Floresta Amazônica. Com um território de 2,6 mil hectares (área semelhante a de quase três mil campos de futebol), o Rio Xingu faz parte da vida de 5 mil índios de 14 etnias que vivem na reserva indígena. O rio também afeta cerca de 450 mil habitantes de 31 municípios do estado do Mato Grosso.

“A bacia do Rio Xingu é uma área muito rica do ponto de vista ambiental e do ponto de vista da diversidade cultural”, afirmou. Segundo João Paulo Capobianco, um dos principais fatores para o aumento da degradação é o modelo de atividade agropecuária, implantado a partir da década de 60. “Na realidade, a atividade agropecuária não necessariamente leva à degradação. A forma como ela vem se processando é que, de fato, vem trazendo uma degradação absolutamente impressionante, com danos quase irreversíveis”, explica.

Capobianco acredita que os produtores rurais têm, aos poucos, tomado consciência sobre a importância da preservação ambiental. “Eles perceberam que a degradação não é apenas um dano ambiental isolado, ela gera danos à própria atividade agropecuária na região”, disse.

Mobilização para salvar as nascentes do Xingu

Os coordenadores do Núcleo Cerrado, Augusto Santiago, e do Projeto de Manejo Integrado de  Biodiversidade Aquática e dos Recursos Hídricos da Amazônia, João Paulo Viana, ambos da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA, participam, a partir de hoje, do Encontro Nascentes do Xingu, em Canarana, no Mato Grosso. O evento reunirá índios, fazendeiros, agricultores, governos, comerciantes e  sociedade para debater sobre a melhor forma de defender as nascentes e as matas próximas ao Rio Xingú e seus afluentes. O encontro segue até o dia 27, no Centro Auxiliadora. 

A Terra Indígena do Xingu é uma verdadeira "ilha verde" no norte do Mato Grosso, cercada pelo desmatamento que avança com a soja e com a pecuária. Cortando seu território de 2,6 mil hectares, o Rio  Xingu mantém vivos parcela significativa da floresta e da cultura amazônicas, além de mais de cinco mil  indígenas de 14 etnias que vivem na reserva. No entanto, a maioria das nascentes que alimentam o rio, um afluente do Amazonas, está fora da área protegida e também ameaçadas pelo avanço da fronteira produtiva.

A Terra sofre, ainda, com invasões de pescadores e de caçadores, com queimadas que se originam em fazendas e com o ataque de madeireiras em busca de árvores que já não existem na região. A degradação do Xingu ameaça não só os indígenas, mas também a qualidade de vida de cerca de 450  mil pessoas de 31 municípios do norte do Mato Grosso.

O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961, como resultado do trabalho de importantes sertanistas brasileiros, entre eles os irmãos Villas Bôas. Devido a desmatamentos e queimadas, muitas nascentes do Xingu já secaram, podendo levar a uma grave crise hídrica na região.

Ministro da Justiça defende preservação do Rio Xingu

Na festa do Kuarup, última homenagem indígena aos mortos, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que a preservação e recuperação do Rio Xingu está na lista de prioridades do Ministério e da Fundação Nacional do Índio (Funai). "Temos uma dívida secular com os povos indígenas, e o Ministério e a Funai devem fazer um trabalho de preservação e recuperação do Rio Xingu, que é o lugar onde existe a maior população indígena no Brasil", ressaltou.

Atualmente, a principal preocupação dos índios do Xingu é com o desabastecimento de água. “As fazendas de soja desmatam e poluem as águas dos rios com os agrotóxicos”, denunciou Kotoki, o cacique da aldeia Kamayurá.

O ministro Thomaz Bastos revelou que já conversou com o presidente Lula sobre a visita ao Xingu. “O governo tem um compromisso com a comunidade indígena, até o final do mandato teremos todas as terras homologadas, demarcadas e pacificadas”, comprometeu-se. De acordo com a Funai, 12% do território brasileiro são de terras indígenas.

Essa foi a primeira vez que Thomaz Bastos participou do ritual do Kuarup. Ele fumou o cigarro do Pajé da aldeia e disse que não será a última vez que visita o Xingu. “Fiquei emocionado. É a representação da morte e da ressurreição”, enfatizou. Thomaz Bastos era o visitante mais esperado pela comunidade. “Ele trabalha na cidade, mas agora está aqui conversando pessoalmente com o nosso povo, isso é importante”, disse Paieap Kamayurá, um guerreiro da aldeia.

O Kuarup terminou no domingo (15/8) com uma luta entre guerreiros de aldeias do Alto Xingu. Os Kuikuros se reuniram aos Kamayurás e receberam ainda seis outras tribos da região. É a última etapa do Kuarup onde a disputa representa a força, a juventude, a parte alegre da festa.

Entrevista Orlando Villas Bôas

Em 1944, Orlando, Cláudio e Leonardo já haviam deixado São Paulo e integravam o quadro da "Marcha para o Oeste" se passando por sertanejos analfabetos. Pouco tempo depois, quando foram desmascarados, passaram a comandar certas atividades nas bases de apoio. Com a descoberta dos índios no caminho e a desistência do chefe oficial, coronel Vanique, de acompanhar a vanguarda da expedição, os três irmãos assumiram o comando da equipe que iria desbravar o oeste brasileiro.

Rota:Como você vê, hoje, a expedição?

