Substitutivo do PL de mineração em Terras Indígenas beneficia empresas mineradoras

Oito meses depois da instalação da comissão especial para analisar o projeto de lei de mineração em Terras Indígenas, o primeiro relatório sobre a matéria foi apresentado com um projeto substitutivo que apesar de ter incorporado quase integralmente a proposta do Executivo, promove alterações significativas. Era de se esperar que o relator, deputado Eduardo Valverde (PT/RO), que também é o presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, tomasse como base para o seu substitutivo a proposta oriunda do Poder Executivo, formalmente o APL do Governo, enviada ao Congresso no dia 18 de abril (Leia aqui).

A principal modificação está na regulamentação da fase preliminar de autorização da atividade. O projeto do governo estabelecia que antes de o Congresso Nacional decidir sobre a instalação ou não de uma atividade de mineração em determinada Terra Indígena, era necessário que o interessado passasse por algumas etapas administrativas cujo objetivo era confirmar minimamente a viabilidade econômica, ambiental e sócio-cultural ou, nos casos em que essa viabilidade não estivesse presente, negar o seguimento ao processo. Já a proposta apresentada agora por Valverde estabelece que mesmo que os laudos técnicos recomendem negar autorização, o Congresso Nacional pode decidir pela autorização da instalação da mineradora.

De acordo com a avaliação do ISA, o projeto do governo necessitava de alguns aperfeiçoamentos, mas era melhor do que a versão apresentada esta semana. O projeto original permitia que seguissem adiante apenas projetos com consistência técnica. Da forma agora proposta o Congresso Nacional, órgão de caráter eminentemente político, fica com o ônus de analisar questões de ordem técnica e o poder de decidir da forma que quiser, mesmo havendo pareceres contrários.

De forma arbitrária

Em seu relatório, Valverde não justifica as modificações feitas. Para a advogada do ISA, Ana Paula Souto Maior, o substitutivo permite ao Congresso Nacional autorizar a mineração em Terras Indígenas de forma arbitrária, sem considerar o trabalho realizado pelos órgãos federais competentes, tornando o procedimento de autorização de pesquisa e lavra temeroso. Os maiores beneficiados com essa alteração são as empresas interessadas em minerar nessas áreas, que agora passam por um único processo de aprovação e terão maior influência sobre o órgão de decisão, já que os parlamentares não têm formação técnica para contestar as informações por elas apresentadas.

O substitutivo também silencia em relação a situações nas quais a mineração não poderia ocorrer, como, por exemplo, em áreas com índios isolados ou em terras ainda pendentes de regularização fundiária. Não estão caracterizadas as hipóteses em que se configuraria o interesse nacional a justificar a mineração, como determina a Constituição, e não há previsão de mecanismos de controle social por parte das comunidades indígenas ou de garantias contra riscos ambientais.

A partir de hoje, por cinco sessões ordinárias, poderão ser apresentadas emendas ao projeto. A composição da Comissão Especial, no entanto, não é favorável aos interesses indígenas, como ficou demonstrado em sua última reunião na qual os deputados, contrariando o disposto na Convenção 169 da OIT, negaram a realização de consultas prévias junto às organizações indígenas afetadas. De acordo com o presidente da comissão, deputado. Édio Lopes (PMDB/RR), as audiências realizadas no Congresso Nacional com convidados indígenas, e a rápida visita realizada à TI Yanomami já teria servido como consulta aos povos interessados.

Invasões garimpeiras voltam a ameaçar povo Yanomami

A Campanha Nacional de Desarmamento recolheu, desde agosto de 2004, mais de 393 mil armas em todo o País. Na contramão deste movimento, garimpeiros estão invadindo a Terra Indígena Yanomami, que abrange parte dos estados de Roraima e do Amazonas, e fornecendo espingardas e munição para os índios como salvo-conduto para permanecer na região em busca de minérios como ouro, cassiterita, urânio e nióbio. O contato com os invasores também faz com que os Yanomami contraiam malária, gripe e doenças sexualmente transmissíveis. A atividade garimpeira compromete ainda a qualidade dos rios que abastecem as comunidades indígenas. Em carta de 30 de junho, o Conselho do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami e Ye`kuana relata estes problemas e afirma que a invasão do território Yanomami está fora de controle.