Orlando: A expedição foi um movimento de interiorização criado pelo Getúlio. O Brasil Central era uma área vazia. Você vê, por exemplo, a Serra do Roncador, hoje, deve ter umas quinze cidades. Tudo isso foi idéia do Getúlio, ele queria provocar o processo de interiorização.

Rota: E a região central brasileira era totalmente desconhecida?

Orlando: Nós fizemos avançada no rio Maritsauá e não tinha nada, só índio. Que nos deram sustos prá daná. Hoje está cheio de cidades, e era isso que o Getúlio queria. Porque quando ele saiu de vôo e foi até o Araguaia, ele voltou escandalizado. Ele disse: “É o branco do Brasil Central.” Quer dizer, nós estamos em um país vazio. E naquela época, o mundo estava em guerra. Na Europa levataram essa perspectiva do espaço vital. A Europa estava superpovoada, e falava-se de ocupar esses vazios do Brasil Central com as populações excedentes européias. Um cidadão, grande político europeu, não sei se era francês, declarou que já estava na hora de ocupar os vazios do Brasil Central com as populações excedentes da Europa. Aí ele veio aqui e foi muito mal recebido, o presidente do estado não quis recebê-lo. Ele não quis receber a figura do governo francês, por causa das declarações que ele deu lá. E então essa idéia começou a ceder devagarinho, porque não estávamos disposto a ceder terras para a população européia, o Brasil estava demograficamente explodindo. Isso que eu estou falando é 1943, 44, tínhamos 40 milhões de habitantes. Agora, veja você, hoje nós temos 200 milhões! Um salto canalha! Pra você ver uma coisa, em 50, 60 anos, triplicou a população! Daí veio o plano da "Marcha para o Oeste".

Chegando na margem do Rio das Mortes, a expedição tinha de caminhar com Coronel Vanique (primeiro chefe da expedição), mas ele tirou o corpo fora por causa dos índios xavantes. Foi quando o (ministro) João Alberto chegou e disse assim: "Coronel, porque que tu não fazes o seguinte, tchê. Ponha a vanguarda da expedição com estes três rapazes, os três irmãos Villas Bôas, eles são dispostos". Aí, o Vanique ficou no Rio das mortes e nós entramos com a expedição. Quer dizer, o Cláudio e o Leonardo. Fiquei porque o grupo, eram oito sertanejos, teria que ter o abastecimento e eu cuidava da tropa. Toda semana eu, Vergílio e mais outro sertanejo, nós saímos com quatro ou cinco mulas levando a carga pro pessoal da expedição. Nisso nós levamos um ano atravessando a Serra do Roncador até que chegamos nas matas do Rio Kuluene. Pelo caminho nós íamos fazendo ranchos e os índios iam queimando os ranchos. Tinha que ter um cuidado danado, a gente chegava com a tropa amarrava os burros e eles cortavam a corda durante a noite e chegava de manhã e a burrada tinha fugido toda. Aí você precisava procurar burro… putz… era um perigo desgraçado porque tinha índio pra daná naquele tempo mas eles não atacaram a gente nenhuma vez. Só uma vez que eles fizeram uma tocaia muito grande.

Foi uma sorte nossa, os trabalhadores estavam caminhando, eram mais ou menos uns 15 trabalhadores, e o encarregado do rumo era o Cláudio, ele estava com a bússola. Chegou uma hora lá que começou uma gritaria de índio do lado direito da picada, era mulher, criança e homem fazendo barulho e avançando. O Cláudio reuniu todos num lugar só e ficou ali e aquela coisa se aproximando, se aproximando. Por uma sorte danada, tinha um cupim enorme na picada e o Cláudio resolveu subir nele – era um cerrado baixo – para ver se enxergava alguma coisa da gritaria que estava chegando. Só que o Cláudio subiu olhando para cá e a gritaria vinha do outro lado, quando ele subiu foi exatamente na hora que um grupo de uns 40 ou 50 índios xavantes com uma folha de palmeira na frente levantou e saiu correndo, eles iam chegando camuflados. Aí o Cláudio gritou pro pessoal, nossos homens eram todos armados, mandando apontar os mosquetões pra cima e deu uma descarga de tiro pro ar. A gritaria parou e os índios de cá fugiram, eles ficaram com medo daquele tiroteio danado, mas não foi nenhum tiro pro lado deles. Aí os índios passaram a nos vigiar e nos seguir. Há uns 500m, 1km na picada a gente percebia eles nos acompanhando. Até que nós chegamos na mata, lá os índios voltaram. Os xavantes não gostam de mata, eles são índios do cerrado. Ali nós fizemos um campo que hoje é uma cidade chama-se Garapu e no rastro nosso, esses acampamentos todos que fomos fazendo, foram se transformando em cidades: Canarana, Água Boa, Garapu… Hoje tem mais ou menos 18 cidades na Serra do Roncador.

Veja Também:

O fascínio de uma das regiões mais inexploradas do mundo e as visitas ilustres à expedição.

Os momentos de tensão durante os anos da Marcha para o Oeste.

Orlando e sua esposa, Marina Villas Bôas, contam um pouco sobre a família do índio brasileiro, a situação da mulher e da criança na tribo.

Documentário

Ouça o documentário produzido para o Rota Brasil Oeste sobre o trabalho dos irmãos Villas Bôas e a Marcha para o Oeste.

Kuarup – Parte I

Este artigo explora o clássico problema dos universais do comportamento humano, a partir da narrativa religiosa e do ritual do Kuarup dos índios xinguanos, por sua comparação com rituais e tradições religiosas ocidentais.Uma de suas conclusões é bastante animadora quanto ao futuro dos povos indígenas da região: mesmo com as interferências sofridas por anos e anos de contato com não-índios, os povos do Xingu “estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.”

Em Julho de 2003, os índios do Xingu realizaram, em homenagem a Orlando Villas Bôas, aquele que eles mesmos consideraram o maior Kuarup ("festa em homenagem a mortos ilustres") de todos os tempos, que pode ter reunido de 1500 a 2000 pessoas. Dele participei como amigo de Orlando e convidado de sua família.

foto1.jpgOs índios do Xingu consideram Orlando um herói, com correto senso de justiça: em um discurso, no final do ritual, os chefes Yawalapiti lembraram que sua tribo, hoje reunindo mais de 140 pessoas em uma belíssima aldeia, esteve reduzida a sete indivíduos dispersos em outras tribos; não se esqueceram que Orlando foi convencer cada um dos sobreviventes a reconstruir sua aldeia Yawalapiti.

"Cuidado a festa do Orlando". O índio avisa a todos para que tomem cuidado e não estraguem sua pintura para a festa do Orlando. Foto: George Zarur.

Este antropólogo ainda guarda na memória a aldeia Yawalapiti, dos anos sessenta, como uma única casinha, localizada muito perto do posto indígena, por razões de apoio e proteção. Ameaçadas de desaparecimento e reconstituídas, no Alto Xingu, foram também, as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai e Txicão. No Baixo Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi – estes libertados pelos Villas Bôas da escravidão de seringais – passaram por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará levados para dentro do Parque do Xingu, em situação emergencial, teriam desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar de tomar sua terra.

Em 1971, quando realizei meu trabalho de campo na região, era ela habitada por pouco mais de oitocentos índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954. Graças aos vínculos de Orlando com o grupo liderado por Roberto Baruzzi, da Escola Paulista de Medicina, as aldeias xinguanas, em 1971, tinham um grande número de crianças para poucos adultos que, não obstante, foram capazes de sustentá-las e vê-las crescer. Hoje, a população do Alto Xingu é de mais de quatro mil índios. Muitas tribos estão se dividindo em mais de uma aldeia, devido ao crescimento demográfico. Em 1971 havia, apenas, nove aldeias, uma tribo por aldeia, com exceção dos Maitipu e Nahukwa, que devido ao seu pequeno número e identidade lingüística, estavam concentrados em uma única aldeia (As aldeias eram Aweti, Kamaiurá, Kuikuro, Kalapalo, Maitipu-Nahukwa, Mehinaku, Waurá, Yawalapiti e Trumai). Hoje, os Maitipu e Nahukwa estão, cada qual, vivendo em sua aldeia.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Bôas na criação do Parque do Xingu e na implantação de uma eficaz proteção à saúde e à cultura locais. Já, muitos caraíbas (termo pelo qual os xinguanos chamam aos brancos) não percebem, ou se recusam a perceber, que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Aliás, a "deconstrução" de lendários heróis nacionais tem sido um aspecto da fragilização política de nações periféricas, como o Brasil, nos tempos atuais. Funciona como a desmoralização que os missionários clássicos impunham aos heróis religiosos, históricos e políticos dos povos que convertiam. Os intelectuais brasileiros que se dedicam a tal prática operam como agentes coloniais involuntários. Gostaria, algum dia, de chegar a ver a "deconstrução", por norte-americanos, de Washington ou Lincoln, por exemplo… Não é, entretanto, meu objetivo, neste trabalho, "deconstruir" aspetos do pensamento social brasileiro atual.

Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava "política de direitos humanos". Convenceu, definitivamente, o País de que os índios tinham o direito à vida. Esta constatação, hoje óbvia, não o era naquele tempo, pois desde o Padre Vieira representava uma fonte de dúvidas para a ética e para a política. Justificava genocídios em série. Rondon enfrentou e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.

Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século XX, pertenciam a um grupo intelectual, político e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra indígena deveria ser preservada, como condição para garantia da vida. Mas não só: afirmou-se pela primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois reconhecia-se, como valor, a diversidade cultural. Esta era época em que se falava de "quistos étnicos" e em que os estados nacionais – dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa – atuavam pela universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com a "cultura nacional". A luta pelos direitos indígenas a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.

Ao direito à sobrevivência física foram adicionados, até como condição, o direito à posse da terra e a viver segundo sua cultura. A terra, para tanto deveria ser garantida em dimensões compatíveis com a cultura original do grupo e para amortecer os efeitos do contato com os brancos.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.

Hoje, há mudanças importantíssimas na vida do Xingu, claramente percebidas por quem, com este antropólogo, lá foi, pela primeira vez, há quarenta anos (em 1963). Há uma participação muito maior dos índios na vida nacional brasileira. Há escolas em diversas aldeias, além de professores informais, que ensinam dentro das próprias casas, de acordo com o ritmo de vida das crianças. Há televisões, com antenas parabólicas movidas a baterias convencionais ou solares. Há muitas bicicletas (usadas por homens e mulheres) e algumas motocicletas, de propriedade individual. Há aldeias que possuem caminhões e quase todas têm barcos a motor. Até a maneira de caminhar das mulheres xinguanas mudou, pois, como notou Sandra Zarur, o passinho curto e rápido que a caracterizava, foi substituído por um passo mais largo, devido, presumivelmente, ao uso de "sandálias de dedo". Roupas são usadas, principalmente no posto indígena.