A carta do Conselho é destinada ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, aos presidentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O Ministério Público Federal também recebeu uma cópia do documento. A carta, assinada por 14 lideranças indígenas e outros membros do Conselho, lista cinco pistas clandestinas no território indígena, demarcado e homologado há 13 anos. Outros oito pontos de garimpo estão identificados. “Não é difícil prever que estamos a caminho de uma situação de caos social e sanitário, como a vivida pelos Yanomami no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando, pelo menos, um quinto da população Yanomami morreu devido às doenças introduzidas pelos garimpeiros”, afirma o texto do Conselho do DSEI. Leia aqui a carta na íntegra.

Davi Kopenawa, uma das mais importantes lideranças Yanomami, afirma que as ações dos órgãos do governo federal não estão sendo suficientes para expulsar os garimpeiros, nem ao menos para intimidá-los. “Eles estão tão à vontade na região que chegam a pedir carona nos aviões da Fundação Nacional de Saúde para buscar mantimentos nas cidades e utilizam os rádios dos postos da Funai para pedir novas cargas de munição”. Procurada pela reportagem do ISA, a assessoria de imprensa da Funai admite que a invasão da TI está deflagrada e que a principal medida proposta pelo órgão para combatê-la é regulamentar o poder de polícia de seus funcionários.

Espiral de violência

Uma das mais graves conseqüências da invasão garimpeira é o constante armamento dos Yanomami, o que nos últimos anos tem resultado no aumento da letalidade dos conflitos entre as comunidades indígenas. Hoje os ferimentos por arma de fogo estão entre as principais causas de mortalidade entre os Yanomami, muito acima da malária, por exemplo. Em relatório do ano passado, intitulado Armas de fogo, violência e assistência à saúde entre os Yanomami, os antropólogos Moisés Ramalho e Marcos Pelegrini, consultores da Funasa, afirmam que “as armas de fogo fazem com que os conflitos entre as aldeias tornem-se cada vez mais sangrentos, produzindo muito mais vítimas do que no passado, o que, por sua vez, prolonga as hostilidades, já que cada morte é vingada; o ciclo então se perpetua ao mesmo tempo em que se amplia quando outras aldeias acabam sendo envolvidas no conflito”.

Os conflitos intercomunitários são parte integrante do universo sociocultural dos Yanomami, caracterizando-se por um conjunto de regras e um universo ritual que condicionam a prática de ações violentas. O antropólogo Rogério Duarte do Pateo, do ISA, explica que os enfrentamentos, marcados quase exclusivamente por emboscadas nas áreas de roça ou no entorno das aldeias, se inserem em um complexo sistema de relações intercomunitárias que se articula a uma extensa rede de aliança e inimizade entre os grupos. “As relações de antagonismo podem ser deflagradas por motivos banais e cotidianos”, diz Rogério. “E são fruto da degeneração progressiva das relações de aliança e amizade entre dois ou mais grupos durante um determinado período de tempo, articulando ataques efetivos, feitiçaria guerreira e xamanismo agressivo”.

Balas no lugar de flechas

O problema é que as armas de fogo, ao contrário das flechas, bordunas e zarabatanas, causam ferimentos muito mais fatais e aumentam o número de mortos. Com isso, potencializam os ciclos de vingança entre os grupos, num espiral de violência sem precedentes entre os Yanomami. “Antigamente nossas disputas eram com flecha, agora muitos têm bala e ficam mais fortes”, diz Davi Kopenawa. Os consultores da Funasa recomendam a realização de uma campanha de desarmamento entre os Yanomami, com a troca de espingardas por ferramentas e outros utensílios. A resistência dos índios, porém, é grande. Davi Kopenawa conta que as armas são objetos muito valorizados e não utilizadas para caça. “Servem apenas para matar os parentes”, relata. “Eu já tentei duas vezes recuperar armas mas é difícil dos índios se desfazerem delas”. Ao tentar desarmar as aldeias da região do Surucucu, Davi recuperou 3 espingardas. “Mas sei que enquanto não tirarem os garimpeiros de lá outras armas vão chegar”.

No relatório sobre a escalada bélica na Terra Indígena, Ramalho e Pellegrini relatam que, entre 1995 e 2003, o DSEI Yanomami registrou a morte de 47 índios por arma de fogo, e a de 17 por meio de pauladas, flechadas ou zarabatana. Outros 15 homicídios não tiveram a causa esclarecida. “Vale a pena lembrar que, apesar de impressionantes, esses números registram apenas as mortes, mas a quantidade de feridos, principalmente à bala nos conflitos, é também igualmente significativa”, escrevem os consultores. Eles destacam ainda que entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003, 25 das 42 mortes violentas foram provocadas por armas de fogo.