A cidade de Canarana (dez horas de viagem de barco e jipe) está no limite do Parque do Xingú. As fazendas de soja cercam todo o seu território. O Parque é, hoje, uma mancha verde rodeada por uma área pesadamente desmatada. É, além de tudo, a grande reserva biol] ]>

Kuarup – Parte II

Claude Levi-Strauss enfatizou aspetos comuns na estrutura formal de mitos de diferentes culturas, enquanto outros autores, a partir de uma tradição que passa por Mircea Eliade e Frazer exploraram, fenomenologicamente, os conteúdos ideológicos e sentimentos universais à experiência religiosa.

Uma de suas conclusões é bastante animadora quanto ao futuro dos povos indígenas da região: mesmo com as interferências sofridas por anos e anos de contato com não-índios, os povos do Xingu “estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas Bôas.”

O objetivo deste trabalho é o de procurar universais na experiência humana pela comparação de temas centrais da narrativa religiosa dos índios do Xingu e da narrativa religiosa cristã. Enquanto autores como Durkhein, Levi-Strauss e Mircea Eliade sempre buscaram a diferença entre as religiões européias modernas e as dos assim chamados "povos primitivos", Frazer, em que pese o viés etnocêntrico da "Belle Époque", que caracteriza sua obra, procurou as analogias e metáforas comuns à experiência religiosa de muitos diferentes povos, inclusive, mostrando a origem pré-cristã de diferentes rituais e crenças cristãs. Ao contrário de antropólogos como, por exemplo, Levi-Strauss e Evans-Pritchard, que enfatizaram a irredutibilidade do pensamento e das religiões "selvagens" frente aos das culturas ocidentais contemporâneas, Frazer estabeleceu uma continuidade entre todas as culturas religiosas do mundo.

Vamos evitar, neste artigo, a expressão “mito”, por ser sinônimo de "lenda", algo que seria característico dos povos supostamente menos desenvolvidos, do ponto de vista religioso. A idéia de "mito" como algo inverídico ou imperfeito pode ser facilmente perceptível a partir dos significados que são atribuídos ao termo por um dicionário popular brasileiro ("Novo Aurélio"), embora os antropólogos tenham procurado depurar o termo de seus aspectos negativos. Assim, ou todas as narrativas históricas, religiosas e científicas de toda e qualquer cultura, inclusive as nossas, são "mitos", isto é, ou "tudo é mito", ou todos os assim chamados "mitos" seriam, também, narrativas religiosas, históricas ou científicas. Uma breve lembrança sobre estudos recentes sobre a "invenção das tradições", a "construção da história" ou as revisões das idéias científicas bastam para sustentar tal dimensão relativista.

Na visão etnocêntrica dominante, as narrativas religiosas ocidentais não são "mitos", mas a única verdade. Embora o nosso evangelho cristão possa fazer sentido para nós, não o faz, evidentemente, para um maometano e muito menos para um xinguano. A Igreja Católica tem, por avanços e recuos, caminhado, de forma tolerante, na direção do reconhecimento de tal situação através do Ecumenismo, que considera, atualmente, um dos seus objetivos mais importantes. A "descoberta de Deus em outras culturas" define o sentido deste movimento, em que pese o potencial de intervenção colonial e até de agressão a culturas mais frágeis, ainda presentes no conceito de “inculturação" (usado em textos religiosos balizando a ação missionária).

A transcrição das narrativas religiosas, no português quase incompreensível dos índios, em contato recente com a sociedade brasileira, pode ser importante para estudos lingüisticos sobre os "dialetos do contato". Em antropologia social, porém, reforça o estereótipo do "mito primitivo" como oposto à narrativa religiosa característica das religiões ditas monoteistas e, principalmente, da religião cristã. De fato, o "mal português" indígena, freqüentemente infantilizado pela própria relação colonial estabelecida no contato interétnico, é plenamente compatível com a idéia de "mito".

A Antropologia em que pese o exorcismo que vem realizando desde Boas, ainda não conseguiu, de todo, livrar-se do fantasma de Levy-Bruhl1. Substituir o conceito de "mito", com suas ressonâncias semânticas negativas, pelo de "narrativa religiosa", pode representar um passo à frente.

1 Levy-Bruhl acreditava na infantilidade e, portanto, na inferioridade da mentalidade primitiva. Franz Boas teve um importante papel na formulação do relativismo em antropologia.

Kuarup – Parte III

foto5.jpgO ritual do Kuarup (nome de uma madeira) revive a narrativa religiosa dos índios do Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. Por seu papel na criação do mundo, dos homens e das coisas, Mawutzinin tem sido comparado a "Deus" ou, de outra forma, ao "demiurgo" (na tradição platônica, também divino). Mawutzinin é um ser eterno, antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore. Mawutzinin é também, o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de troncos Kuarup para casamento com as onças. Dadas tais características, o conceito de “Deus” parece-nos que melhor ajuda à compreensão, em uma tradução cultural livre, uma metáfora que busque, sobretudo, a inteligibilidade do leitor ocidental.

Há vários registros da narrativa dramatizada através do ritual do Kuarup. Existe um volume inteiro sobre o tema em que o ritual e o complexo de idéias associadas são descritas2 .

Os primeiros homens, em uma das versões colhida por Agostinho teriam sido criados a partir da madeira Kuarup. Segundo a narrativa colhida por Villas Bôas, o primeiro Kuarup teria sido realizado com o objetivo de trazer os mortos de volta à vida. Abaixo transcrevemos a versão dos Villas Bôas3 , por ser em português mais claro que o "dialeto do contato" transcrito por Agostinho e, também, por representar uma versão menos detalhada mas, possivelmente, mais "universalmente" xinguana da narrativa:

"Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.

Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.

Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.

Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.

Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. "Ninguém pode ver" – dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente.

Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.

Os cantadores – os cururus e as cutias – quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda.

Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera…espera…espera" – dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.

Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.

Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.

Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: – O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:

– Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora vai ser só festa.

Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. Tem que ficar assim mesmo, disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no Morená."

O Kuarup só é realizado para pessoas ilustres, seja por um critério de "sangue", seja por um critério de liderança política ou econômica. A sociedade xinguana apresenta duas classes tradicionais, o "morekwat" (na lingua Aweti) ou "morerekwat", (em Kamaiurá) os descendentes uma classe hereditária de chefes, originários dos primitivos índios de cada tribo. Os "morekwat" têm o direito (teórico) à propriedade do pátio da aldeia e uma posição de destaque em determinados rituais. A eles cabem os discursos e representar a aldeia no momento do recebimento ou oferta de presentes em rituais, especialmente, nos de caráter intertribal. Possuem o direito ao uso de uma pintura característica no braço.

Além da chefia tradicional há, ainda, a liderança emergente do contato interétnico, índios que melhor falam o português e desempenham a função de intermediários culturais com a sociedade caraíba. Em um trabalho anterior4 , denominei-os "capitães", termo que embora seja usado pelos índios como tradução de "morekwat" enfatiza a relação com a sociedade nacional brasileira.

Opostos aos "morekwat" (lideranças hereditárias tradicionais) e "capitães" (lideranças novas resultantes do contato interétnico) estão os "camara", transformação do termo português "camarada".

Normalmente, os "morekwat" e "capitães", por sua situação estratégica nos diversos rituais, possuem a indispensável capacidade de mobilização econômica, que lhe permite acionar uma forte rede de parentes e outras pessoas, para a produção de alimentos e, assim, "pagar" rituais maiores, como é o caso do Kuarup, o maior de todos. Há um intricado sistema de prestações e contraprestações, que se inicia com a iniciativa dos familiares da pessoa morta e vai se desdobrando até atingir todas tribos do Xingú.

Tradicionalmente, o Kuarup era realizado, apenas, para os "morekwat" (hoje, também, para "capitães" e outras pessoas importantes), pois eram esses chefes tradicionais associados aos p

rimeiros índios, que viveram a narrativa do Kuarup. A realização de um Kuarup, em homenagem a determinada pessoa ilustre, representa, portanto, o reconhecimento de que esta pessoa estaria associada aos primeiros índios que conviveram com Mawutzinim. A realização de um Kuarup significa, assim, uma grande honraria, o reconhecimento de que o homenageado passa a ser situado no mesmo nível dos que conviveram com Mawutzinim, isto é, são incorporados ao povo descrito na narrativa religiosa e passam a integrá-la.

A idéia de convívio com a divindade apresenta um claro paralelo com a situação dos santos católicos que, também, convivem em proximidade com a divindade. Outro paralelo é a questão da transgressão na narrativa do Kuarup, na medida em que o processo de ressurreição é interrompido, pelo fato de um dos índios ter mantido relações sexuais enquanto acontecia. É desnecessário elaborar a idéia do sexo como transgressão e seus efeitos no Cristianismo, como aparece na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Durante a quaresma, a "abstinência" não se fazia, tradicionalmente, apenas com o jejum de alimentos.

Por outro lado, a proibição do sexo durante o Kuarup pode estar associada à criação da vida por um método não "biológico". Para que haja a plena criação da vida pela divindade não pode haver a criação da vida pelos homens, através do método que lhes é próprio, o sexo. Um método inviabiliza o outro. Quando Mawutzinin diz que "agora é só festa" está dizendo que resta o método humano de criação de vida.

O kwarup que assistimos foi oferecido pelos índios Yawalapiti, em associação com as demais tribos de língua Aruak, os Mehinaku e Waurá. Esses índios, chegaram antes dos demais e foram abrigados nas casas dos Yawalapiti. Os homens vieram dançando, acompanhados por algumas poucas mulheres, principalmente meninas, fazendo, na dança, uma fila paralela à dos homens. As demais mulheres chegaram discretamente.

Depois de muita dança, alguns índios foram para o mato cortar um tronco do arvore kwarup. Foi construída uma cobertura de palha, um "rancho", em frente à "Casa dos Homens", sob o qual foi fincado o tronco no chão. O tronco foi descascado e aplainado para receber a pintura.

foto2.jpgO tronco do Kuarup recém colocado e decorado. No chão os arcos, cocares e maracás dos dois cantadores, que tinham, por um breve momento, interrompido sua atividade. Foto: Sandra Zarur

Dois cantadores, que lá se encontravam, previamente, deram continuidade ao seu trabalho, acompanhados por seus maracás. A tradução que me fizeram foi a seguinte da letra da música:

"Auíre ("morekwat" em Ywalapiti, "chefe"), você está sendo pintado,
Sua pintura está ficando muito bonita".

foto3.jpgEste e outros refrãos parecidos são repetidos, e o que é importante é que se dirigem ao tronco como a uma pessoa humana. A pintura (de sapo) é, não apenas, humana, como é aquela só de uso dos chefes importantes. O tronco é decorado com os mais belos ornamentos masculinos, como cinto de algodão colorido (dois são colocados), colar de caramujo, e cocar de penas. Tudo em tamanho maior do que seria usado por humanos vivos, pois sua dimensão é adequada à do tronco.