Saúde na mira

O acirramento dos conflitos armados entre as comunidades indígenas atinge também os funcionários da saúde que atuam na TI. Um dos episódios mais traumáticos relacionados ao uso das armas fornecidas pelos garimpeiros aos Yanomami ocorreu em 11 de dezembro de 2003, quando o auxiliar de enfermagem Orisvam Araújo da Silva, da ONG Urihi – Saúde Yanomami, que prestava serviço na região, foi morto com um tiro nas costas enquanto se banhava em um rio nas proximidades da aldeia Kahusiki. Silva teria sido confundido com um Yanomami por membros de uma aldeia inimiga, que estavam de tocaia na área com a intenção de matar um rival. Entre 2001 e 2003, outros seis casos de ataques de Yanomami na presença de agentes de saúde ou educadores foram registrados.

Estes episódios, o recrudescimento das invasões garimpeiras e dos conflitos entre as comunidades indígenas prejudicam diretamente o atendimento à saúde na TI. O assessor técnico do Departamento de Saúde Indígena da Funasa em Brasília, Edgar Dias Magalhães, afirma que muitos garimpeiros incitam os Yanomami contra os agentes de saúde. “Nossa preocupação maior é com a segurança das equipes de saúde e a ação de cooptação dos índios por parte dos garimpeiros, que em algumas situações já chegaram a vetar, a pedido dos garimpeiros, o acesso das equipes de saúde a certas regiões”, afirma. O assessor, que estima em 3 mil o número atual de garimpeiros na TI, diz que o fornecimento de bebidas alcoólicas para os índios também compromete o desenvolvimento de trabalhos de saúde na região.

Risco de malária

Edgar Magalhães garante que a Funasa está atenta à deterioração sanitária relacionada ao garimpo, mas que por enquanto não há indícios que demandem ações emergenciais. “A malária encontra-se controlada na TI, havendo vigilância epidemiológica dos casos e ações de controle. Estamos levantando junto ao DSEI uma tabela atualizada dos dados de malária para checagem da situação”, afirma. O assessor técnico lembra ainda que o garimpo traz o risco da volta da doença em nível endêmico e epidêmico, pois os garimpeir

os não se tratam adequadamente. “Eles funcionam como reservatórios de malária”. Isso porque, ao picar um indívíduo doente, o mosquito vetor da malária se contamina e, ao picar outros indíviduos posteriormente, lhes transmite o parasita causador da doença.

Outros problemas decorrentes da presença dos intrusos na TI, segundo o técnico da Funasa, é a poluição dos rios, que provoca o aumento de casos de diarréia entre os índios, e a escassez de caça, que some das beiras de rios assustada com o barulho das máquinas de garimpo. O missionário Carlo Zacquini, da Diocese de Roraima, trabalha com os Yanomami desde 1975 e afirma que as doenças levadas às comunidades pelo contato dos índios com os garimpeiros podem causar novos surtos da doença. “Foram muitos anos para a malária ser controlada na região e todo este trabalho está sendo jogado no lixo”, alerta Zacquini. O missionário denuncia a falta de atuação dos órgãos responsáveis pela fiscalização do território indígena.

O fantasma de Haximu

Cerca de 15 mil Yanomami vivem no território de 9.6 milhões de hectares organizados em aproximadamente 200 comunidades. A presença de garimpeiros e o interesse minerário na Terra Indígena Yanomami não são novos. De acordo com a publicação Mineração em Terras Indígenas na Amazônia Brasileira, lançada pelo ISA este ano, há 640 requerimentos de empresas para pesquisa e lavra dentro da TI – a grande maioria deles feita antes da Constituição Federal de 1988. Tampouco são novas as trágicas conseqüências da presença dos garimpeiros. Entre 1987 e 1990, uma invasão sem precedentes ocorreu na região, quando cerca de 40 mil homens realizaram uma verdadeira corrida do ouro no território indígena, levando à morte um quinto da poulação Yanomami da época. O episódio mais conhecido desta trágica história ocorreu em 1993, quando um bando de garimpeiros chacinou 16 Yanomami, principalmente mulheres e crianças, no chamado “massacre de Haximu”. Até hoje, os índios temem sua repetição.