Os cantadores apoiados no arco e com o maracá na mão direita. Foto: George Zarur.

No primeiro dia de efetiva realização do ritual (os demais dias foram preliminares) começaram a chegar as demais tribos, que foram se instalando ao redor da aldeia iawalapiti. No final da tarde e começo da noite foi feita uma fogueira em frente ao tronco do kwarup. Os homens de cada uma dessas aldeias visitantes vieram dançando e cantando e um deles se aproximava para recolher o fogo com que se aqueceriam suas fogueiras na fria noite xinguana.

foto4.jpgUm dos índios veio correndo e tirou um dos cintos de algodão do tronco do kwarup. Este é uma ação que só os grandes campeões da luta huka-huka têm o direito de realizar. É como um desafio ao grande chefe que está em processo de revivescência no tronco.

Dança do Kuarup. Foto: George Zarur

A visita de outras tribos é, sempre, um processo considerado muito perigoso, especialmente devido à possibilidade de feitiçaria, que pode ser realizada com um resto humano qualquer, como um pouco de cabelo. Há muita tensão. A entrega do fogo às tribos visitantes e as danças associadas não interrompem o cantochão do cantadores.

foto5.jpgDurante a noite, há um momento que corresponde ao da ressurreição do homenageado, que estaria, fugazmente, presente no tronco da mesma maneira que na narrativa religiosa acima transcrita. Segundo me informou um dos morekwat yawalapiti, no Kuarup que homenageou Cláudio Villas Bôas, em um dado momento, as penas do cocar teriam mexido. No Kuarup de seu pai (Kanato), os morekwat yawalapiti, os irmãos Aretana e Piracumã, relataram-nos terem ouvido um farfalhar, um vento, na cobertura de palha que cobre o Kuarup e em seguida ter visto o pai de pé, em frente ao tronco. Piracumã informou ter desmaiado com a visão.

O aprendizado do ritual pelas crianças. Foto: George Zarur

Este momento é o da virtual ressurreição do morto. Corresponde ao instante em que os troncos da narrativa religiosa começam tomar vida. Foi quando Orlando retornou e esteve perto de nós. Foi o momento em que a família de Orlando se aninhou junto ao tronco e três amigos de Orlando, um dos quais o autor deste artigo, foram chamados para sentar-se próximo à família e ao tronco.

O momento seguinte foi das carpideiras, cinco mulheres de idade, enroladas em cobertores que choravam , um choro tristíssimo, repetido, com voz muito baixa. Não é difícil comparar tal costume com o das carpideiras mediterrâneas. A diferença é a notável delicadeza do choro baixo das xinguanas, embora no Nordeste brasileiro, por exemplo, também haja "incelenças" muito belas e, também, delicadas.

Parecia haver uma alternância e, por vezes, uma disputa, entre as vozes masculinas dos cantadores e as femininas das carpideiras. Como se os homens estivessem estimulando o morto a reviver e as mulheres chorando, cantando tal impossibilidade.

Pela noite inteira ouvem-se as vozes ritmadas dos cantadores e, até um dado instante, bem baixinho, o choro sentido das carpideiras.

A manhã seguinte, com os primeiros raios de sol, são ouvidos os gritos, por meio dos quais as tribos visitantes, que dormiram ao redor da aldeia, anunciam sua chegada. Acaba o choro e a atividade dos cantadores. Nota-se perfeitamente, que se inicia outra etapa do ritual. Chegam os índios e, rapidamente, começam as lutas de huka-huka, primeiro, uma a uma, entre os campeões das diferentes tribos e, depois, lutas simultâneas, principalmente, entre indivíduos mais jovens que ainda não se afirmaram como bons lutadores. Houve um momento em que havia perto de 30 lutadores, simultaneamente, em atividade.

Foto 6: Huka-huka: notar a pintura de peixe do lutador da esquerda e de onça, do lutador da direita. A narrativa completa da origem dos homens faz menção à luta dos peixes contra as onças. Foto: George Zarur

A mãe de um dos lutadores, uma mulher kamaiurá, entrou no círculo dos lutadores e
fez um discurso político, em defesa de Takumã, o capitão Kamaiurá. Gritou para que todos ouvissem que "Takumã não era feiticeiro".

O morekwat yawalapiti ajoelha-se frente ao morekwatde cada das tribos visitantes recém-chegadas e lhes oferece, em hospitalidade, peixe e beiju, que o chefe visitante, vai, posteriormente distribuir à sua tribo. Em se tratando de "morekwats", uo seja, chefes por "nobreza de sangue", alguns dos que recebem a oferenda são muito jovens. Ficam sentados nos bancos em que são esculpidas cabeças de gavião, de seu uso exclusivo, e assumem uma postura corporal de superioridade, uma "pose aristocrática". Posteriormente às lutas há um moitará, ritual de trocas, em que cada tribo oferece os produtos de sua especialidade (arquetipicamente, os Aruak, a cerâmica; os tupis, o arco preto; e os karib, os colares de caramujo).

O ritual é encerrado com o lançamento do tronco do Kuarup na água. Houve, porém, no Kuarup do Orlando, uma inovação: entre o Moitará e o lançamento dos toros na água, houve a reunião de boa parte dos presentes, para a apresentação de um vídeo. Sentados frente à tela nas poucas cadeiras disponíveis, o Embaixador do Canadá e a família Villas Boas. O vídeo falava da possível poluição das nascentes do Xingu e, após os chefes yawalapiti, falou um visitante Xavante, filho do chefe e ex-parlamentar Mário Juruna e o representante de uma ONG, ao que parece apoiada pela Embaixada canadense, interessada em avaliar a possível poluição das nascentes do Xingu.

Embora o evento tenha representado uma quebra da seqüência do ritual tradicional, não aconteceu uma ruptura com sua lógica, como apontaram alguns puristas. A inclusão de um espaço para os caraíbas em um ritual de articulação política entre sociedades distintas, apenas reforçou o próprio ritual como instrumento de diálogo e articulação interétnica.

2 Kwarup, Mito e Ritual no Alto Xingu, de autoria de Pedro Agostinho da Silva (Edusp, )
3 Xingu: os índios, seus mitos, de Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas – Ed. Kuarup)
4 George Zarur, Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingú. Brasília, Funai, 1975.

Kuarup – Parte IV

É inevitável o paralelo com os rituais esportivos mortuários pan-helênicos, como o que Aquiles manda celebrar em memória de Pátroclo. De fato, no mundo do Xingu, apenas no Kuarup, acontecem os jogos pan-xinguanos. Existem, no Xingu, outros rituais intertribais, como o Javari, que opõe, em geral, duas tribos (às vezes, uma tribo menor pode se associar a uma maior, caso em que o ritual seria realizado por três tribos). O único ritual, porém, que reúne todas as tribos é o Kuarup, o que dele faz a própria expressão da identidade comum das tribos do Alto Xingu. E não é por acaso, que pretende restaurar a ordem perdida pela morte de uma pessoa que seja uma referência política e religiosa. Tal status, o mais alto, é adquirido por via de sua participação na vida intertribal. O kwarup afirma a comunidade formada por todos os xinguanos e sua origem comum, expressa na narrativa que descreve a tentativa de Mawutzinim de trazer os mortos à vida. O morto do Kuarup está associado aos índios desta narrativa primordial.

A tentativa de ressurreição e o pranto são sucedidos pela excitação das lutas e das trocas. A ações rituais relativas ao indivíduo morto são superadas pela vida coletiva, expressa na emoção alegre compartilhada. A idéia da convivência com os vivos sucedendo à morte é a própria idéia de continuidade da vida, de vitória sobre a morte, pela vida em comunidade, como aparece, também, no cristianismo. Está muito presente no Kuarup, a idéia da partilha da alegria, do jogo, do alimento comum e da troca de objetos; a idéia de que os seres humanos devem consolar-se e alegrar-se uns com os outros, após a perda de alguém. Há a súbita alternância entre tristeza e alegria. Assim, os índios do Xingu dizem que o Kuarup existe para “não sentir saudade”, no sentido de “não ter mais sofrimento com a perda”.

Na liturgia católica, um momento crucial é aquele que precede a comunhão, isto é, afirma-se a idéia de comunidade pela partilha do alimento, fazendo dos presentes "um só corpo e um só espírito", uma unidade. É a chegada do Espírito, que a todos reúne, agregando os indivíduos em um ser coletivo. Esta mesma idéia da comunidade dando continuidade à vida, mantendo vivo o Senhor "no meio de nós", está presente em vários trechos do Evangelho. As narrativas cristãs referentes às aparições após a morte, em que os apóstolos atestam a ressurreição de Cristo, são vividas pelos participantes de uma missa, como um ato adesão de fé ou de emoção compartilhada induzida pelo enredo da narrativa, como a própria aparição teria sido para os apóstolos. A tristeza é substituída pela certeza da continuidade da vida, reciprocamente confirmada pelos membros da assembléia. Há, também, a troca súbita da tristeza pela alegria. O conceito de ressurreição é estendido a todos os mortos, na medida em que Cristo é considerado o paradigma do humano.

O Kuarup é, em sua essência, uma forma análoga de superar a morte pela vida em comunidade. Pela emoção compartilhada que tem sua maior e solene referência na reunião pacífica e lúdica de todas as tribos da região.

Alguns símbolos comuns, “hierofanias” no conceito de Eliade, repetem-se na nossa e na cultura xinguana. Um deles é a idéia do vento trazendo o sobrenatural, como a suave brisa divina que visitou o profeta Elias e que levou ao farfalhar de folhas, que Piracumã e Aretana ouviram, antes da verem de seu pai. Já foi visto, também, o papel das carpideiras que, desde os tempos do Velho Testamento integram as tradições dos povos mediterrâneos.

A seqüência da narrativa xinguana do Kuarup é a seguinte: morte do indivíduo, seguida pela regeneração incompleta da matéria, seguida por sua ressurreição na comunidade. Na narrativa cristã a seqüência é: morte do indivíduo, regeneração completa da matéria em outro plano, seguida por sua ressurreição na comunidade. Os desenlaces são, portanto, semelhantes.

É corriqueira a visão de que os povos “primitivos” seriam “politeístas”, enquanto os povos “civilizados” seriam “monoteístas”. Ao contrário, a vida religiosa dos índios do Xingu é mais claramente “monoteísta” ou menos “politeista”, que muitas versões populares do cristianismo, pois além de Mawutzinim, os únicos outros seres religiosos importantes são, em uma posição muito secundária, seus descendentes, os gêmeos Sol e Lua, típicos das narrativas indígenas Sul-Americanas. Depois vêm os “mamaés”, espíritos potencialmente danosos associados a animais, plantas e objetos que, são outra coisa.

Mawutzinin, por ter criado a vida e a sociedade, e pelo fato de daí em diante não alterar mais o curso dos acontecimentos, é mais bem entendido como uma “causa final”, a mesma concepção de Deus de Aristóteles. Já os mamaés, embora invisíveis, são "sobrenaturais" apenas para alguns antropólogos, pois para os xinguanos são forças naturais, que feiticeiros perversos manipulam para causar a doença e a morte. Após o diagnóstico dos pajés com a identificação do mamaé causador de uma doença, é levado um ritual específico relativo àquele mamaé, com o presumível efeito de controle do mal que causou.

O contraste maior entre a religião dos xinguanos e o cristianismo vem da relação com Deus: embora Mawutzinin seja um ser antropomorfo, não é admitida a possibilidade de sua comunicação pessoal com os seres humanos. Enquanto os cristãos rezam, individual ou coletivamente, isto é, conversam com Deus, não há, no Xingu, a idéia de um Deus pessoal com a qual o indivíduo se comunica e que pode alterar o curso dos acontecimentos, de acordo com as preces que lhe são apresentadas. É, possivelmente, desta possibilidade de Deus alterar a história que, mesmo sem reconhecer tal relação, autores como Eliade, por exemplo, extraem a idéia de “tempo linear”. O texto litúrgico nos rituais xinguanos é padronizado e de atribuição exclusiva do par de cantadores, sem que nada se peça à divindade. Os demais índios dançam em conjunto, alguns tocam flautas, mas não há o correspondente à oração na forma de pedido e especialmente de pedido individual. A religiosidade acontece pela participação e partilha nas atividades do grupo.

Outra diferença importante é a idéia de pecado individual. Já foi visto que os xinguanos têm, como os cristãos, a idéia de imperfeição, de "queda", quando o kuarup é interrompido por transgressão da regra da abstinência sexual por um alguém durante o ritual. Esta marca do "pecado" coletivo é comum à narrativa xinguana e à narrativa do judaica do Genesis. Na visão xinguana, não existem, porém, as idéias de pecado e culpa individuais. A transgressão à norma, embora possa ocorrer, no caso de quebra de tabus e outras regras, é explicada por acidentes, pela inevitável fraqueza humana ou por engano. Não há a decisão consciente de fazer o mal, mesmo porque idéias como as de consciência individual e livre arbítrio são estranhas à filosofia xinguana. O grande ato perverso, a feitiçaria, sempre individualmente executada, de forma secreta, acontece (se de fato existir) pela transmissão hereditária da maldade, pois um feiticeiro tende a ser concebido como filho de outro feiticeiro. A punição à feitiçaria é social e jurídica e não da ordem divina. Deus não castiga nem amedronta os índios do Xingu.

Em que pesem tais diferenças, a análise acima reforça a tese da continuidade entre diferentes tradições religiosas. Não se sustenta, frente ao caso do Xingu, idéias como a de Eliade de que o homem religioso seria caracterizado por uma noção de tempo não linear, em contraste com o homem não religioso, que adotaria o tempo histórico linear, que distinguiria o sagrado do profano. O contraste entre o tempo linear e o não linear é uma questão de crença na capacidade de intervenção divina no curso dos acontecimentos e não um dado comprovado e

mpiricamente; reflete a abordagem de diferentes religiões e não da presença ou não da religião em uma dada sociedade. Não se sustentam, da mesma forma, idéias como a de Eliade ou de Durkhein, relativas à separação nítida entre o sagrado e o profano. Tudo tem uma relação e uma continuidade com o sagrado, o que nos aproxima de Frazer.

Ainda hoje, o sagrado está muito mais presente do que se pode supor. Por vezes, como no caso do catolicismo, o ano é mapeado em diferentes tempos, como o Advento, a Quaresma ou o "Tempo Comum". Também, o dia é dividido, como lembram os sinos da hora do "Angelo".

Não faz muito, a sociedade brasileira regia-se por um tempo sagrado que permeava toda a vida das pessoas, ditava-lhes o ritmo e condicionava-lhes a emoção: a Quaresma era para reflexão; na Semana Santa chorava-se a perda de uma pessoa muito querida, seguida de uma explosão de alegria com a Páscoa; no Advento, a espera do Natal. As crianças da infância do autor deste artigo, em uma rua da Gávea, bairro de classe média do Rio de Janeiro, paravam de brincar, todos os dias, para rezar a Ave Maria, na hora própria.

Hoje, quando a descristianização avança a passos rápidos, talvez estejamos vivendo um novo tempo sagrado, com novos ídolos e rituais característicos da idade da comunicação de massas. Talvez estejamos – como os xinguanos – tão submersos neste novo tempo sagrado, que nem sequer o percebemos como tal.

A percepção da unidade dos sentimentos e motivações humanas, como demonstra a cerimônia do Kuarup, pode nos levar a sentir esta silenciosa presença de uma dimensão sagrada, oculta, não percebida, entre nós.

Consultoria Legislativa, em 25 de Agosto de 2003.

George de Cerqueira Leite Zarur
Consultor Legislativo